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quarta-feira, 11 de dezembro de 2013

Eu, filho de negro, preconceituoso


Nasci branco. Aliás, minha pele era branca. Como não me era permitido passar o dia na rua como as crianças da vizinhança, mantive essa cor, ora alternada com um aspecto amarelado (que me incomodava bastante quando caçoavam de mim). Nasci branco, com lábios grossos, de negro – herança da ascendência de meu pai –, e um nariz indeciso entre qual raça seguir. Sim, nasci branco, mas acima de tudo, nasci pobre – e assim permaneci por muito tempo.

Onde morava todos também eram pobres. Gente de todo jeito: brancos, morenos, loiros, negros, cor de jambo, pardos, amarelos, albinos, queimados do sol (a maioria), tipo índios, de olhos verdes, pretos, castanho-claro, escuro, azuis, de duas cores, cabelos vermelhos, pretos, castanhos, loiros, lisos, ondulados, encaracolados, tuins. Uma verdadeira profusão de cores e modos, unidos pela pobreza, que os reduzia a uma única raça. Uma raça capenga, mambembe, desprezada, esquecida, odiada e descrente de si.

Cresci como os cães e gatos, enxergando as cenas da vida em tons de cinza ou poucas cores. Como os cães e gatos, enxergava o mundo como donos e bichos, dominantes e dominados. Os que tinham dinheiro mandavam, enquanto os que não tinham eram subjugados. Os que tinham dinheiro eram mais fortes, e nós, os fracos, os seguíamos. As coisas eram assim, na minha visão de mundo (recrudescida pela frase que meu pai ouviu de duas crianças ricas e jamais esqueceu: “(...) Eles são pobre. Eles rouba”).

Mas, à medida que crescia, ouvia pessoas reclamando de preconceito e discriminação contra negros. Achava estranho, pois na prática não via tais casos – a bem da verdade, vi alguns poucos, velados, sem impacto direto, principalmente de parte de gente de muita idade, com reminiscências indiretas da escravidão. Meus melhores amigos, em épocas diferentes, eram negros (e só agora notei isso). Conheci negros inteligentes, pouco espertos, professores, mendigos. Ou seja, sem qualquer evidência de que a cor de sua pele significasse alguma coisa. Lembro que fiquei surpreso quando alguém me disse que a exigência “de boa aparência”, recorrente em anúncios de emprego, na verdade significava “não-negro”. Espantei-me por dois motivos: se alguém tinha essa interpretação é porque achava os negros feios, e como pode também alguém dispensar um negro de boa aparência? Conheci negros horríveis, lindos, medianos, feios e bonitos (assim como ocorre em qualquer raça). Também não consegui entender a brincadeira (sem graça, frise-se) que uma morena fez apontando para sua pele, e só compreendi que falava de sua cor porque teve de explicar-me do que se tratava. Igualmente custei a entender a expressão “dia de branco”. Posso dizer que eu era isento de preconceito. Nunca enxerguei as pessoas em cores. Pessoas eram pessoas e seus atos caracterizavam quem eram. Não conseguia entender o que a cor de alguém tinha a ver com essa pessoa ter sucesso ou não na vida, ou serem discriminadas por isso.

Passei por todas as dificuldades a que uma pessoa da periferia está sujeita, mesmo não sendo negro (hoje declaro ser pardo). Estudei em uma escola pública péssima. Tive que me esforçar em dobro, aprendendo muito mais sozinho que com os professores. Tive que perceber o olhar de pena ao fazer conhecer o bairro em que morava – enquanto outros preferiam me ignorar pelo mesmo motivo. Esforcei-me como pude para mudar minha situação, e hoje isso são apenas lembranças que me contam como é difícil para quem nasce pobre mudar de vida. Não tive mãos amigas – poucas, que apenas me ensejaram força – nem condescendência, muito menos facilidades. Nadando contra a correnteza da vida, entendi que conhecimento (de todas as naturezas) é a moeda de troca da sociedade, e muitas vezes ele e o dinheiro andam juntos.

A partir do novo assento que tomei na sociedade, testemunhei pessoas “brancas” fazendo declarações abertamente preconceituosas – embora tentassem dizê-las de modo reservado. Um disse que sente um certo incômodo quando vê um negro se formando – e achava que todos os presentes também compartilhavam desse sentimento torpe. Outro deu a entender que podia usar a cor de um atendente de balcão para lembrar-lhe de sua posição social, ao repreender-lhe. Esses casos me soam tremendamente estúpidos e dignos de descarte imediato, cabendo repreensão o mais rude possível. Mas não foram esses casos que me mudaram. Eles são uma afronta a tudo quanto existe de moral no mundo e me enojam e nunca poderiam transformar-me. Mas algo em mim mudou...

Isso aconteceu quando conheci os militantes anti-racismo. Eles lutam de uma maneira exacerbada e, para mim, discutível. Em vez de querer igualar as raças, parecem buscar ainda mais diferençá-las. Ao invés de relevá-las, pretendem especializá-las. Às vezes me confundem se pregam a superioridade de sua raça preferida ou se tentam compensar deficiências inatas. Eles enxergam racismo em simplesmente tudo que envolva um negro. Como o monstro infantil que habita os guarda-roupas, fortalecem o preconceito de tanto falarem nele. Tornaram inocentes em réus e suspeitos em culpados, sumariamente. Cada passo do homem comum é agora pensado em termos de medo em ser capturado pela patrulha racial, supostamente bem intencionada. Tenho dúvidas quanto a isso. Às veze penso que são pessoas que carregam o preconceito entranhado consigo, mas, reconhecendo ser algo mau, se esforçam por extirpá-lo, e, nessa sanha, acusam todos de compartilhar desse sentimento a fim de dividir o peso de sua consciência. Foram eles que me fizeram enxergar em cores.

Hoje já não sou o mesmo quando vejo um negro. Quero considerá-lo inferior, cheio de defeitos, vindo sempre de uma origem bruta, amparado em concessões de benfeitoria, arrogante de direitos, objeto de condolência, indigno de ocupar a boa situação social em que está ou merecedor do destino cruel que sobre ele se abateu. Mas aí lembro de meu pai e meu irmão mais velho, que nunca usaram a cor para nada (embora meu pai se ressentisse dela, bisneto de um contemporâneo da escravidão). Lembro de meus melhores amigos. Das pessoas com quem convivi durante a maior parte de minha vida... Lembro de quando eu era como os cães e gatos... E volto a mim mesmo e expurgo esses pensamentos medonhos e me tenho vergonha. E volto a odiar os militantes anti-racismo por me fazerem ver o mundo em cores.

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