Nasci branco. Aliás, minha pele era
branca. Como não me era permitido passar o dia na rua como as
crianças da vizinhança, mantive essa cor, ora alternada com um
aspecto amarelado (que me incomodava bastante quando caçoavam de
mim). Nasci branco, com lábios grossos, de negro – herança da
ascendência de meu pai –, e um nariz indeciso entre qual raça
seguir. Sim, nasci branco, mas acima de tudo, nasci pobre – e assim
permaneci por muito tempo.
Onde morava todos também eram pobres.
Gente de todo jeito: brancos, morenos, loiros, negros, cor de jambo,
pardos, amarelos, albinos, queimados do sol (a maioria), tipo índios,
de olhos verdes, pretos, castanho-claro, escuro, azuis, de duas
cores, cabelos vermelhos, pretos, castanhos, loiros, lisos,
ondulados, encaracolados, tuins. Uma verdadeira profusão de cores e
modos, unidos pela pobreza, que os reduzia a uma única raça. Uma
raça capenga, mambembe, desprezada, esquecida, odiada e descrente de
si.
Cresci como os cães e gatos,
enxergando as cenas da vida em tons de cinza ou poucas cores. Como os
cães e gatos, enxergava o mundo como donos e bichos, dominantes e
dominados. Os que tinham dinheiro mandavam, enquanto os que não
tinham eram subjugados. Os que tinham dinheiro eram mais fortes, e
nós, os fracos, os seguíamos. As coisas eram assim, na minha visão
de mundo (recrudescida pela frase que meu pai ouviu de duas crianças
ricas e jamais esqueceu: “(...) Eles são pobre. Eles rouba”).
Mas, à medida que crescia, ouvia
pessoas reclamando de preconceito e discriminação contra negros.
Achava estranho, pois na prática não via tais casos – a bem da
verdade, vi alguns poucos, velados, sem impacto direto,
principalmente de parte de gente de muita idade, com reminiscências
indiretas da escravidão. Meus melhores amigos, em épocas
diferentes, eram negros (e só agora notei isso). Conheci negros
inteligentes, pouco espertos, professores, mendigos. Ou seja, sem
qualquer evidência de que a cor de sua pele significasse alguma
coisa. Lembro que fiquei surpreso quando alguém me disse que a
exigência “de boa aparência”, recorrente em anúncios de
emprego, na verdade significava “não-negro”. Espantei-me por
dois motivos: se alguém tinha essa interpretação é porque achava
os negros feios, e como pode também alguém dispensar um negro de
boa aparência? Conheci negros horríveis, lindos, medianos, feios e
bonitos (assim como ocorre em qualquer raça). Também não consegui
entender a brincadeira (sem graça, frise-se) que uma morena fez
apontando para sua pele, e só compreendi que falava de sua cor
porque teve de explicar-me do que se tratava. Igualmente custei a
entender a expressão “dia de branco”. Posso dizer que eu era
isento de preconceito. Nunca enxerguei as pessoas em cores. Pessoas
eram pessoas e seus atos caracterizavam quem eram. Não conseguia
entender o que a cor de alguém tinha a ver com essa pessoa ter
sucesso ou não na vida, ou serem discriminadas por isso.
Passei por todas as dificuldades a que
uma pessoa da periferia está sujeita, mesmo não sendo negro (hoje
declaro ser pardo). Estudei em uma escola pública péssima. Tive que
me esforçar em dobro, aprendendo muito mais sozinho que com os
professores. Tive que perceber o olhar de pena ao fazer conhecer o
bairro em que morava – enquanto outros preferiam me ignorar pelo
mesmo motivo. Esforcei-me como pude para mudar minha situação, e
hoje isso são apenas lembranças que me contam como é difícil para
quem nasce pobre mudar de vida. Não tive mãos amigas – poucas,
que apenas me ensejaram força – nem condescendência, muito menos
facilidades. Nadando contra a correnteza da vida, entendi que
conhecimento (de todas as naturezas) é a moeda de troca da
sociedade, e muitas vezes ele e o dinheiro andam juntos.
A partir do novo assento que tomei na
sociedade, testemunhei pessoas “brancas” fazendo declarações
abertamente preconceituosas – embora tentassem dizê-las de modo
reservado. Um disse que sente um certo incômodo quando vê um negro
se formando – e achava que todos os presentes também
compartilhavam desse sentimento torpe. Outro deu a entender que podia
usar a cor de um atendente de balcão para lembrar-lhe de sua posição
social, ao repreender-lhe. Esses casos me soam tremendamente
estúpidos e dignos de descarte imediato, cabendo repreensão o mais
rude possível. Mas não foram esses casos que me mudaram. Eles são
uma afronta a tudo quanto existe de moral no mundo e me enojam e
nunca poderiam transformar-me. Mas algo em mim mudou...
Isso aconteceu quando conheci os
militantes anti-racismo. Eles lutam de uma maneira exacerbada e, para
mim, discutível. Em vez de querer igualar as raças, parecem buscar
ainda mais diferençá-las. Ao invés de relevá-las, pretendem
especializá-las. Às vezes me confundem se pregam a superioridade de
sua raça preferida ou se tentam compensar deficiências inatas. Eles
enxergam racismo em simplesmente tudo que envolva um negro. Como o
monstro infantil que habita os guarda-roupas, fortalecem o
preconceito de tanto falarem nele. Tornaram inocentes em réus e
suspeitos em culpados, sumariamente. Cada passo do homem comum é
agora pensado em termos de medo em ser capturado pela patrulha
racial, supostamente bem intencionada. Tenho dúvidas quanto a isso.
Às veze penso que são pessoas que carregam o preconceito entranhado
consigo, mas, reconhecendo ser algo mau, se esforçam por extirpá-lo,
e, nessa sanha, acusam todos de compartilhar desse sentimento a fim
de dividir o peso de sua consciência. Foram eles que me fizeram
enxergar em cores.
Hoje já não sou o mesmo quando vejo
um negro. Quero considerá-lo inferior, cheio de defeitos, vindo
sempre de uma origem bruta, amparado em concessões de benfeitoria,
arrogante de direitos, objeto de condolência, indigno de ocupar a
boa situação social em que está ou merecedor do destino cruel que
sobre ele se abateu. Mas aí lembro de meu pai e meu irmão mais
velho, que nunca usaram a cor para nada (embora meu pai se
ressentisse dela, bisneto de um contemporâneo da escravidão).
Lembro de meus melhores amigos. Das pessoas com quem convivi durante
a maior parte de minha vida... Lembro de quando eu era como os cães
e gatos... E volto a mim mesmo e expurgo esses pensamentos medonhos e
me tenho vergonha. E volto a odiar os militantes anti-racismo por me
fazerem ver o mundo em cores.
Belo texto cabelinho. Cada vez mais me surpreende com seu olhar.
ResponderExcluirObrigado, Marcelo.
Excluirmuito bom
ResponderExcluirGrato!
Excluir