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domingo, 31 de março de 2013

Relato de um assalto (parte II)


Socorro e decepção

Sigo no sentido oposto ao dele, a princípio, em direção a meu destino original; mas, alguns passos adiante, olhando para o infame – que segue como se nada tivesse acontecido –, tomo o caminho da delegacia. A indignação apodera-se de mim. E o que posso fazer? Praguejar. Praguejar contra aquele infeliz; o miserável que afrontou minha dignidade; o marginal que feriu meu bem-estar. Praguejar com todas as palavras que brotam em torrente de minha boca. Proferir imprecações funciona como um lenitivo para o homem, quando deparado com a impossibilidade de reação ou um inimigo intangível – o destino, o tempo. E era só o que eu dispunha no momento para revidar o acontecido.

Ensaio uma corrida rumo à delegacia mais próxima – que dista duas centenas de metros, no máximo, de onde fui abordado –, tomando o cuidado de observar o marginal de longe. Com a inquietude provocada em minha mente, não noto o carro de polícia que passa por mim, devagar. Não percebo imediatamente, mas com um pequeno retardo. Volto, aceno, chamo. Ele para, meio que em dúvida de fazer isso. Vou ao encontro do motorista e declaro ter sido assaltado. O polícia, calmo, imbuído do “proteger e servir”, finge olhar pra mim detrás dos óculos escuros. Pergunta:

– Onde foi?
Aponto o local, tão perto que se via sem esforço algum.
– Quando foi?
Repito que foi naquele exato instante, apenas o tempo de caminhar cem metros.
– Ele estava armado?
Afirmo que não vi, mas ele disse que estava.
– Ele levou o quê?
Digo o que me levaram.

Então o policial, ponderando tudo aquilo, diz-me para ir à delegacia prestar queixa e depois voltar para “ver se a gente (ainda) encontra ele”.

Mais uma indignação. Talvez eu não tenha sido convincente o suficiente para passar-me por vítima de assalto. Talvez devesse ter chorado, gritado, esperneado. Fazê-lo crer que não o estava enganando, tomando seu precioso tempo (com o qual cuida de seus interesses). Ou ainda melhor. Deveria ter-lhe dado a pecúnia que havia em minha carteira. Sim, aí quem sabe ele não se animasse a cumprir com suas obrigações e fazer seu trabalho; vencer os duzentos metros que nos separavam do agressor, prendê-lo e reaver-me o bem roubado. Sim, deveria tê-lo pago para fazer o que é direito: a autoridade subjugar a desordem, a justiça cercear o crime. Infelizmente, é assim que funciona o aparato público em nosso país. O suborno é uma constante, a despeito dos casos estrelados nos noticiários. Não é exceção, é regra. Paga-se para conseguir qualquer coisa. E eu? Valeria-me de propina? Claro! Deveria ter usado o dinheiro dessa maneira. Não seria isso que contaminaria a candura da instituição. Afinal, como diz o boçal ditado (com o perdão da palavra): “o que é um peido para quem está cagado?”.*

Em minha ingenuidade, vou até a delegacia, pensando tratar-se de algo rápido (afinal, o camarada do carro disse para voltar depois de prestar queixa). Em lá chegando, informo que quero prestar uma queixa. O policial quer saber do quê. Ao ficar sabendo que é de um aparelho celular, pergunta:

- Você está com a nota fiscal?

Ah, claro! A nota fiscal! Como podia ter esquecido? Sempre ando com as notas fiscais de tudo que possuo. Ninguém sabe quando será assaltado perto de uma delegacia. Se todos procedessem dessa forma nossa polícia seria mais eficiente, pegaria mais bandidos, uma vez que daria tempo para o lesado prestar queixa e os policiais irem em busca do criminoso. Mas, que azar o meu, aquele dia eu havia deixado todas as minhas notas fiscais em casa. Estava até me sentindo mais leve!

Não estava acreditando no que se passava. Bandidos e policiais unidos contra o cidadão indefeso. Os primeiros agindo ativamente – botam a arma em cima de você, gritam, roubam, agridem –, e os últimos de forma passiva, permitindo aos marginais fugirem despreocupados, enquanto zombam da cara do cidadão que tentou buscar auxílio. Todos somos bombardeados com notícias de corrupção na máquina defensiva do governo: ladrões dentro da instituição, conivência com crimes, assassinatos a esmo. Porém, no momento do desespero, desconsideramos tais fatos e recorremos ao órgão como se fosse o mantenedor da paz urbana, a representação da justiça, o braço da ordem. É o medo, o susto, a carência de apoio que nos leva a recorrer à polícia quando da ocorrência de um crime. Não a lógica.

Deixo a delegacia algo entre atônito e iracundo. Adianta prestar queixa? A exigência do documento comprobatório de que o que é meu é meu é ratificada pelo polícia como necessária ao registro da queixa. A essa altura o marginal vai longe, certo da impunidade que grassa no país. Ainda avisto o carro da ronda; tento ir atrás dele, mas o motorista, agora com um colega seu no veículo, dá partida, deixando-me para trás, desamparado. Talvez fossem almoçar; talvez fazer coisas mais urgentes... Ou apenas tenham ido atrás das raparigas do bairro, abundantes.

Desgraçados!
 
 
* Cumpre lembrar que esse texto foi escrito anos atrás. Hoje não pensaria em tal hipótese. 

quarta-feira, 27 de março de 2013

Relato de um assalto (parte I)

Escrevi esse texto em 2004, após ter sofrido um assalto e ter tido uma péssima assistência da polícia. Foi meu primeiro texto que veio a público, postado aqui tal qual foi escrito. Por ser um tanto extenso, foi dividido em partes. Essa é a primeira.

O assalto

Trinta de maio. Uma segunda-feira. O dia avança para uma hora da tarde. Dirijo-me ao ponto de ônibus. O sol forte obriga-me a procurar a companhia da sombra por onde passo. Perto de meu destino, atravesso a rua – um elevado muro oferece sombra aos transeuntes. Vêm em minha direção algumas crianças. Estão indo para a escola. Logo atrás, suas mães – imagino que sejam –, acompanhadas de mais duas ou três [crianças]. Uma dessas, uma menina, assemelha-se muito à outra que vai à frente. Poderiam ser gêmeas, não fosse a diferença de idade. Segue-se a elas um rapaz, com seus dezoito anos, mais ou menos. Camiseta cinza, calção branco, descalço, a dobrar um pequeno pedaço de papel. Um pouco adiante, um garoto – aqui já me falha a precisão da lembrança. Não recordo em que sentido seguia: se a meu encontro ou acompanhando-me à distância. Não importa. Perto dali, pessoas em outro ponto de ônibus aguardam sua condução.


Passam por mim as crianças e suas condutoras – é quando faço as observações acima – e, ao aproximar-me do rapaz – dobrando o pedaço de papel com ambas as mãos –, este tenta iniciar um diálogo:


– Ei, conhece o Alexandre?

– Não.

– O Alexandre, rapaz.

– Não, conheço não.

– Ei, vem cá!


Nesse ponto, acelero os passos e dou visíveis mostras de aborrecimento. Penso tratar-se de um diálogo inoportuno, apenas – já que sou acometido de tantos. Porém, sua insistência é curiosa e intrigante. Havia algo diferente naquilo tudo. No entanto, não me passou pela cabeça a idéia de que pudesse ser um assalto. Não ali, no bairro onde nasci e cresci. Onde conheço a história de cada muro, de cada árvore, e as pedras me chamam pelo nome. O bairro que afugenta os visitantes com suas ruas estreitas e seu povo truculento. Suas luzes escuras e seu barulho frenético. Um turbulento frenesi em espiral. Pois a mim não assustava; estava afeito à convivência com ladrões, assassinos, viciados, traficantes, marginais de toda espécie. Pessoas de aspecto aterrador: tatuagens, gingas, barba mal-feita, cabelos “com estilo”, roupas características, cigarros – de todo tipo – à mão, pele enegrecida – pela imposição congênita ou pelo vigor do sol.


Habituei-me a tudo isso e não vislumbrei a possibilidade de assalto que se me ocorria. Nesse momento, o tal Alexandre havia sido dispensado do diálogo e o sujeito insistia para que eu lhe desse ouvidos, mas não de forma atemorizante.


– Espere aí, rapaz!

– Não posso!

– Vem aqui, cara!

– Estou atrasado! Tenho que pegar o ônibus!


A conversa já ia nessa altura quando sobreveio o anúncio fatídico. Aquele que nos coloca de frente para o absurdo, que nos faz pensar “não pode estar acontecendo comigo!”, que traz à tona nossos medos e fraquezas. A frase traduz nossa fragilidade, nossa suscetibilidade a um agressor, pronto a nos tirar os bens, conquistados a duras penas. O “isso é um assalto” não foi o clássico visto nas telas. O indivíduo, doravante marginal, mudando o semblante e o tom de voz, desce a mão à cintura e anuncia:


- Bicho, tô com uma arma aqui, embaixo da camisa!


Estremeci. Sucedeu-me o pensamento anterior (“justo comigo!”). Um jejum, uma virgindade de mais de quarenta anos foi rompida – o primeiro da família a ser vítima do ato horrendo. Senti a impotência invadir meu corpo. Eu ali, ironicamente entre duas delegacias, vitimado pelo destino: se não tivesse ido por aquele caminho? Se tivesse saído de casa mais cedo? Ou mais tarde? Faria diferença? São questões de escape para o fato real e concreto. A dúvida, porém, será eterna: estaria ele mesmo com uma arma – branca que fosse? É mais uma angústia que cerca a estupidez do ato.


Ele deve ter acrescentado algo ao anúncio sinistro, mas o impacto causado em mim naquele momento impediu-me de registrar o que foi. Lembro que parei de pronto, esperando as ordens do marginal. Devo ter dito algo, mas mecanicamente, sem raciocínio. Acudiram-me à memória recomendações de como portar-se em caso de assalto: obedecer ao agressor, não fazer gestos largos, concordar com ele, não reagir. Norteei-me em alguns desses princípios enquanto o fato transcorria.


O marginal aproxima-se, mirando minha algibeira direita, e ordena, voltando ao tom tranqüilo, mas agora macabro:


- Me dê o que está no seu bolso!


Desgraçado! O aparelho celular estava no fundo [do bolso]. Como ele viu? Talvez quando consultei as horas, já que ele fazia as vezes de relógio. Ou talvez o contorno de seu corpo contra o tecido tenha sido o suficiente. Ou ainda ele estivesse me espreitando há dias. Senti a dor pungente da perda. O dispositivo que me acompanhara por sete meses iria para as mãos do bandido, dali a ganhar o mundo. As pessoas aprisionadas docilmente ali, apavoradas com a violência, iniciam um clamor de despedida; e o marginal, com o aparelho nas mãos, parece-me um bruto, alheio à tecnologia que ora detém, perguntando imbecilmente: “Como é que desliga aqui?”, e entregando-me para fazê-lo. Se a sentença de assalto mostrou alguém habituado ao crime, seu comportamento vis-à-vis ao objeto roubado denunciou um símio insipiente.


Ficou alguns segundos contemplando o aparelhinho. Na certa avaliando a “aquisição”: se estava em boas condições, quanto lucraria com ele, onde se desfaria dele. Num lance de cinismo, indaga onde moro. Não consigo vislumbrar muitos motivos para tal pergunta: se não morasse por ali seria bom para ele? Não o veria mais e não teria como “acertá-lo” depois? Ou ele gostaria que morasse perto? Voltaria a me atormentar, continuamente. Não sei. Não sei nem se queria saber a respeito, ou se era apenas uma forma de “finalização”. Sei que respondi, forçosamente, algo impreciso. Contentou-se com isso. Deu as costas e saiu caminhando, com a naturalidade de quem tem a consciência tranqüila e os atos justos, ilibados. Prosseguiu seu caminho como se tivesse encontrado um velho conhecido, conversado amigavelmente e por fim se despedido dele.

Desgraçado!

domingo, 24 de março de 2013

Mal comparando


Cidade ruim
Porque ela não tem
Moleque na rua
Garota na praça
Cachorro vadio
Zoada de bicho
Um bando de gente
Pra 'qui e pra lá
Mendigo pedindo
E sol de rachar

É pedir demais?
Mas eu sei o que é
Isso é saudade
De minha cidade
Lugar diferente
Daqueles que a gente
Prefere morar
Você a conhece?
Se diz-me que não
Te levo eu lá

quarta-feira, 20 de março de 2013

Mulheres, concordo com vocês, mas...

Mulheres, concordo que os homens não prestam. Mas esse não é o problema. A questão é que vocês os acompanham. Sim, porque se tem alguém que pode fazer os homens mudarem de comportamento são vocês. Se vocês querem que eles façam algo ou parem de agir como agem, mexam-se para isso. Enquanto vocês não pararem de correr atrás de homem – o que parece soar estranho, mas é isso que acontece – eles não vão mudar.

Quando falo em correr atrás de homem me refiro ao seguinte: os homens fazem de tudo para agradar as mulheres: mudam guarda-roupa, perfumes, modos, papo. Estudam e praticam abordagens diversas. Ou seja, tornam-se interessantes. Mas o que eles querem de fato é curtir a companhia feminina, sem compromisso na maior parte das vezes. Não vou dizer que estão errados nisso. Quem quer sair numa noite e arrumar alguém para ter um relacionamento duradouro de cara? Isso seria consequência. Já as mulheres apostam unicamente na beleza – no que somos totalmente gratos, frise-se –, sonham com o príncipe encantado, mesmo que em versão moderna. Aprontam-se e ficam a esperar os pretendentes, em atitude totalmente passiva. O único trabalho que têm é selecionar um dentre os candidatos. A partir daí passam a viver em função do relacionamento, em função de um cara que apareceu de repente e por acaso ficou – e nem se sabe se quer mesmo permanecer. Não importa o que o homem faça, ela vai seguir insistindo na relação, como que para fazer valer o esforço que teve em escolhê-lo em meio a tantos.

Seria mais útil se as mulheres investissem nelas mesmas, e não ficar esperando uma relação para se dizerem felizes. Façam suas vidas, e alguém suficientemente interessante irá aparecer. Beleza nunca segurou homem, porque beleza passa e são muitas agraciadas com esse dom. Já uma mulher interessante, dona de si, divertida, espontânea, que sabe se dar o valor, que não faz vista grossa para as trapalhadas e mentiras dos homens, é difícil de encontrar, e por isso mesmo mais difícil de um cara largar. É verdade que isso está mudando, mas tão lentamente que não se pode considerar regra. As mulheres estão avançando nas universidades e no mercado de trabalho, assim como no ramo executivo, mas não são poucas que, mesmo assim, sentem que só podem ser felizes com um homem a seu lado.

Se os homens são tão ridículos em seus relacionamentos é porque encontram espaço para isso. É comum a mulher anular-se, buscar sempre agradar o parceiro, deixando de lado sua individualidade, esquecendo que está compartilhando uma parte de sua vida, e não colocando-a à disposição do outro. Quem abandona sua própria vida durante uma relação tem muita dificuldade quando ela termina. Sofrem bastante por terem aniquilado sua autoestima. Quem sabe o valor que tem não se desespera quando o outro ameaça ir embora. Simplesmente o ajuda a cair fora, pois sabe que amor de verdade não está escondido em uma única pessoa que vive em algum lugar do mundo, mas pode ser encontrado em todos aqueles que compartilham nossos valores e respeitam nossa individualidade.

domingo, 17 de março de 2013

Uma viagem de ônibus

Muita gente no ponto. Naturalmente. É assim em dias normais. A um canto estão os trabalhadores da construção civil, facilmente identificados por seus trajes: bermudas, camisas-regata, bonés, sandálias, mochilas às costas ou às mãos. Morenos, queimados do sol, barba por fazer, sem dispensar a galhofa, cantam a garota aprumada que passa desdenhosa. Mais à frente, a garotada que vai para o colégio. Fardados, carregam as mochilas e os livros coloridos. Casais de namorados riem baixo, celebrando o novo dia sob beijos, enquanto os mais moleques puxam os cabelos das meninas mais velhas, que em vão ralham com eles. Aqui e ali grupos de mulheres conversam alto, tratando dos últimos acontecimentos: o programa da televisão do dia anterior, o companheiro de trabalho, o novo emprego do marido, os feitos dos filhos. Carregam bolsas e pacotes com os mais diversos conteúdos. Roupas variadas: preto, branco, colorido, salto alto, baixo, sandália, calça, saia, cabelo longo, solto, curto, preso, amarelo, vermelho. O homem lê tranqüilamente seu jornal enquanto espera a condução. Um alvoroço. Para. Olha. Não é a sua. Volta a ler. Nova agitação. Verifica o letreiro. É ele. Está lotado. Vem outro atrás, vazio. Passa direto. É ir no primeiro...

Muita gente na parte da frente, ocupando o lugar reservado aos deficientes e idosos. Difícil chegar à catraca. O cobrador, com óculos escuros para despistar os olhos sonolentos, solicita a jovem a ceder lugar a uma velha senhora. Ela resmunga: “mas é cada uma!”, e sai indignada. O garotinho de dois anos, no colo da mãe, observa atento as pessoas que sobem os altos degraus. Algumas abatidas, outras sorridentes; umas lhe são indiferentes, outras passam-lhe a mão na cabeça ou apertam sua bochecha. O motorista espera a última pessoa subir o primeiro degrau, o suficiente para que a porta se feche sem ferir ninguém, e dá nova partida, já sob protesto dos passageiros apressados.

Não há assento vazio, e a dúvida dos que já pagaram a passagem é onde se acomodarão. Deve ser onde primeiro alguém se levantará. Fardas ajudam a identificar locais favoráveis. Outros optam por encaminhar-se ao fundo do veículo, onde possivelmente descerá logo alguém. Geralmente fazem isso a maioria dos homens e as poucas mulheres destemidas. As demais preferem permanecer em pé no meio da condução a sentarem-se com os homens na parte de atrás. 

O homem com sua pesada mala sofre por não ter quem o ajude e indigna-se com o outro que oferece-se à jovem em pé a seu lado para segurar seu caderno. Perfumes e demais odores misturam-se à medida que as pessoas vão passando e se amontoando. O ônibus freia de repente, atirando as pessoas à frente – ao menos os que podem se mover. Os que não, ficam imóveis, escorados uns nos outros. Nova onda de reclamações e a condução prossegue. Alguém se levanta. Vai descer. Expectativa para sentar no lugar vago. Em nossos tempos, não se espera mais que ele “esfrie”. Existe pressa. Tenta-se jogar a bolsa, correr, fingir ignorar, perguntar se o camarada perto vai sentar. Ao vencedor, o lugar.

O ônibus segue direto pela pista ondulada. Ninguém desce. Conversas dispersas tentam distrair o aluno que estuda para a prova. Pegou o ônibus ainda vazio com esse intento. O menino que subiu por trás insta com os passageiros para que lhe comprem doces – é para ajudar a família –, enquanto um velho doente à frente pede para que alguém lhe pague a passagem. O ônibus para, finalmente. As mulheres descem apressadas, despedindo-se de suas companheiras. Os homens cumprimentam-se cordialmente e desejam mutuamente um bom trabalho. Os que descem sentem-se aliviados e acenam uma última vez aos que ficaram, como que para desejar-lhes boa sorte durante o resto do percurso.

Ao final, cada qual segue sua vida ao descer do coletivo. Preocupam-se com seus problemas, suas obrigações. Deixa lá dentro o sentimento e a condição de ser social, de respeitar o espaço alheio. O coletivo congrega pessoas diferentes, com ideias diferentes, de posições sociais diferentes. Mistura os ânimos, as gerações, as modas. Quando se está em seu interior sabe-se que todos são iguais. É necessário ceder – na arrogância, na prepotência, nos sentimentos. Exerce a função de nivelador, tornando as pessoas iguais por uns instantes, até descerem e tomarem seu caminho... Até a próxima viagem de ônibus.

domingo, 10 de março de 2013

"O que importa é ser feliz"

É curioso o fato de as pessoas afirmarem que o que importa é ser feliz, mas cerceiam a liberdade em fazermos as escolhas para esse fim


“O que importa é ser feliz!”... Quem nunca ouviu essa frase antes? Ela é adorada pelas pessoas que pregam desapego por modelos recomendados pela sociedade, quando julgam estar quebrando paradigmas em prol da própria felicidade. Vão de encontro a preconceitos amorosos, fazem loucas viagens, correm riscos em esportes radicais e outras aventuras do gênero. Não são poucas as pessoas que mantêm o bordão sob a manga da camisa, prontas para sacá-lo sempre que alguém quiser duvidar de sua felicidade. Claro, o que importa é ser feliz.

De fato, ser feliz é o que importa – os filósofos gregos já falavam isso. A busca de toda a vida seria a felicidade – e nunca se chegou a um consenso sobre como alcançá-la. As pessoas que invocam essa frase estão certíssimas nesse sentido. O decepcionante é que a maioria delas a usa apenas em benefício próprio, ignorando que os outros também possam ser felizes à sua maneira. Pior: elas pregam que o importante é ser feliz, mas desde que se escolha uma dentre umas poucas opções possíveis. Não são as opções da maioria, mas são opções de um consenso dos dissidentes da normalidade.

O que importa é ser feliz, escolhendo o curso superior de sua vontade, mas você não pode ser feliz sem ter um curso superior. O que importa é ser feliz, não importando a idade de seu companheiro amoroso, mas não dá pra ser feliz sem ter ninguém. O que importa é ser feliz, tendo uma religião cool, mas nem pensar abraçar uma fé desconhecida. O que importa é ser feliz, ouvindo um estilo musical pretensioso, mas é passível de agressão aquele que curte um estilo que não se propõe a nada.

A dificuldade em lidar com o diferente é notória há séculos, o que não se justifica é agir com intolerância com aqueles que decidem percorrer caminhos incomuns, buscando apenas ser felizes. Todos têm direito a procurar o que lhes fazem felizes, o que só pode ser feito por experimentação. Nem sempre os modelos bem conhecidos são adequados ou suficientes para todas as pessoas, considerando o vasto universo de individualidades existentes. Devemos trabalhar nosso respeito pelo próximo a fim de criarmos o hábito de ouvir e aprender com os diferentes, pois o comum é fácil de encontrar, mas o diferente é uma preciosidade.

sexta-feira, 8 de março de 2013

Mulher


Mulher, que me trouxe ao mundo
e com amor profundo, me fez viver
Mulher, que me ensinou as letras
bonitas, direitas, e a escrever
Mulher, que se fez amiga
e por toda a vida, irei lembrar
Mulher, que me encanta a alma
e com sua calma, me faz sossegar
Mulher, alegria de minha vista
formosidade linda, inspiradora e pura
Mulher, com seu toque de encanto
faz do bravo manso, e até mesmo cura
Mulher, sei de tuas dores
sejam de amores, ou outras mais
Mulher, quero estar a teu lado
abandonar-te a teu fardo, jamais
Mulher, são teus meus ouvidos
pode contar comigo, quando quiser
Mulher, és uma fonte na vida
que jorra a doçura do dia, e aplaudida de pé

domingo, 3 de março de 2013

Sugestão de leitura



Título: A Bíblia e sua História – o Surgimento e o Impacto da Bíblia
Autor(es): Stephen M. Miller & Robert V. Muller
Editora: Sociedade Bíblica do Brasil (SBB)
ISBN: 978-85-3110-890-7






Vivemos uma época onde pode-se abraçar qualquer causa, seja ela contra ou a favor de algo. Embora a profissão por uma bandeira não esteja livre de consequências, a exemplo de riscos à integridade física e assédio moral, certamente estamos bastante avançados em relação aos viventes da Idade Média, quando por muito pouco arriscava-se a vida. A defesa ou o ataque contra o que quer que seja têm um princípio em comum: conhecimento a respeito do símbolo que se almeja promover ou do ícone que se pretende derrubar.

A Bíblia tem, durante séculos, representado bem ambos os papeis: enquanto uns a abraçam em desapego pela própria vida, outras a rechaçam como se disso dependesse sua existência. Porém, embora esses grupos antagônicos divirjam quanto à posição que mantêm em relação a esse livro, acabam por comungar no aspecto que deveria fundamentar ambas as visões: o conhecimento – no caso, a falta dele. Não o conhecimento traduzido por saber várias passagens da obra, mas o metaconhecimento que nos permite traçar-lhe uma silhueta no contexto em que ora está inserida. A motivação para o desinteresse na busca de tal conhecimento talvez seja devido ao fato de o incrédulo achar o livro imerecedor de tamanha atenção – ou temor por descobrir algo que o faça mudar de ideia – e, no caso do crente, a certeza de que não é necessário tanto debruçamento sobre o óbvio – ou a desconfiança de ter abalada sua preciosa fé.

O livro mais vendido e publicado da história da humanidade é, de longe, também o mais importante. Sob sua campanha, reinos foram erguidos, ao passo que outros foram destroçados; vidas foram perdidas e milhares se salvaram; casamentos foram por ela abençoados, e igual número foi devido a ela desfeitos; perseguições foram levadas a cabo, enquanto muitos tiveram que se esconder para protegê-la; mesmo idiomas foram criados unicamente para sua tradução. Independentemente da visão religiosa e apreço que se reserve pela Bíblia, negar sua importância e efeitos sobre nós é negar um dos pilares sobre o qual nossa sociedade está assentada. Conhecer sua história e constituição é, no mínimo, item de curiosidade. Conhecer seu impacto e sua filosofia, imprescindível para aqueles que vivem de acordo com seus princípios. Saber de suas limitações e abrangência, essencial para os que se prestam a enfrentá-la.

Muitos livros foram escritos sobre a Bíblia, e muitos mais irão ser publicados. Entre os que já temos à disposição destaca-se A Bíblia e sua História – o Surgimento e o Impacto da Bíblia, de Stephen M. Miller & Robert V. Muller. Embora publicado por uma editora cristã (a Sociedade Bíblica do Brasil – ou SBB), o livro se afasta com efeito da visão que a maioria dos cristãos mantêm para com as Escrituras. Os autores buscam apresentar de maneira concisa (mas não negligente) os principais estudos e conclusões sobre a Bíblia – trata-se de um livro informativo, e não devocional. Há fatos realmente polêmicos, como a teoria de que o Pentateuco (os cinco primeiros livros do Antigo Testamento, base do judaísmo – onde é conhecido por Torá) não foi escrito por Moisés, mas por cinco autores diferentes, cujos estilos de escrita encontram-se imiscuídos nos textos. Igualmente digno de nota é a revelação dos trechos que se perderam, foram reescritos ou adicionados por ocasião das diversas cópias realizadas pelos escribas ao longo de séculos. Mas há também relatos sobre as versões de suas traduções, descrições dos cenários onde alguns trechos foram escritos, características dos idiomas de origem, etc.

O livro é primoroso, ricamente ilustrado. A diagramação foi projetada para que o livro seja lido inclusive por quem não dispõe de muito tempo, pois cada grupo de duas páginas (aquele formado quando o livro está aberto) contém um determinado tema, podendo-se, dessa forma, ler duas páginas por dia sem prejuízo quanto ao entendimento. O formato grande também se presta à disposição organizada do texto e das figuras, evitando que haja fadiga durante a leitura.

Embora o leitor mais purista possa se surpreender com as revelações do livro, em momento algum os autores questionam ou invalidam o caráter doutrinário e algo divino da Bíblia, até mesmo porque esse valor é dado pelas convicções pessoais que cada um lhe atribui. Assim como silvícolas idolatravam totens de madeira e nossos primeiros ancestrais cultuavam os astros, a Bíblia representa um símbolo importantíssimo para o cristianismo, além de influenciar muito da cultura secular em que vivemos. Por isso, venerá-la sem compreendê-la ou criticá-la sem entendê-la são atitudes que desmerecem sua eminência.