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terça-feira, 25 de fevereiro de 2014

A lição que ninguém quis aprender

Não faz muito tempo, os termos “rei do camarote” e “agregar valor” se tornaram parte integrante do vocabulário dos que usam ao menos um pouco a Internet. O motivo foi um vídeo de um suposto endinheirado que torrava milhares de reais em uma única noitada, e que gerou uma onda de repúdio à conduta tão hedonista. A matéria foi divulgada em um veículo de grande projeção, mas depois ficou-se sabendo que se tratava de uma montagem de um grupo humorístico: o ricaço não era ricaço; a esnobação não era esnobação; a verdade não era verdade e a indignação tornou-se em risos. 

Grande parte dos internautas deitaram a tripudiar sobre o conglomerado jornalístico responsável, acusando-o de não possuir jornalismo profissional – principalmente os que discordam da ideologia política do grupo. Sim, eles podem ter errado, mas sempre é bom lembrar que o campo do erro é a grande interseção de todos nós, seres individuais ou entes coletivos, legalmente constituídos ou livremente independentes. E afinal, mesmo que a pessoa que aparece no vídeo não fosse quem dissesse ser, sabemos que há pessoas reais que se portam tal qual descrito ali – inclusive surgiram outros vídeos na Internet de pessoas que reivindicavam para si o título de “o verdadeiro rei do camarote”. Mas houve uma grande lição nisso tudo, e não foi o reforço com o cuidado de o jornalista analisar suas fontes. Foi uma lição importante, mas que a maioria preferiu ignorar.

Gente endinheirada torrando dinheiro com frivolidades sempre causa comoção nas pessoas. Proferem injúrias, conjuram impropérios, chamam-lhes maus. As pessoas se indignam com o fato de haver tantas pessoas padecendo fome, sede, frio; necessidades as mais diversas, enquanto há outras alheias a tudo isso, gastando seus recursos em benefício próprio, com vistas apenas à diversão. É inegável que esse dinheiro poderia ajudar muitas pessoas, mas a questão da obrigatoriedade de contribuir com causas sociais é bastante melindrosa. Mas esse ainda não é o ponto.

Diversos afirmaram que, se estivessem no lugar do rapaz do vídeo, ajudariam muitas pessoas, doando grandes somas de dinheiro. A questão é: não é necessário ser rico para ajudar alguém. Para os realmente necessitados, toda ajuda é bem-vinda. E não apenas de dinheiro. Pode ser uma palavra de consolo, doação de utensílio, mesmo usado (roupa, eletrodoméstico, móvel), uma carona, uma hospedagem, uma cesta básica, um conselho. A maioria de nós pode ajudar minimamente de alguma forma, mas é mais confortável nos escondermos sob a declaração de que não podemos ajudar porque não somos milionários o suficiente. Mas o que é pouco para o rico, é muito para nós. E o que é pouco para nós, é muito para alguém. Basta procurarmos com vontade para encontrar quem necessita.

Há idosos abandonados em asilos que ficariam felizes em ter com quem conversar em tardes de domingo. Há crianças lutando sozinhas contra o câncer sem saber até quando estarão vivas. Há pessoas morrendo de fome nas ruas imundas, que ficariam satisfeitas com o resto de nossas refeições que desperdiçamos. Há jovens estudantes na periferia sem qualquer perspectiva de futuro, optando pelo crime como caminho mais óbvio por não ter quem lhes indique outro caminho. Há gente morando em casebres infestados de insetos que os picam constantemente. Há crianças abandonadas em orfanatos que nunca saberão o que é uma família. Há menores infratores que pioram a cada vez que são detidos em centros de recuperação, sem nunca saber o que é amor. Há presidiários que nunca conseguirão mudar de vida por não saberem como isso é possível. A maior necessidade do mundo não é resolvida com dinheiro, mas com afeto, com compadecimento, com uma palavra de conforto e boa vontade. Criticar quem tem muito dinheiro como se apenas eles tivessem a obrigação de ajudar é ter apontado quatro dedos acusadores para si. A oportunidade de ajudar está mais perto do que supomos, e é mais simples do que imaginamos.

segunda-feira, 17 de fevereiro de 2014

Militantes

Será a recente onda de ativismo pelas minorias um movimento sólido ou apenas um modismo?


Protestos sempre existiram na sociedade moderna – direitos dos negros, direitos das mulheres, direitos dos trabalhadores. Cada grupo defendia suas causas e muitos foram os benefícios alcançados através dessas manifestações. Hoje em dia podemos contemplar um novo levante de insatisfeitos erguendo bandeiras, mas, em geral, divergem em um ponto em relação aos protestos de outrora: esses manifestantes defendem outras classes que não a sua*. Ou seja, não pertencem ao grupo pelo qual lutam. São idealistas de uma causa, movidos, à primeira vista, pelo altruísmo e empatia. Será mesmo?

Acredito que, antes de sermos seres sociais, somos seres biológicos, com uma constituição pré-concebida do que viremos a ser durante o curso da vida. Esta talvez seja a razão de existirem perfis psicológicos que se repetem nas mais diversas sociedades, compondo um padrão mais ou menos definido (a quantidade de padrões diverge entre as correntes psicológicas: algumas afirmam serem quatro, ou nove, enquanto outras atestam que são onze ou treze, e outras mais). Entre esses grupos, parece haver (e isso é, advirto, percepção minha) um tipo contestador e rebelde, que defende sua ideologia acima de tudo, não importando que para isso tenha que afrontar a outros. Ao que me parece, o atual modo ativista se presta bem a esse papel comportamental. Tendo a causa como mero pretexto, a ênfase está no método adotado.

Não faz muito tempo, houve um dia oficial de paralisações sindicais país afora. Como fui impedido de acessar as instalações da empresa onde trabalho, decidi visitar minha família, que mora a poucas centenas de quilômetros. Qual não foi minha surpresa (aqui, eufemismo para indignação) ao ser informado que a estrada (de administração federal) estava bloqueada devido aos protestos. Após mais de uma hora de trânsito lento, consigo sair da cidade por uma rota alternativa – que, soube depois, só não foi também interditada devido à falta de pessoal suficiente. Essa é uma característica desses novos movimentos: acreditar que suas causas estão acima de tudo, e que todos devem concordar com eles e aceitar participar direta ou indiretamente de suas reivindicações, uma vez que acreditam buscar o bem de todos – embora elejam algumas minorias em especial.

É louvável defender uma causa, principalmente quando não se pertence à classe em questão, mas é importante não subverter as regras sociais básicas com o intuito de levá-la adiante – a menos que o objetivo seja de fato substituir regras sociais elementares. Impedir o direito de ir e vir, por exemplo, não me parece um bom método para angariar simpatizantes, além de ser uma boa demonstração de que desrespeitar as leis e os cidadãos não envolvidos no caso é algo que se deseja promover – e não estamos falando de desobediência civil, embora muitos deles declarem agir de acordo com esse conceito. Não se trata de uma condenação do ato de protestar, mas de uma crítica ao protesto vazio e sem objetivos, sem alvos, que banaliza o direito cívico de promover manifestações legítimas.

Um agravante para esse novo movimento é o fato de que, por ter se tornado politicamente correto – até mesmo cultdefender causas sociais (ou ambientais), o coro tem engrossado com vozes tão-somente situacionais, ou seja, pessoas não engajadas de fato, mas que acreditam ser moralmente recomendável defender alguma causa – querem aparecer. À primeira vista, isso parece ser bom, mas esses membros pouco envolvidos parecem contribuir mais com trapalhadas do que com atitudes sérias. Confundindo ideias e vislumbrando situações que não existem, terminam por propagar antipatia ao movimento do qual fazem parte. Mas não apenas eles. Alguns dos militantes mais aguerridos também enxergam um mundo que precisa ser salvo, reduzindo-o tão somente a sua visão partidarista, maniqueísta, autoproclamando-se salvadores da humanidade.

Nisso incorrem em uma de suas maiores fraquezas: a incoerência. Não raro se valem de argumentos fracos e atitudes que reprovam nos outros, mas que empregam largamente, como que justificadas pela grandeza de suas atitudes. Afirmam estudar e saber mais que qualquer outro sobre os assuntos de seu interesse (embora limitem-se a uma visão unilateral do mundo, lendo apenas pensadores que sustentam seus princípios), tentando com isso minar um debate que poderia ser proveitoso. Não admitem opinião contrária as suas, alegando que tudo já foi discutido e deliberado por eles, não sendo mais necessário argumentar a respeito – assumindo o papel de donos da verdade. Quando em debate, exasperam-se, vociferam e realizam ataques pessoais. Desaprovam qualquer ideologia contrária, meneando a cabeça em sinal de desprezo, sem querer ouvir ou se esforçar em rebater os argumentos alheios, julgando seus adeptos como intelectualmente inferiores. Ou seja, são tão intolerantes quanto o pior conservador, diferenciando-se deste apenas por estar do outro lado no campo das ideias.

É comum também aderirem a uma causa sem sequer conhecê-la. São doutrinados por militantes antigos e passam a vomitar suas palavras de ordem, sem checar o contexto dos fatos e se importar de fato com os indivíduos que supostamente defendem. Lembro muito bem de um caso que se passou na universidade de minha segunda graduação, quando uma funcionária do restaurante universitário foi morta pelo ex-marido em seu local de trabalho. Em um grupo de uma rede social da universidade, um aluno filiado a uma frente nacional estudantil postou uma mensagem-clichê convocando os demais estudantes a realizarem um evento em protesto ao ocorrido – sem objetivos claros ou mesmo definidos, se é que os havia. Na mensagem, ele afirmava que a mulher morta era negra e pobre e que esses seriam os motivos de ela ter sido assassinada, e não a falta de segurança generalizada da universidade, onde carros já foram roubados, alunas estupradas e pessoas assaltadas. Não tardou para surgirem comentários contrários à convocação. Em um deles, um aluno desmentiu o fato de a vítima ser negra: estava com uma foto da mesma. Outra aluna levantou uma questão pertinente: será que haviam visitado a família da vítima, ido ao velório, ou apenas aproveitavam o momento para se autopromover? A questão é que, na primeira colocação, a cartilha do movimento ensina que todo pobre é automaticamente negro, e, no segundo caso, não faz menção alguma a conhecer as vítimas de perto: apenas a causa importa; os eventuais personagens não passam de estatísticas frias, sem rostos ou nomes.

Ou seja, muitos deles não pasam de alienados, tão alienados quanto os capitulantes inertes do sistema. Longe de pensarem sobre suas bandeiras, enxergam apenas o que querem, filtrando tudo que lhes chega e compondo mesmo situações que não existem. Embora admitam lutar contra uma espécie de tirania, algumas de suas causas não passam de busca por impor suas convicções a todos, constituindo-se apenas em substituição de uma repressão por outra. A despeito de se denominarem paladinos da justiça, a verdade é que não são. São tão comuns como qualquer outro grupo, apenas divergem dos que estão no poder. Se residissem na Arábia Saudita ou Afeganistão, talvez fossem jihadistas ou xiitas, tentando converter o mundo e condenando os contrários a sua fé. É necessário analisar com bastante cautela quais de suas reivindicações são realmente válidas e quais não passam de romantismo libertário; arroubos ressentidos de pessoas que gostariam de ter participado de fatos políticos importantes ocorridos décadas atrás, mas não eram nascidas.

Muitos são apenas revoltados, e seriam revoltados sob quaisquer circunstâncias. Pessoas desse grupo social-psicológico muitas vezes vestem-se de modo a chocar e provocar, ouvir músicas que os distingam dos demais, transformar a aparência em algo que se possa chamar de bizarro. Outras também tornam-se ativistas. Basicamente, buscam chamar a atenção através da diferença, uma vez que não se enquadram nos padrões seguidos pela sociedade, onde dificilmente seriam notados – e muitos deles abandonam seus ideais ao atingirem certa idade, vencidos que são pelo sistema. Acercam-se de seus semelhantes, leem e discutem apenas livros e ideias relacionadas a sua doutrina, abandonando assim uma ideia plural do mundo, mas pensam que conhecem a realidade, não enxergando que apenas conhecem o universo que construíram para si mesmos. Apesar de constar em suas cartilhas que devem atacar fervorosamente religiões, não se diferenciam em nada de muitos fieis a quem criticam. O discurso repleto de lugares-comuns é um bom exemplo dessa padronização, produto de doutrinação ideológica. E é essa ideologia que pretendem fazer adotada por todos, sem saber se de fato é o que as pessoas almejam e não raras vezes desconsiderando fatores básicos da índole humana e focando em teorias fugidias sem projeto prático de resultados. Concentram seus esforços apenas nos problemas, sem investigar suas causas, baldando seus esforços em resolvê-los de verdade. Em situações extremas, terminam por fomentar problemas de seu interesse, ao patrocinar liberdades individuais que resultam em desastres sociais.

A questão não é pensar ou agir diferente. Muito menos se importar com desfavorecidos. O ponto é ter objetivos claros e coerentes. Construir mudança social através dos instrumentos sociais. Respeitar a liberdade de expressão de opositores e valer-se de argumentos sólidos, e não apenas de vontade e querer. Analisar o mundo de facto livre de pré-julgamentos e juízos de valor a fim de compreendê-lo em sua integralidade. Estão de parabéns os que lutam de acordo com esses princípios.


* Os movimentos antigos citados contavam com simpatizantes de fora da classe reclamante, mas eram muito poucos em comparação com o corpo total.

segunda-feira, 10 de fevereiro de 2014

A matrix do mundo real

Os lutadores de uma causa devem antes preocupar-se em conscientizar as pessoas que há visões alternativas de mundo, mas nunca devem arrogar-se o título de detentores da verdade absoluta.


The Matrix (1999), filme dos irmãos Wachowski, foi um grande sucesso sob vários aspectos. Criou escola com seus efeitos especiais, lançou tendências, influenciou segmentos. Suas intrincadas referências (filosóficas, religiosas, tecnológicas, literárias, etc.) geraram calorosas discussões por parte dos fãs e diversos livros para dissecar os elementos presentes no filme. A obra pode ser analisada (e vista) sob diversos aspectos: apenas recreação, filosoficamente, etc.

De modo resumido, o filme narra uma distopia em um futuro onde as máquinas dominaram os seres humanos e passam a cultivá-los, controlando sua reprodução, mantendo-os em estado de dormência permanente e fazendo-os sonhar todo o tempo, alimentando-se da energia gerada por seus cérebros durante esse processo. Esses sonhos seriam a realidade que vivemos hoje, simulada pelas máquinas. Daí advém o nome do filme: Matrix é o nome do mundo virtual onde os humanos pensam que realmente vivem. No entanto, há um grupo que, de alguma maneira, consegue despertar e sair da Matrix, conhecendo assim o mundo real – um ambiente caótico em uma Terra destruída e escura. Esse pequeno exército entra e sai da Matrix clandestinamente a fim de libertar outras pessoas – motivo pelo qual é perseguido por agentes das máquinas infiltrados na Matrix. Mostra-lhes a verdade: que vivem uma ilusão e que têm a escolha de permanecer desse modo ou despertar para a realidade.

Esse paralelo tem sido utilizado largamente em nosso meio. Diversos grupos alertam que vivemos em uma matrix, iludidos pelo governo, pela mídia, pelo senso comum, pela cultura de massa, pelas convenções sociais, etc. De fato, muitos não se apercebem que no mundo há muito mais do que nos é apresentado. Há opções ocultas, há informações escondidas convenientemente, há histórias e dados forjados, mentiras descaradas, verdades desconhecidas. O acesso a informações nem sempre é fácil, o que contribui para que muitos sigam suas vidas alheios de tudo o que está além da mera visão cotidiana.

Mas a trama do filme traz um fato digno de observação: uma das pessoas retiradas da Matrix se arrepende. Mesmo sabendo da verdade, ela prefere voltar para lá, onde a vida pode ser mais confortável, mesmo sabendo que não passa de um sonho. Para retornar à antiga vida, trai seus companheiros, mas acaba morto. Esse é um caso aparentemente pouco ou nada explorado, mas que pode ser esclarecedor.

Recentemente, os partidários de algumas causas sociais antigas e outras novas, como o feminismo, por exemplo, buscam despertar as pessoas para suas lutas, mais ou menos como os personagens do filme. De acordo com eles, estão libertando as pessoas da matrix do mundo real, tornando-as cientes de que são enganadas, de que não enxergam o que não está patente ou de que não vivem a verdade plena como deveria ser. Conclamam-nas a se juntarem à luta. E, como os bravos do filme que libertam os humanos dormentes, consideram que os libertos têm a obrigação de segui-los. Se não o fazem, ou se não os ouvem, muitas vezes são insultados e julgados de diversas maneiras. Embora seja louvável querer romper com o tradicional, principalmente se pernicioso, há uma questão a se considerar.

Mostrar que há outras realidades além da ordinária não significa que elas sejam mais desejáveis que a que se conhece, ou mesmo melhores. Por isso a motivação da luta não deve ser por converter alguém ou recrutar colaboradores, mas sim de dar-lhes o poder da escolha. Escolhas só podem ser feitas quando há opções, para o que deve-se ir além do que está aparente, e para isso os movimentos se prestam. Mas isso não significa que sua visão do mundo real esteja sempre correta, absolutamente. Ela pode ser apenas mais uma realidade paralela, não-intencionalmente enganosa. Por que não admitir que algumas pessoas, conhecendo as supostas ilusões do mundo atual, prefiram as coisas do jeito que estão? Talvez elas nem sejam ilusões afinal. Ou sejam só um pouco, de modo que não se justifique uma mudança radical que não proporcione grandes benefícios.

Afinal, quem sabe se não há de fato diferenças no comportamento de homens e mulheres? Quem pode dizer que o “padrão de beleza” é realmente superficial? Pode ser que as pessoas gostem mais de viver em um mundo consumista que compartilhar tudo com todos. Deve haver os que prefiram mesmo aceitar todos os dogmas de uma religião, seita ou partido. O imprescindível, e essa deve ser a luta, é ter à disposição opções que tornem as escolhas uma decisão pessoal. Qualquer tentativa de premer quem quer que seja a escolher um determinado caminho invalida a luta pela verdade. A liberdade de escolha é o bem maior que justifica essa luta.

segunda-feira, 3 de fevereiro de 2014

Da Obrigação do Beijo Gay ou A Mídia, Essa Grande Lente de Aumento

Em meu primeiro curso de inglês, quando acabava de sair da adolescência, certa feita o professor perguntou se a mídia influenciava ou era influenciada pelas pessoas, ou seja, se ela ditava novos padrões e tendências ou se apenas mostrava o que existia. Na ocasião, propus que a mídia funcionava como uma lente de aumento: exibia algo que ocorre em escala pequena para um público enorme (é assim que expressões de uma região se espalham país afora). Até hoje ainda penso que essa é uma boa representação de como a mídia funciona na maior parte dos casos.
 
Há poucos dias houve o primeiro beijo gay protagonizado por dois atores no horário nobre da maior emissora de televisão do país. Em programas anteriores, algumas cenas foram gravadas, mas eram sempre suprimidas, nunca indo ao ar. Já houve o beijo feminino em uma emissora de menor porte, portanto, sem tanta repercussão. Há tempos existe uma cobrança por parte dos militantes pró-homoafetividade para que cenas de beijo entre homossexuais fossem exibidas em folhetins. E ele finalmente veio. Mas por que agora e não antes?

O Brasil é um país enorme, com uma grande população, culturalmente diversa, mas semelhante em alguns aspectos. Em essência, trata-se de uma sociedade conservadora – embora a maioria das pessoas não atuem nesse sentido. A maioria apenas vive despreocupadamente, o que inclui permanecer seguindo os costumes reinantes no meio, ou seja, é um conservadorismo inconsciente – afinal, o que esperar de uma sociedade vazia de educação e cultura? Sabemos que a liberalidade acompanha o desenvolvimento econômico: quanto mais desenvolvida uma localidade, mais liberal será seu povo. Temos poucos centros urbanos razoavelmente desenvolvidos aqui, e, de fato, é fácil perceber que são claramente mais liberais que regiões interioranas. E é aqui que entra a lente de aumento midiática, uma vez que é nesses grandes centros que as produtoras de televisão estão instaladas.

A mídia, através de propagandas ou programas televisivos, busca retratar características, costumes, acontecimentos, tradições de algum segmento de nossa sociedade. E há vários deles: o caipira, o nordestino, o religioso, o boêmio, o boa-praça, a ovelha-negra, etc. São tipos bem conhecidos, alguns comuns em todas as regiões e, embora sempre haja a esteriotipação (de modo por vezes injusto), esse é o modo encontrado para caracterizar o personagem perante o público, que rapidamente o identifica. E, para o identificar com sucesso, as produtoras evitam retratar personagens representantes de nichos pouco conhecidos. Mas nem sempre.

Muitas vezes os autores dessas produções escolhem um tema que acham importante tratar, seja por motivação pessoal, intenção de discutir questões sensíveis ou ainda despertar nos telespectadores curiosidade ou atenção para algo que mereça alguma consideração. Desse modo, questões como doenças pouco compreendidas, imigração ilegal, tráfico internacional de pessoas, barriga-de-aluguel, dentre várias outras, já foram temas em novelas brasileiras. Mas a escolha do que retratar em suas tramas segue alguns critérios. E não chocar a sociedade em peso invariavelmente é um deles (veremos o porquê adiante).

A homossexualidade vem sendo discutida há tempos e cada vez mais tem ganho espaço – e vale citar que as novelas dos canais abertos têm contribuído bastante para isso, pois, ainda sendo as maiores formadoras de opinião do país, sempre retratam os gays como pessoas boas e gentis, ajudando-os a conquistar a simpatia do público – o que não significa que a conversão dessa empatia pelo personagem para o mundo real seja integral. Sabemos que em alguns lugares está se tornando menos incomum demonstrações públicas de afeto, mas não em outros – a maioria, por enquanto. A decisão da produtora em finalmente exibir a tão cobrada cena vem no embalo da abertura que esse tema tem conseguido. Ou seja, utilizando seus poderes de difusão em massa, projetou algo que acontece timidamente, às escondidas, para um público numeroso e diversificado, alegrando uns e decepcionando outros, o que é natural em uma sociedade tão heterogênea como a nossa – e vale lembrar que o novo nunca é unânime. Mas a pergunta ainda ressoa: por que não antes?

Algumas pessoas querem imbuir produtoras e emissoras de obrigação moral de combater o que quer que seja. Mas o fato é que elas não têm. O modelo de negócio da televisão ainda hoje é a captação da atenção dos telespectadores através de programas que despertem seu interesse a fim de exibir comerciais de produtos e serviços. A missão dessas empresas não é quebrar tabus, mas promover o comércio através de propagandas. Estamos em um tempo em que damos preferência a empresas com programas de responsabilidade social e ambiental, mas isso é um requisito não-fundamental para as companhias. Trata-se de um diferencial competitivo. O objetivo das empresas de comunicação não é mudar o mundo ou transformar a sociedade. Essa é a razão de ela ter bastante cautela com o que vai ao ar. É por isso que realiza pesquisas junto ao público a fim de medir o índice de audiência e saber se está agradando ou não aos telespectadores. Por este motivo consideram o contexto do momento antes de exibir um determinado conteúdo. Há tempos a questão homossexual frequenta as telenovelas brasileiras, mas as emissoras julgavam que o público de quinze anos atrás não estava preparado para cenas de beijo entre casais gays. Se tais cenas foram exibidas agora, é porque a emissora julgou que a sociedade, em parte, já está preparada para isso – ou que a discussão já pode ser levantada (ou apenas desejava cativar o grande público LGBTS). A televisão é uma máquina de entretenimento amparada no marketing, não uma entidade política ou sindical – muito embora ela possa ter (e normalmente tem) alguma inclinação partidária, algo que também não é unânime.

Mas aqui no Brasil há esse sentimento de que tudo deve ter motivação política: a música tem que ser política, as universidades, os livros, os órgãos públicos, o entretenimento. É uma redução do mundo a uma visão míope das coisas. É verdade que temos vários problemas a resolver, mas não é distribuindo obrigações indevidas a órgãos não-competentes que iremos saná-los. A televisão sempre irá nivelar por baixo sua programação, pois sua ocupação é o flerte com o público, ora retratando as verdades óbvias, ora atiçando sua comodidade – atuando como lente de aumento. Os ativistas LGBTS podem comemorar, mas não devem esquecer que a luta é primariamente deles, com ou sem aliados. O apoio da mídia é, nesse sentido, um bônus inesperado e muito bem-vindo ao movimento, mas longe de ser uma obrigação.