Passei toda minha adolescência me
autodeclarando niilista e iconoclasta. Adorava discordar das
unanimidades e escarnecer dos ídolos adorados por todos. Tinha
verdadeiro prazer nisso. Nunca recebendo impressões dos outros, sem
ter contato com a crítica especializada, sempre tirava minhas
próprias conclusões a partir de minhas observações. Não tinha
muito acesso a informação, de modo que, ao ouvir um cantor ou banda
(invariavelmente sem saber seu nome), realizava uma audição
totalmente isenta, livre de qualquer dado que viesse a tendenciar
minha opinião crítica. E o que gostava ainda mais era descobrir
antes de todo mundo um talento, alguém ou algo que viesse a fazer
sucesso ou ser bem conhecido. Isso me enchia de orgulho, pois
comprovava meu faro para talentos brutos ou ignorados. Na
mesma medida, rejeitava alguém ou algo que estava na boca do povo.
Sentia verdadeira aversão, antes mesmo de conhecer o objeto de
veneração pública. Só depois de tal coisa cair no esquecimento é
que me aproximava e a examinava bem, e, se fosse o caso, dava meu
crédito.
Não
sou mais adolescente, mas ainda guardo comigo essa característica –
um pouco esmaecida, talvez. Absorvendo conhecimento de diversas
fontes, passei a admirar certos ídolos baseado no que descobri a
respeito deles (ou de experiências que tive) e também abandonei o
espírito do niilismo (por julgá-lo uma tentativa pouco prática de
solução de problemas). Continuo partidário de minhas descobertas e
avaliações, sentindo grande satisfação quando algum crítico
reconhecido corrobora minha nota preliminar. Sim, ainda sinto repúdio
em relação à celebração massiva de algo. E creio que essa última
característica tem gerado uma imagem incongruente de mim mesmo
perante os que acompanham meus posicionamentos à certa distância.
Estamos vivendo tempos de ativismo
social intenso (ainda que fortemente virtual e não necessariamente
sincero, dado que virou algo cult). Jovens idealistas bradam
contra as desigualdades do mundo, suas injustiças, seus carrascos
desmascarados. Escolhem alvos, bandeiras a serem levantadas bem alto
a fim de chamar a atenção para suas causas. É bem verdade que
muitos que se dedicam à tal atividade estão apenas gastando a
energia dos hormônios juvenis. Quem os encontrar daqui a alguns anos
não os reconhecerá, incrustados que estarão na realidade do
sistema outrora pérfido. Não simpatizo com seus exageros, nem com
seus modos, nem com sua incontinência. O problema é que também sou
contra algumas coisas que eles atacam. Por exemplo, tenho verdadeira
abominação por pessoas que julgam alguém pela cor de sua pele.
Também não concordo que as mulheres não sejam equiparadas aos
homens em diversos aspectos. Tenho combatido ferozmente tudo que
chega a mim em relação a isso e outros pontos, mas algo me impede
de subir num banco e gritar contra isso aos quatro ventos.
Esse empecilho é o barulho que vem de
tanta gente eufórica tentando mudar o mundo a qualquer preço,
empurrando possíveis aliados e passando por cima de quem para pra
pensar um pouco se estão indo na direção certa. Preferia ser eu o
primeiro a escancarar os problemas inúmeros desse país, de nossa
sociedade. Publicamente defender os que sofrem, acusar os que os
maltratam. Fazer conhecidas as pequenas classes desfavorecidas que
ninguém se importa em enxergar. Mas antes que minha voz pudesse ser
ouvida por muitos eles vieram e tomaram a dianteira. Agora falta-me
assunto. Vez em quando vocifero contra eles, como que para vingar-me.
Irrita-me saber que muitos não têm real compromisso com a causa.
Preocupam-se demasiado com o discurso, mas pouco com as ações. É
como um irmão que toma o brinquedo de outro sem o objetivo de se
divertir.
É por isso que evito discursar sobre
problemas sociais nos meios de difusão. A fim de não me confundirem
com um deles. Eu sei, parece mesquinhez, mas é uma força maior do
que eu. Quem é de meu convívio próximo sabe pelo que luto, mas
quem toma conhecimento de minhas causas pelo que exponho
deliberadamente para o mundo pode ter uma ideia equivocada de minhas
ideologias. Como todo cidadão oriundo da periferia, detesto a
polícia. Detesto patrões inescrupulosos. Detesto as classes
abastadas que ridicularizam os trabalhadores pobres. Impreco contra o
governo, a justiça, o transporte público, os médicos que nunca
trabalham, os professores que nunca dão aulas. Somos iguais, mas
diferentes.
É esse sentimento estranho que me faz
ser um paradoxo: um iconoclasta conservador (sim, o sistema está
falido e eu o repudio, mas isso é culpa de seus preceitos ou das
pessoas que o puseram a perder?). Defendo a demolição de figuras e
procedimentos arraigados, desde que não seja realizado por uma trupe
barulhenta e por vezes supérflua. Enquanto zoam para os holofotes,
sigo fazendo minha pequena parte nos bastidores, impossibilitado de
elevar minha voz a fim de não me ver no meio deles. Às vezes tenho
até vontade de me voltar contra as causas que apoiam, mas aí paro e
me conscientizo que as causas nada têm que ver com seus arroubos.
Foram apenas tomadas de reféns. Não sei se um dia eles se calarão,
mas, se acontecer, estarei pronto para erguer a minha voz.
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