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segunda-feira, 31 de março de 2014

Sugestão de leitura


Título: O Som da Revolução: uma História Cultural do Rock – 1965-1969
Autor: Rodrigo Merheb
Editora: Civilização Brasileira
ISBN: 9-788520-010556







À exceção dos clássicos da literatura, livros brasileiros são invariavelmente mal escritos. E isso nos dois aspectos possíveis: forma e conteúdo. Reflexo de uma cultura de pouca leitura e ódio ao idioma, realizado no minimalismo preconizado por estudantes e alguns professores, o discurso é fraco e as palavras são mal escolhidas. No quesito teor, o desapego a detalhes e a ojeriza a teorias produz um manual técnico com fins práticos muitas vezes inútil; um maço de poucas páginas ou um calhamaço não coeso que quase nada agrega a quem o ler e pouco faz diferença em relação a outras obras do mesmo assunto. Que dirá causar impacto. Por esse motivo é que causa grata surpresa quando nos deparamos com uma obra produzida em solo nacional que prima pela boa escrita, tem uma narrativa envolvente e é pródiga em detalhes que fazem toda a diferença.

O Som da Revolução: uma História Cultural do Rock – 1965-1969, de Rodrigo Merheb, é leitura obrigatória para aficionados, simpatizantes e curiosos do rock, e altamente recomendada para interessados em geral, ignorantes sobre o assunto e inimigos do estilo. A proposta do livro está expressa no segundo subtítulo: a decisão de cobrir um período curto (mas prolífico) da história do rock revela a despretensão do autor em escrever uma malfadada cobertura de todos esses anos do estilo musical, ao mesmo tempo que, dada a extensão de suas quase quinhentas páginas, mostra que esses poucos anos são narrados com riqueza de detalhes. O autor escolheu dois festivais, um para início e outro para encerramento da obra, e um terceiro para o recheio: Newport e Altamont, escoltando o inevitável e mítico Woodstock.

A escolha do festival de Newport como abertura deve-se ao fato de ter sido nele que Bob Dylan, nome de grande expressão do folk americano, tocou pela primeira vez em público sua guitarra elétrica, escandalizando a audiência ali presente. Marcava assim o início da invasão do rock a áreas até então livres de sua influência. Já Altamont foi o palco da desordem que anunciou que a paz e o amor talvez fossem incompatíveis com os ideais de uma geração que clamava por músicas tão agressivas. No meio deles, por sua vez, Woodstock, representação maior da cultura hippie e ponto de parada obrigatória a qualquer história do rock que se preze, pouco teve de coletividade, espontaneidade, organização e, por incrível que pareça, música. Mas, para maiores explicações, é necessário ler o livro.

O autor não se limita a despejar datas, nomes e acontecimentos, mas constroi um panorama da época que contextualiza o leitor no espírito e ânimos daquele tempo, trazendo à tona a motivação dos músicos e consumidores do rock de então. As histórias dos personagens são bem entrelaçadas, de modo que nomes não surgem ou desaparecem do nada. Todos vêm e vão com um propósito, e nunca com uma história própria, desconectada das demais. Uma deficiência de livros de história, sejam propedêuticos, acadêmicos ou de entretenimento, é dar a impressão de que um determinado personagem existiu sozinho durante seu tempo. Merheb não cai nessa armadilha, indicando o entrosamento, as influências, as desavenças e tudo o mais que viveram juntos os protagonistas e coadjuvantes das cenas descritas no livro. É importante destacar que o autor não se deteve aos artistas, mas desenha também o retrato dos empresários e qualquer um que tenha desempenhado alguma influência no meio. Ao retratar muito mais que seus feitos – suas histórias de vida, desventuras e projetos –, traz o personagem para perto do público, que o encara antes como figura humana que histórica.

Mas um dos principais méritos do livro – e que poderia também ser um tiro pela culatra – é emitir ligeiras reflexões sobre o fenômeno rock, principalmente sobre a cultura hippie: seu impacto, sua filosofia e seus membros. O modo como mostra o tão combatido sistema capitalista de braços dados com o movimento que pregava a revolução, e por fim a total posse do novo ritmo pelos empresários que o empacotaram para pôr em prateleiras, desperta no leitor a curiosidade de pensar sobre o caráter dos movimentos de contracultura. Até onde se sustentam? A confissão, anos depois, de ídolos da rebeldia niilista de que estavam arrependidos de seus dias de militância consiste em um grito de alerta para aqueles interessados em mudar o sistema (é impossível implodir o sistema ou de fato seus opositores obrigatoriamente combaterão por um curto período de tempo de suas vidas? O sistema é inexorável ou a motivação de seus inimigos não é sólida?). E o desvencilhamento do rock do caráter de reforma social que o caracterizou no início (tanto um como outro capitaneados por Bob Dylan) levanta o debate sobre o papel político da arte – algo tão forte no Brasil.

Outro ponto forte consiste na reiteração do autor em chamar a atenção para a comum influência do blues sobre os rockeiros sessentistas. Apesar de hoje se perder de vista, o blues foi um dos principais estilos que deu origem ao rock, onde bebiam seus jovens astros. De fato, Eric Clapton e Janis Joplin estão mais para bluseiros deslocados no espaço e tempo (e amaldiçoados pela brancura de suas dermes) do que para astros de rock. Há também no livro uma seção na qual o leitor é agraciado com indicações de quais álbuns ouvir para apreender a produção musical daquela época, de grandes nomes a quase desconhecidos. Registre-se ainda a façanha realizada por Meheb em escrever, com muita propriedade, um livro sobre a história do rock, um estilo que não se firmou muito por aqui – sobrevive em guetos, e o intitulado rock nacional não passa de uma declaração chauvinista de que não conseguimos fazer rock de alta qualidade. Por tudo isso é que Uma História Cultural do Rock desponta como um importante acervo a figurar nas estantes dos que se sentem mais vivos com o pulsar binário do ritmo que atravessou décadas e marca gerações até hoje.



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