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sexta-feira, 25 de abril de 2014

Fazer o certo


Uma alegação que se tem feito largamente desde que a psicologia caiu no gosto popular é que adolescentes fazem estripulias porque não conseguem avaliar a consequência de seus atos. Ou seja, não têm discernimento do que é certo ou errado, correto ou impróprio. Em décadas anteriores, jovens nessa idade tinham responsabilidades dentro de casa, e cedo eram classificados como adultos, casando-se ou assumindo atribuições dessa fase da vida. Eles eram cobrados pelo que se esperava deles e arcavam totalmente com as consequências de suas escolhas, que não raro eram tomadas sem qualquer auxílio dos pais ou pessoas mais experientes. Algumas vezes tais decisões eram acertadas, em outras, não. Mas qual das duas gerações tinha melhores noções de certo e errado?

A verdade é que ambas estão em condições de igualdade, talvez com ligeira vantagem de uma ou outra. E isso por um motivo muito simples: as pessoas, não importa em que época, sempre sabem como devem proceder (a ética kantiana se baseia nisso). Cumpre esclarecer que não estamos tratando de decisões projetadas para o futuro, como que profissão escolher ou onde morar. Remetemos aqui a como agir em determinados lugares e frente a determinadas situações. Por exemplo, no trabalho, devemos fazer o serviço bem-feito, não importa a situação; em casa, devemos ajudar nossos pais ou cônjuges; devemos respeitar nossos semelhantes sempre; devemos ser justos a qualquer custo e ajudar a quem quer que precise. Essas são recomendações gerais que todos conhecemos, julgamos corretas, mas nem sempre as pomos em prática. Mas por quê?

Não sei se é possível responder de forma objetiva a essa pergunta, mas há alguns possíveis fatores para tal ocorrência. Talvez um traço de rebeldia latente que reside em todos nós, de ir contra as regras, mesmo as boas e úteis. Talvez um egocentrismo avassalador que nos impede de ver o outro como alguém que nos afeta e que é afetado por nossas ações. Talvez uma carga transcendental que paira sobre fazer o certo, que nos impele ao caminho mais fácil e curto do desvirtuamento. Talvez a inexorável força que nos leva a seguir os passos da maioria, não importa quais sejam. Talvez uma maldade natural encerrada em nossa essência de ser humano. Ou quem sabe simplesmente preguiça de agir quando é mais cômodo ficar estagnado. Seja lá qual for a resposta, o fato é que sempre sabemos como deveríamos agir, mas muitas vezes não o fazemos.

Certa feita ouvi por acaso um discurso moral inspirador vindo de uma fonte muito improvável: um jovem marginalizado, dado a bebedeiras – possivelmente também a drogas ilícitas –, vadiagem e pequenos delitos. Em sua fala, distribuía conselhos e admoestações a todos: que as crianças ajudassem as mães, que as pessoas se entendessem, que os jovens trabalhassem visando a uma vida melhor. Seria comovente, caso ele mesmo não pusesse em prática nenhuma de suas considerações. Mas isso serve para mostrar que mesmo nas piores condições sociais, as pessoas sabem os deveres que se devem praticar.

Isso vem de encontro ao que pensam e proclamam alguns ativistas sociais, pois alegam que criminosos e delinquentes agem sem consciência de seus atos, em revolta cega contra a sociedade. A verdade é que bem poucos (se os há) não sabem que estão agindo errado, embora alguns hajam de fato em tom de inconformidade com sua posição social. Por mais que a um garoto da periferia faltem boas referências de pessoas bem-sucedidas que seguiram por caminhos justos, poucos têm convicção de que enveredar pelo crime é o certo a se fazer. A maioria despreza mesmo uma vida honesta por ser dura e possuir benefícios de longo prazo, talvez sem grandes recompensas materiais.

Quantos de nós já não nos pegamos dando sermão em outrem, aconselhando ou cobrando, mesmo sabendo que não agimos devidamente quando estavámos em situação semelhante? Bom seria se usássemos dessa empatia ao avesso não para lembrar de como deveríamos ter agido, mas para imputarmos a nós mesmos o modo correto de proceder em situações delicadas e específicas. Se o primeiro passo para a mudança ou correção é reconhecer o erro, então o que falta para construirmos uma sociedade melhor, se já conhecemos também as soluções?


quarta-feira, 9 de abril de 2014

Minha idiossincrasia


Passei toda minha adolescência me autodeclarando niilista e iconoclasta. Adorava discordar das unanimidades e escarnecer dos ídolos adorados por todos. Tinha verdadeiro prazer nisso. Nunca recebendo impressões dos outros, sem ter contato com a crítica especializada, sempre tirava minhas próprias conclusões a partir de minhas observações. Não tinha muito acesso a informação, de modo que, ao ouvir um cantor ou banda (invariavelmente sem saber seu nome), realizava uma audição totalmente isenta, livre de qualquer dado que viesse a tendenciar minha opinião crítica. E o que gostava ainda mais era descobrir antes de todo mundo um talento, alguém ou algo que viesse a fazer sucesso ou ser bem conhecido. Isso me enchia de orgulho, pois comprovava meu faro para talentos brutos ou ignorados. Na mesma medida, rejeitava alguém ou algo que estava na boca do povo. Sentia verdadeira aversão, antes mesmo de conhecer o objeto de veneração pública. Só depois de tal coisa cair no esquecimento é que me aproximava e a examinava bem, e, se fosse o caso, dava meu crédito.

Não sou mais adolescente, mas ainda guardo comigo essa característica – um pouco esmaecida, talvez. Absorvendo conhecimento de diversas fontes, passei a admirar certos ídolos baseado no que descobri a respeito deles (ou de experiências que tive) e também abandonei o espírito do niilismo (por julgá-lo uma tentativa pouco prática de solução de problemas). Continuo partidário de minhas descobertas e avaliações, sentindo grande satisfação quando algum crítico reconhecido corrobora minha nota preliminar. Sim, ainda sinto repúdio em relação à celebração massiva de algo. E creio que essa última característica tem gerado uma imagem incongruente de mim mesmo perante os que acompanham meus posicionamentos à certa distância.

Estamos vivendo tempos de ativismo social intenso (ainda que fortemente virtual e não necessariamente sincero, dado que virou algo cult). Jovens idealistas bradam contra as desigualdades do mundo, suas injustiças, seus carrascos desmascarados. Escolhem alvos, bandeiras a serem levantadas bem alto a fim de chamar a atenção para suas causas. É bem verdade que muitos que se dedicam à tal atividade estão apenas gastando a energia dos hormônios juvenis. Quem os encontrar daqui a alguns anos não os reconhecerá, incrustados que estarão na realidade do sistema outrora pérfido. Não simpatizo com seus exageros, nem com seus modos, nem com sua incontinência. O problema é que também sou contra algumas coisas que eles atacam. Por exemplo, tenho verdadeira abominação por pessoas que julgam alguém pela cor de sua pele. Também não concordo que as mulheres não sejam equiparadas aos homens em diversos aspectos. Tenho combatido ferozmente tudo que chega a mim em relação a isso e outros pontos, mas algo me impede de subir num banco e gritar contra isso aos quatro ventos.

Esse empecilho é o barulho que vem de tanta gente eufórica tentando mudar o mundo a qualquer preço, empurrando possíveis aliados e passando por cima de quem para pra pensar um pouco se estão indo na direção certa. Preferia ser eu o primeiro a escancarar os problemas inúmeros desse país, de nossa sociedade. Publicamente defender os que sofrem, acusar os que os maltratam. Fazer conhecidas as pequenas classes desfavorecidas que ninguém se importa em enxergar. Mas antes que minha voz pudesse ser ouvida por muitos eles vieram e tomaram a dianteira. Agora falta-me assunto. Vez em quando vocifero contra eles, como que para vingar-me. Irrita-me saber que muitos não têm real compromisso com a causa. Preocupam-se demasiado com o discurso, mas pouco com as ações. É como um irmão que toma o brinquedo de outro sem o objetivo de se divertir.

É por isso que evito discursar sobre problemas sociais nos meios de difusão. A fim de não me confundirem com um deles. Eu sei, parece mesquinhez, mas é uma força maior do que eu. Quem é de meu convívio próximo sabe pelo que luto, mas quem toma conhecimento de minhas causas pelo que exponho deliberadamente para o mundo pode ter uma ideia equivocada de minhas ideologias. Como todo cidadão oriundo da periferia, detesto a polícia. Detesto patrões inescrupulosos. Detesto as classes abastadas que ridicularizam os trabalhadores pobres. Impreco contra o governo, a justiça, o transporte público, os médicos que nunca trabalham, os professores que nunca dão aulas. Somos iguais, mas diferentes.

É esse sentimento estranho que me faz ser um paradoxo: um iconoclasta conservador (sim, o sistema está falido e eu o repudio, mas isso é culpa de seus preceitos ou das pessoas que o puseram a perder?). Defendo a demolição de figuras e procedimentos arraigados, desde que não seja realizado por uma trupe barulhenta e por vezes supérflua. Enquanto zoam para os holofotes, sigo fazendo minha pequena parte nos bastidores, impossibilitado de elevar minha voz a fim de não me ver no meio deles. Às vezes tenho até vontade de me voltar contra as causas que apoiam, mas aí paro e me conscientizo que as causas nada têm que ver com seus arroubos. Foram apenas tomadas de reféns. Não sei se um dia eles se calarão, mas, se acontecer, estarei pronto para erguer a minha voz.