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quarta-feira, 29 de janeiro de 2014

Saiu e encontrou a morte


Saiu e encontrou a morte
Recebeu os amigos em casa
e, afoito, apressou-se nas depedidas
A mãe ainda o viu dobrar a esquina
sem saber se ouviu o que lhe falara
A camisa nova
comprada na noite anterior
só foi lavada uma vez
e agora está embebida em sangue
Em sua ansiedade
queria encontrar a vida –
mas a morte o encontrou antes
Saiu e retornou sem vida
Os amigos, todos juntos, rodearam seu corpo
Sua mãe, em prantos, apertou-lhe ao peito
O chão, a poça de sangue, o tiro errante
A multidão, a correria, os gritos
Os protagonistas fugitivos e alheios
Uma breve vida
Uma vida ingênua
Virgem das mágoas do mundo
Livre da dureza dos homens
E finda

domingo, 19 de janeiro de 2014

Hoje eu vi as estrelas

(Tema baseado no apagão do Nordeste ocorrido no dia 28 de agosto de 2013)

A cidade, em polvorosa, corre 
Acelera o acelerado
Carros e pessoas se desentendem
nas trincheiras da guerra cotidiana
Querem chegar em seus lares antes da noite
– e ela vem, com certeza
Sem energia, a cidade pára
Sem energia, as pessoas vão-se às casas
Sem energia, os carros voam
A noite traz o sentimento antigo
do homem frágil
do homem pequeno
do homem inconsciente de si
Refugiados em casa, voltamos a temer as trevas
As notícias de longe já não chegam
desmanchando a aldeia global
Os sons elétricos desaparecem
e nos fazem companhia o barulho mecânico da natureza
A luz volta a ser errante
e nossas vorazes pupilas sorvem o menor facho que seja
E em meio à impotência da fragilidade
olho para cima
a contemplar o domo celeste
o teto de nossos ancestrais
Foi quando notei que há tempos não fazia isso
e lembrei que há muito
eu não via as estrelas
A luz da terra cega o homem,
que passa a ignorar a luz do céu
Mas elas sempre estão lá
– nem sempre as mesmas
Hoje meu espírito se aquietou
Ouvi o som da paz
Do silêncio gritante
Pressa não há mais
Preocupação não há mais
A dor se foi
Hoje reconheço que todos os homens são meus irmãos
E a natureza é nossa irmã mais velha
Já não lembro de meus problemas
Pequenos
Pequenos agora são todos eles
Porque eu novamente vi as estrelas
Esse ato simples, esquecido
me fez lembrar que a vida não é só movimento
mas também estado
É permanência
É quietude
Nesse momento, crianças devem estar fazendo sombras à luz de velas
as mãozinhas se desdobrando em movimentos agitados
Outras estão recolhidas junto aos pais
receando a noite incomum e órfãs da artificialidade brilhante
Nesse momento deve haver casais se amando
prateados pelo astro distante e pelos outros pontos rutilantes do céu
Ah, essas pequenas luzes...
Há tempos não as vejo
Mas hoje paguei meu débito
Hoje voltei a ser uma criatura do mundo
e sinto que a vida voltou a mim
Sinto que fui aceito pelo Universo
Apenas porque...
Hoje...
Hoje eu vi as estrelas

domingo, 12 de janeiro de 2014

Por favor, olhe pra mim!

Você acha que vai libertar o mundo. Você se considera o salvador dos pobres. Você pensa que é mais justo que todos. Você diz que me defende, mas a verdade é que nunca te vi. Você jamais foi me visitar, jamais pisou onde moro; talvez nem saiba o caminho para chegar aqui. Para você eu sou apenas um bibelô, um motivo para você justificar sua luta, com a qual se diverte, mas para mim não tem significado algum nem me beneficia. Deixa eu te dizer uma coisa que você ainda não sabe: eu existo de verdade! Tenho fome, sede, frio, dor, medo. Padeço necessidades. Também tenho alegrias, orgulho, força, inteligência. É uma pena você não saber disso.
 
Você prefere participar de reuniões com seus amigos para discutir teorias de gente que viveu há muito tempo atrás, em vez de tentar me entender. Você prefere saber o que acontece em outros países bem longe, mas não se importa em conhecer minha vida. Você se revolta porque há pobres no mundo, mas se recusa a olhar em meus olhos. Você tem orgulho em expor seus pontos de vista para todos, mas talvez tivesse mais orgulho em me ajudar a melhorar de vida. Você adora debater com pessoas que considera inimigas, mas por que não se juntam para de fato ajudar pessoas como eu? Você nunca vai me compreender à distância; nunca vai saber o que desejo nem o que preciso. Você traz modelos de soluções de outros lugares do mundo e quer dizer que são verdadeiros aqui também, apenas por preguiça em compreender meu universo peculiar – aliás, acho que você não quer mesmo é ter qualquer tipo de contato comigo.
  
No dia em que você decidir usar sua vida para ajudar alguém de verdade, minha gente estará esperando de braços e portas abertas. Não é que gostamos de viver assim, mas não sabemos para onde ir. Se ao menos você usasse seu conhecimento para nos guiar, em vez de se perder em discussões sem sentido... Se ao menos você e seus amigos nos ouvissem, para pensar em propostas adequadas a nossa realidade... Se ao menos houvesse alguém para nos dizer palavras de apoio e incentivo para enfrentar o mundo... Talvez nossa realidade fosse outra.

Ah! Sabe aqueles religiosos que você tanto julga? Que os critica, os humilha e os taxa de inferiores? Eles conhecem minha comunidade. Eles estão por dentro dos problemas que enfrentamos. Eles demonstram que se importam de verdade conosco, e provam isso de diversas maneiras. Em lugares onde não há regras, respeito por nada, nem consideração pelos semelhantes, eles apresentam um sistema moral que ensina a obediência e o amor ao próximo. Nos presídios, onde ninguém quer ir, eles estão lá, instando com degradados seres humanos a abandonarem uma vida de transgressões para abraçar uma vida de novas oportunidades. São as velhas senhoras, com as pernas cheias de varizes e alquebradas pela idade, que tentam convencer jovens delinquentes a retornarem as suas casas a fim de dar um fim às preocupações de suas mães. São eles que alimentam muitos famintos e confortam muitos que choram. É nas igrejas que o homem comum, que passou a vida em branco, tem incentivo para estudar e realizar algo em sua vida vazia. Mas nada disso te interessa, eu sei. Sua cartilha ensina que religiosos são maus, e você tem que obedecê-la sem questionar.

Por mais que você se esforce em um exercício mental, você nunca vai saber como é minha vida de fato. Nem nunca irá saber como é ajudar alguém. Você já teve o orgulho de tirar um jovem viciado das ruas e entregá-lo a sua mãe? Sabe o que é ver nos olhos dessa senhora a expressão de alegria? Alguma vez você já passou horas tentando dissuadir uma adolescente de quatorze anos de perder a virgindade com um cafajeste, correndo o risco de se tornar uma mãe-solteira, e depois recebeu sua gratidão e a viu casando e feliz? Já entrou em uma casa humilde e se sentiu impotente ao se deparar com rostos abatidos pela pobreza e ratos andando à vontade pelos cômodos? Já conversou com alguém que ingeria sal e água para espantar a fome? Conhece algum caso de gente que tinha bichos vivos em uma ferida na cabeça? Já viu crianças selvagens estragarem uma comemoração feita em sua própria homenagem? Sabe qual a sensação de fazer alguém voltar a estudar ou ensiná-la e ver sua alegria em passar em alguma prova? Já se sentiu derrotado ao não poder salvar alguém de ingressar na criminalidade ou no vício? Alguma vez deixou escapar para a delinquência um adolescente brilhante e cheio de vida, com um futuro promissor? Não, você não sabe nada disso, e acho que nunca sentirá essas emoções. Nunca terá um rosto ou um nome para se lembrar. Não mantendo-se à distância de nós.

Mas não lhe culpo. Entendo que é difícil para você deixar sua boa vida para vir aqui me ver. Seria muito difícil constatar que suas teorias não me servem, não se adequam, e você teria perdido tanto tempo estudando... Não lhe culpo por ter nojo de minha casa, de meus modos, de minha rua que fede. Eu mesmo não gosto, mas preciso de ajuda para sair daqui. Ajuda que não vem. Queria que um dia você parasse pra pensar e percebesse que não adianta falar sobre mim, escrever sobre mim, pensar sobre mim, sem conhecer minha realidade. Morrerei, e você nem vai saber. Morremos todos os dias. Alguns saem dessa vida; outros permanecem nela, mas todos mortos. Desculpa te encher com isso, se atrapalhei alguma leitura sua, mas precisava falar. Agradeço a atenção e desculpe mais uma vez.

quinta-feira, 2 de janeiro de 2014

Sugestão de leitura



Título: Ciência Picareta
Autor: Ben Goldacre
Editora: Civilização Brasileira
ISBN: 978-85-200-1063-1








A ciência é uma das poucas unanimidades que existe – a despeito de sua rivalidade com a religião. Quer validar uma teoria? Investigue-a através dos métodos científicos. Quer chancelar um argumento? Cite artigos e experimentos científicos que o corroborem. Quer combater o que quer que seja? Recorra a um cientista para auxiliá-lo. Mas o fato é que temos uma visão pueril desse universo, que nos chega em fragmentos – através de citações em revistas – ou caricaturas – através de produções de entretenimento. Mas o fato, que poucos sabem, é que a ciência é feita por pessoas tão humanas quanto qualquer um de nós, com falhas, defeitos, visões excêntricas de mundo, ganância, orgulho, imperícia, incompetência, podendo gerar, através de seus estudos, resultados questionáveis. Por esse motivo, torna-se importante selecionar o que é boa ciência e o que não é.

Para as pessoas comuns, sem intimidade com o modus operandi da ciência, o livro Ciência Picareta, de Ben Goldacre, oferece um passeio pelos principais aspectos que devem ser analisados ao nos defrontarmos com divulgações, na mídia, de novidades da ciência uma leitura leve e agradável. O cidadão mais perspicaz deve ter notado, nesses últimos anos, uma sucessão de fatos contraditórios alardeados pela mídia de massa, alegando tratarem-se de evidências científicas. Bons exemplos disso são o café e o ovo, ora rechaçados pelos nutricionistas, ora celebrados como benéficos. A propósito, o ramo da nutrição (ou nutricionismo, em tom pejorativo adotado no livro) é fartamente criticado por Goldacre, uma vez que na Inglaterra, onde vive, essa não é uma profissão regulamentada, o que permite surgir todo tipo de charlatão reivindicando para si esse título. A mídia é também especialmente atacada pelo autor, pois é, segundo ele, a principal responsável pela má divulgação da ciência entre o público leigo.

Mas não apenas de vilões se constitui o livro. Ele apresenta os principais métodos científicos de pesquisa e os critérios frequentemente utilizados para avaliar resultados e determinar se um dado estudo é válido ou não. Conceitos de pesquisa usando caso-controle, estudo de grupo, duplo-cego, revisão por pares, entre outros, são ilustrados com casos reais, destrinchados nos mínimos detalhes pelo autor – que também é professor universitário de métodos de pesquisa científica. Para isso, não se furta a fornecer detalhes dos cientistas (ou pseudo-cientistas) investigados por ele, como artigos já publicados e universidades onde estudou ou empresas para as quais já trabalhou. Ele também fornece elementos que por vezes comprometem resultados aparentemente promissores, como redução à média, formulação de hipótese antes da análise, falhas de seleção de espaço amostral e método estatístico, entre outros.

Goldacre discorre sobre fatos divulgados constantemente por jornalistas e aceitos por todos como verdades comprovadas, mas que na verdade não passam de estudos controversos ou exagero da mídia objetivando produzir destaques para as capas de seus periódicos. É o caso da vitamina C como cura da gripe, da ingestão de antioxidantes no combate aos radicais livres, da reposição hormonal, da ingestão de suplementos vitamínicos e da homeopatia – outro tema criticado durante todo o livro. Casos mais graves, como a afirmação de que foi a mídia não-especializada que descobriu e deu conhecimento ao fato da má formação gênica produzida pela ingestão da substância talidomida por gestantes, a suspensão de remédios anti-HIV na África por autoridades influenciadas pela ideia de que a medicação é que os tornava doentes, e a associação entre a vacina tríplice-viral e casos de autismo também são abordadas no livro.

A principal contribuição do livro é mostrar que cientistas nem sempre são pessoas isentas, principalmente se financiados por instituições farmacêuticas ávidas por vender seus produtos, ou recrutados pela mídia para produzir alegações que suportem manchetes bombásticas. É essa a fórmula que produz muito do que lemos em revistas leigas de ciência, infelizmente. Mas o leitor atento de Ciência Picareta perceberá com outros olhos os supostos furos jornalísticos que se propõem a divulgar uma mais nova descoberta científica, estando imunizado contra bobagens sem sentido.