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domingo, 28 de abril de 2013

Chuva

Chuva, por que é que você foi embora?
Por que nos abandonou?
A gente é do campo
Somos simples demais
Pequenos demais
Fracos demais
Precisamos do seu regar
Olha daí de cima e vê nosso padecer
Volta, chuva!
Vem salvar nossa gente
Vem salvar nosso gado
Vem reviver nosso pasto
As crianças tão chorando
O gado tá finando
A cacimba tá vazia
E nós é só lamento
A fome tá demais
A sede tá é muita
Vem, chuva, nos livrar dessa tirania
Desse sol que quer nos matar
Transforma o torrão em terra linda
Pra gente de novo plantar
Vem, chuva, mais uma vez
A gente tá esmorecendo
A gente tá te esperando
Vem, chuva, nos livrar desse penar


quinta-feira, 25 de abril de 2013

Embaixo da ponte


Embaixo da ponte
havia um homem
Do sol da manhã ele se escondia
Dos transeuntes ele se escondia
Dos perigos ele se escondia
Só não podia esconder-se de si mesmo
Seu opróbrio estava ali com ele

Embaixo da ponte
ele estava lá
Escondido ele comia
Invisível ele comia
Mal ele comia
Eram restos, migalhas
A única refeição do dia

Embaixo da ponte
ele havia dormido
Frio ele sentia
Medo ele sentia
Dor...

Embaixo da ponte...
Eu vi um homem

domingo, 21 de abril de 2013

Descobertas

Descobri muitas coisas depois que cresci. Algumas surpreendentes. Descobri que há pessoas que deixam o chuveiro aberto durante todo o tempo de banho. Na minha infância, não imaginava que poderia haver pessoas assim. Se houvessem, o governo deveria mandar prendê-las. Como seria possível? Na minha ingenuidade, as propagandas que alertavam que se devia fechar a torneira ao se ensaboar não serviam para ninguém, afinal, quem seria capaz de tal absurdo? Absurdo não: crime. Na minha infância de bairro de periferia água era raridade. Foram muitos os anos em que o líquido precioso não chegava nas casas, os canos secos, buracos sendo abertos fartamente em busca do encanamento mais profundo onde provavelmente encontraríamos água, as latas indo e vindo, cheias e vazias, nas mãos e nas cabeças dos seres de passos apressados em cuidar da próxima viagem, se molhando e lutando para não desperdiçar as gotas que faziam falta. O sacrifício para encher tudo que pudesse abrigar água nos ensinava a zelar por ela, utillizá-la com bastante parcimônia. Mas, quando cresci, descobri – aterrorizado – que havia pessoas que deixavam o chuveiro aberto durante todo o tempo de banho. O que era irreal para mim de repente materializou-se em seres que desperdiçavam água como se não tivesse valor...
 
Outra coisa que descobri é que quase ninguém come miúdos de boi. Eu comia miúdos de boi. Minha família comia. Para mim isso era uma verdade universal. Mas, quando cresci, descobri que as outras pessoas quase todas não comiam miúdos. Conheci pessoas que tinham repugnância do fato. Conversei com outras que sequer sabiam que isso era possível. Li que nos Estados Unidos – país longe e rico – o governo fez campanha para as pessoas comerem miúdos de boi*.

Descobri também que a maioria das pessoas têm problemas com seus dentes do siso. Não lembro de ninguém na minha família que passou por isso. Eu não removi meus dentes do siso. Até pouco tempo esses dentes eram anônimos para mim. Hoje todos que conheço lamentam seus dentes do siso.

Fiquei sabendo recentemente que as crianças que foram minhas contemporâneas se divertiram com os primeiros jogos eletrônicos. Eu nunca joguei esses jogos eletrônicos. Elas experimentaram vários jogos e suas versões aprimoradas. Conheceram personagens que se lhes tornaram íntimos. Eu não conheço tais personagens. Sinto saudade da época que não vivi.

As mães dessas crianças também as ensinaram a andar de bicicleta. Minha mãe não me ensinou a andar de bicicleta. Ela nunca andou de bicicleta. Hoje ainda não sei aindar de bicicleta.

Hoje sei que há pessoas que não tomam café da manhã. Eu tomo café da manhã. Sempre tomei café da manhã. Essas pessoas não o fazem não porque não tenham o que comer. Não o fazem porque não querem. Elas não sentem fome. Eu sinto fome. Sempre senti.

Agora vejo que todo mundo pega empréstimo. Eu não sabia disso. Meu pai me ensinou que isso tinha ares de pecado. Não gosto da ideia de pecar – me imaginava sendo transformado em pedra. Mas o mundo mudou. Até eu já peguei empréstimo. Pequei. Mas não devo mais. Estou limpo. Ainda bem que não virei pedra.

Mas o mais de minhas descobertas foram tristes. Não acreditava que existiam filhos que não gostassem e desrespeitassem seus pais, até saber de filhos que os assassinaram. Vi que há pessoas más que usam seu tempo para fazer mal aos outros, mesmo a desconhecidos. Soube que há inconsequentes que têm prazer em destruir a natureza. Sei que pessoas cometem crimes e não são punidas. E pessoas que se defendem e são condenadas. Quem faz o bem é julgado, quem pratica o mal é aplaudido. A maioria dos casais não se amam, apenas se suportam. E loucos fazem guerras.

Por que cresci?


* Durante a Segunda Guerra Mundial, devido à escassez de carne, os miúdos (offal) constituíam um substituto alimentar equivalente em termos nutritivos.

domingo, 14 de abril de 2013

O país da hipocrisia


Olha o pastor ladrão! Que feio!
Isso não pode! Não pode não!
Não disse que era santo?
Deixa o ímpio roubar
que dele eu não falo não
Olha só aquela gente
discordando dos efeminados
Quem lhes deu esse direito?
Dar opinião é um defeito
e por isso estão errados
Pega a corda e amarra a boca
desse povo desgraçado!
Olha ali os políticos nordestinos
Que raiva desse grupinho!
A República não é mais deles
que querem nosso dinheirinho
Expulsem! Expulsem todos eles!
Mas olha só que menininha!
E que saia tão curtinha!
Ah, mas o pai é rico
então deixa ela aí quietinha
Mas e aquela pobre ali?
Ah, mas é muito safadinha!
Olha pra'li: um idealista!
Que bom que ainda há gente assim
pra lutar por mim
que não quero isso em minha vida
Coitado! Tão ingênuo e fraco!
Vai morrer sem despedida
Olha aqui: um espelho
Mas quem é esse povo
que'stou vendo dentro dele?
Arre! Povo estranho
Tão caótico e feio
Já sei: esse espelho é diferente
Mostra a gente do avesso
porque eu não sou assim
e nem é assim que eu me vejo
Vamos sair daqui
Procurar outro lugar
onde tenha alguém errado
sobre quem vamos falar

quarta-feira, 10 de abril de 2013

Menino tímido


Ouve, menino tímido
não sejas assim
Não tenhas tanto medo do mundo
Ele não é tão mau...
Ele nem é tão grande!
Teus temores é que são enormes
Vem, abre teu sorriso
é isso que querem ver
Aceita os bocados que te oferecem
e receba os afagos sem desconfiança
Deleita-te, que um dia te farão falta
Criança ingênua, desfaça seu casulo
não te escondas de todos
mas mostra-lhes quem és
Fale, cante, corra
A vida é curta, mas é boa
e você tem que ser feliz

domingo, 7 de abril de 2013

Relato de um assalto (partes IV e V)


E depois?

Passados os acontecimentos, a constatação mais pungente não se refere ao [bem] que se foi, mas ao que ficou. Ou melhor, nasceu, brotou, surgiu, em meio ao medo, dor, frustração, ódio, revolta. Sentimentos inexpugnáveis. Sensações que imiscuem-se em nossa natureza para produzir uma nova personalidade, defeituosa, atribulada. Jamais a confiança em desconhecidos será restabelecida. O caminhar será sempre sinuoso, ora evitando o local desaconselhável, ora afastando-se de alguém que se aproxima. O instinto lutar-fugir, adormecido há gerações, é convocado à ativa. Suor, batidas aceleradas do coração, reflexo instantâneo. Sinais que emergem ao menor sinal de ameaça. É arriscado andar com algo de valor. Um novo assalto parece iminente. Caminha-se prestando muita atenção a tudo: pessoas que vêm, que vão; para onde correr em caso de abordagem súbita. Vai-se pelo meio da rua, não pelos flancos, e a curva é sempre aberta. A raiz do preconceito aflora. Não impelida por convicções interiores. Brota devido à hostilidade do ambiente. Quanto mais traços denunciadores de periculosidade uma pessoa possuir, mais discriminada ela será. Cor da pele, “estilo” do cabelo, roupas, maneiras, olhos, semblante. Todos são suspeitos até prova em contrário. O humilde pai de família é tomado por marginal; o jovem que se alegra na moda é considerado igualmente. Procura-se nos outros indícios de inofensividade: uniformes, acessórios, companhia de crianças, modos, conversas. A todo momento, a sensação de uma abordagem violenta onde arrebatarão nossos haveres se nos ocorre. É a vida depois de um assalto.

Além do medo e da desconfiança, vem também o desamparo. Não temos a quem recorrer para reclamar proteção. Nossa polícia é mais que ineficiente. É conivente. Muito provavelmente toma parte nos despojos das ações criminosas. Se antes temíamos os bandidos, foras-da-lei, agora devemos também fugir à polícia, amparada pela justiça. Se, ao menos fragilmente, podíamos combater os primeiros, de forma alguma devemos afrontar os últimos. É a realidade que nos salta aos olhos.


Eu x ele

Ao fim de tudo, cabe ainda uma ponderação: avaliar as diferenças existentes entre eu e meu agressor, e o tratamento que o Estado nos dispensa.

Eu, filho de pai analfabeto e mãe semi-analfabeta. Um encanador e uma cozinheira. Meu pai, trabalhando desde as primeiras lembranças que tem, traz o corpo alquebrado por anos de trabalho árduo. Minha mãe, trabalhando desde que o pai faleceu (contava então onze anos), rememora ainda os tempos em que passou sem residência própria. Ambos trabalharam muito, com dignidade e honestidade para conseguir um pouco do que a vida não lhes deu de graça. Projetaram nos filhos a esperança de uma vida melhor, o sonho de uma formatura que lhes foi impossível. Nós, os filhos, lutando contra o destino, conseguimos escapar à mediocridade que nos cercou a infância.

Ele, possivelmente com pais não muito melhores que os meus, tem a origem incerta. A julgar por sua aparência, também provém das camadas mais baixas da sociedade. Talvez um pouco melhor, quem sabe um tanto pior. Seus pais, não sei se estão vivos. Não faço idéia de seu nível de educação, mas certamente é irrisório. Se algum dia passou fome nunca irei saber. No entanto, a despeito de minhas especulações, sei que, ao contrário de muitas pessoas que lutam para alcançar honestamente um futuro melhor, ele preferiu o caminho mais curto e mais fácil para sobreviver na inóspita realidade: o caminho do crime.

Pesados eu e ele na balança do Estado, o prato dele desce ferozmente, enquanto o meu é elevado com violência. Não é ao Estado de direito que me refiro, mas ao Estado de facto. O cidadão que escolheu ser justo e contribuir para o bem da sociedade terá vários obstáculos à frente. Sua vida será posta em risco caso tente enfrentar seus agressores, pois a Justiça dispõe de várias artimanhas para atrapalhar-lhe a ação, deixando-o totalmente vulnerável à sanha daqueles que tentou denunciar. Já o criminoso, esse é amparado pela Lei, pela polícia. A única coisa que teme são seus próprios colegas, esses sim capazes de detê-lo. Quando menores de idade, têm o aval da Lei para agirem como bem entenderem. Ninguém pode lhes fazer frente. A vida tem seu valor anulado com a bênção do Estado.

E o pobre que tenta ser honesto assim vive. Como se não bastassem as investidas dos marginais que compartilham com ele o mesmo espaço, vê-se oprimido também pelos que o deveriam defender. Não há esperança nas leis, na segurança, no Estado, enfim, e vamos vivendo como nossos malfeitores nos permitem.

quinta-feira, 4 de abril de 2013

Relato de um assalto (parte III)


A queixa

Por fim, resolvo seguir os trâmites legais. Vou em casa pegar os documentos necessários para proceder à queixa. Durante o caminho, tomo o cuidado de notar se avisto o marginal em algum lugar. Contudo, não quero dar de cara com ele. Não o vejo em canto algum e finalmente estou de volta à delegacia. Anuncio novamente que desejo prestar uma queixa. Após as perguntas básicas (“de quê?”, “quando foi?”, “onde foi?”) – já era outro atendente no balcão –, o homem vai lá dentro verificar se há alguém para me atender. Retorna e diz para segui-lo. Conduz-me por um corredor estreito, com bifurcações fugidias. Indica-me uma sala com o número quatro na porta, fechada. Parado ali, não sei o que me aguarda lá dentro. Nunca havia prestado queixa e não dispunha de informações de como seria.

Bato à porta e entro. Três mulheres. Três mulheres conversam ruidosamente, cada qual em um computador, sentadas lado a lado. Duas delas têm aproximadamente a mesma idade – por volta dos quarenta e cinco anos. Uma delas não é hostil, mas não chega a ser simpática. A outra é carrancuda, mal-encarada, provavelmente contaminada pelos anos de serviço público. A terceira é jovem, pouco mais de vinte anos. Um desavisado diria que não trabalhava ali, devido a não demonstrar tanta intimidade com o ambiente – que comumente é dominado por pessoas acima dos trinta anos. Lembro a sabedoria milenar chinesa, incrustada em sua escrita: o ideograma que representa confusão é denotado por três mulheres juntas. Nenhuma delas parece notar minha presença – ou antes, importar-se com ela. Levanto minha voz acima das suas para confirmar se entrei na sala certa. Uma delas – a primeira descrita –, voltando-se a mim, reponde-me afirmativamente e principia o procedimento de praxe. Tomo a liberdade de sentar-me na cadeira postada defronte a ela, imaginando que não me convidariam a fazê-lo.

O trabalho é feito entrecortado por conversas paralelas: casa, amigos, fulanos, fulanas. Do relatório constam perguntas extremamente vitais para a questão: “você é casado?”. O processo segue lentamente; penso estarem zombando de mim. Estou visivelmente aborrecido. Cruzo os braços e solto muxoxos. A mulher pergunta: “Ele estava armado?”. Respondo (mais uma vez) que ele afirmou estar, mas não exibiu a arma. Em dúvida, ela pergunta à outra: “É ‘outras’, né?”, referindo-se à modalidade do assalto. “É!”, responde a mulher, a mal-encarada, “Se ele não viu...”. Retruco: “Da próxima vez peço pra ele mostrar!”. 

Entra um senhor na sala, ostentando pouco mais de cinqüenta anos. Não dou muita importância, preocupado demais com minha revolta. O homem caminha com o auxílio de muletas e senta com dificuldades, a meu lado. A outra mulher – a ranzinza – vai registrar sua queixa, exasperando-se a uma média de duas perguntas. Nesse intervalo, a que está a me atender sai da sala. Vai ligar para a filha. Fico lá, esperando, sentindo a ineficiência do Estado. Percebo que a [mulher] mais nova me observa de forma intermitente. Talvez por compadecimento de minha apreensão diante da fragilidade do combate ao crime, talvez pela surpresa em deparar-se com alguém que realmente esperava ação por parte da polícia – quando é sabida sua inércia.

A mulher volta do telefonema, faz as considerações finais – agora acompanhada da mais jovem – e entrega-me uma folha impressa, que a custo é que se consegue ler. Volta-se para um dos homens à espera – agora há uns três – e pergunta:

– O senhor é o quê?

Eu, com a folha na mão, esperava alguma conclusão do procedimento. Pergunto à mais jovem se é só isso. Ela afirma que sim. E o papel? O que fazer? Guardar? Ela dá de ombros, dizendo para fazer dele o que achar melhor. Insatisfeito, coloco-o dentro da bolsa e saio. Na recepção, olhares indiferentes. Tenciono perguntar a alguém como proceder depois da queixa. Desisto. Do lado de fora, sinto-me ultrajado; o primeiro contato com nossa força policial reforçou a desconfiança que lhe reservava. O que fazer agora? Ir para casa e esperar que me liguem? Improvável. Melhor prosseguir meu caminho. Pergunto as horas a uma mulher sentada ali perto. Quase duas. Concluo que foi um capítulo terminado no curso dos acontecimentos daquele dia. Saio dali e tomo o ônibus. As últimas lembranças me perseguem. Termino por afastá-las. Esquecer o ocorrido, assim como o Estado esquece-se de cuidar dos seus. Ponho-me a ler o noticiário semanal, tomando o cuidado de saltar as páginas sobre Brasil.