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sexta-feira, 27 de dezembro de 2013

O Tempo

Por mais que queiramos fazer os jovens entenderem a brevidade do tempo e aprender a lidarem com ele, esse é um esforço um tanto quanto inglório. Há coisas que só o tempo traz, e a própria percepção de sua passagem só é percebida quando estamos há algum tempo nesse mundo. O jovem que se pega pensando na atividade do tempo tem uma dimensão diferente da que têm seus pais e avós. Para o jovem rapaz, observar a ação do tempo é antes motivo de alegria que de reflexão. Ele notará seus amigos que eram tenros e agora são jovens fortes e que conseguem realizar grandes feitos. Verá com satisfação as meninas antes desajeitadas se transformarem em dignas herdeiras de Eva, assim como as pequenas princesas alcançarem a perfeição. Ele se alegrará da liberdade alcançada, do vento no rosto e nos cabelos durante as corridas de aventura, do nascer e do pôr-do-sol, dos amores juvenis, do coração jovem que pulsa e do mundo que ora se assemelha a um animal bravio destinado a ser montado. Mas essa é apenas uma faceta do tempo...
 
Já estou na idade em que se começa a repensar nosso conceito de tempo. A idade em que deixamos de apreciar a construção das coisas para nos concentrarmos em como definham lentamente. Em que o auge se converte em lembrança, e o declínio é a verdade que se revela. Peguei-me pensando nessas coisas ao reconhecer, em uma rede social, a foto de uma antiga conhecida da adolescência. A bem da verdade, espantei-me. Seria difícil ter reação diferente ao se dar conta de como uma pessoa tão bela sofreu imensamente com o aglutinar dos anos, perdendo toda a aura que a cercava. Não sei se tal mudança se deu por motivo de doença ou outra vicissitude da vida. O fato é que a pessoa cuja foto observava abismado era agora outra. Se contasse, não acreditariam em como já foi admirada e disputada. Mas o fato é que foi.
 
É o tempo quem vai sepultando fatos, ideias, convicções, feitos, erros, equívocos, glória, justiças e injustiças. É dele a chave que dá e tira o valor das coisas. Com o avanço do tempo aprendemos como deveríamos ter lidado com ele, mas essa lição é difícil de ensinar aos mais novos, afoitos que os anos se passem depressa para lhes trazerem a idade de realizarem coisas. As fotos então têm seu valor aumentado em muito: contam causos, remedeiam a memória, encarnam finados e trazem para perto os que moram longe.

O tempo é o artífice que nos molda o rosto de barro, conforme seu humor. Há aqueles que conservam em todas as idades os belos traços, ajudando nas previsões futuras de como a criança chamará a atenção quando crescida, bem como nas retroativas, que investigam quanta beleza havia na juventude. Igualmente, há os que padecem durante toda a vida da má vontade de nosso escultor, sendo obrigados a confiar a outros instintos e qualidades a conquista de um parceiro e obséquios. Mas aposto que a maioria dos mortais vive mesmo é de fases. Há tempos em que são visitados pela harmoniosa simetria das partes, conferindo-lhes clara vantagem de aparência, e há tempos em que são abandonados pelo motor da perdição de Narciso. É como um ensinamento de que se deve aproveitar cada fase, nem se vangloriando nem se menosprezando, pois haverá o tempo de ouvir elogios e a época de apreciar sua raridade.

É pois, isso, o tempo. Feliz daquele que compreender essas coisas em seu tempo devido, para não lamentar ou se tornar ansioso inapropriadamente. Ser chamado de sábio ou néscio disso depende. Mas continuemos tentando incultir nos mais jovens o respeito por esse que nos levanta e nos rebaixa. E guardemos as fotos a fim de que possamos futuramente fazer um balanço de sua passagem.

domingo, 15 de dezembro de 2013

Ano novo


Mais um ano-novo
Dessa vez é o 2014
O ano velho que aniversaria
Um 2013 mais velho
Diferente talvez
Na verdade, provavelmente
Depende de cada um
não esperar
não sentar
não vacilar
Mas correr, buscar
Criar um novo ano
com tudo o que o outro teve
Acrescido das experiências
tão caras
Um ano para:
aprender mais
viver mais
Descobrir a passagem secreta
de cada coração
e desvendar ali o vale escondido
Materializar sonhos
ao tocá-los
Que 2014 não seja um ponto
Mas um capítulo
daqueles bem longos
– mas marcantes
da história de nossas vidas

E, por fim, os votos que não envelhecem, apesar da muita idade. Que se repetem, não sendo os mesmos:

Feliz Ano-novo! Feliz 2014!

quarta-feira, 11 de dezembro de 2013

Eu, filho de negro, preconceituoso


Nasci branco. Aliás, minha pele era branca. Como não me era permitido passar o dia na rua como as crianças da vizinhança, mantive essa cor, ora alternada com um aspecto amarelado (que me incomodava bastante quando caçoavam de mim). Nasci branco, com lábios grossos, de negro – herança da ascendência de meu pai –, e um nariz indeciso entre qual raça seguir. Sim, nasci branco, mas acima de tudo, nasci pobre – e assim permaneci por muito tempo.

Onde morava todos também eram pobres. Gente de todo jeito: brancos, morenos, loiros, negros, cor de jambo, pardos, amarelos, albinos, queimados do sol (a maioria), tipo índios, de olhos verdes, pretos, castanho-claro, escuro, azuis, de duas cores, cabelos vermelhos, pretos, castanhos, loiros, lisos, ondulados, encaracolados, tuins. Uma verdadeira profusão de cores e modos, unidos pela pobreza, que os reduzia a uma única raça. Uma raça capenga, mambembe, desprezada, esquecida, odiada e descrente de si.

Cresci como os cães e gatos, enxergando as cenas da vida em tons de cinza ou poucas cores. Como os cães e gatos, enxergava o mundo como donos e bichos, dominantes e dominados. Os que tinham dinheiro mandavam, enquanto os que não tinham eram subjugados. Os que tinham dinheiro eram mais fortes, e nós, os fracos, os seguíamos. As coisas eram assim, na minha visão de mundo (recrudescida pela frase que meu pai ouviu de duas crianças ricas e jamais esqueceu: “(...) Eles são pobre. Eles rouba”).

Mas, à medida que crescia, ouvia pessoas reclamando de preconceito e discriminação contra negros. Achava estranho, pois na prática não via tais casos – a bem da verdade, vi alguns poucos, velados, sem impacto direto, principalmente de parte de gente de muita idade, com reminiscências indiretas da escravidão. Meus melhores amigos, em épocas diferentes, eram negros (e só agora notei isso). Conheci negros inteligentes, pouco espertos, professores, mendigos. Ou seja, sem qualquer evidência de que a cor de sua pele significasse alguma coisa. Lembro que fiquei surpreso quando alguém me disse que a exigência “de boa aparência”, recorrente em anúncios de emprego, na verdade significava “não-negro”. Espantei-me por dois motivos: se alguém tinha essa interpretação é porque achava os negros feios, e como pode também alguém dispensar um negro de boa aparência? Conheci negros horríveis, lindos, medianos, feios e bonitos (assim como ocorre em qualquer raça). Também não consegui entender a brincadeira (sem graça, frise-se) que uma morena fez apontando para sua pele, e só compreendi que falava de sua cor porque teve de explicar-me do que se tratava. Igualmente custei a entender a expressão “dia de branco”. Posso dizer que eu era isento de preconceito. Nunca enxerguei as pessoas em cores. Pessoas eram pessoas e seus atos caracterizavam quem eram. Não conseguia entender o que a cor de alguém tinha a ver com essa pessoa ter sucesso ou não na vida, ou serem discriminadas por isso.

Passei por todas as dificuldades a que uma pessoa da periferia está sujeita, mesmo não sendo negro (hoje declaro ser pardo). Estudei em uma escola pública péssima. Tive que me esforçar em dobro, aprendendo muito mais sozinho que com os professores. Tive que perceber o olhar de pena ao fazer conhecer o bairro em que morava – enquanto outros preferiam me ignorar pelo mesmo motivo. Esforcei-me como pude para mudar minha situação, e hoje isso são apenas lembranças que me contam como é difícil para quem nasce pobre mudar de vida. Não tive mãos amigas – poucas, que apenas me ensejaram força – nem condescendência, muito menos facilidades. Nadando contra a correnteza da vida, entendi que conhecimento (de todas as naturezas) é a moeda de troca da sociedade, e muitas vezes ele e o dinheiro andam juntos.

A partir do novo assento que tomei na sociedade, testemunhei pessoas “brancas” fazendo declarações abertamente preconceituosas – embora tentassem dizê-las de modo reservado. Um disse que sente um certo incômodo quando vê um negro se formando – e achava que todos os presentes também compartilhavam desse sentimento torpe. Outro deu a entender que podia usar a cor de um atendente de balcão para lembrar-lhe de sua posição social, ao repreender-lhe. Esses casos me soam tremendamente estúpidos e dignos de descarte imediato, cabendo repreensão o mais rude possível. Mas não foram esses casos que me mudaram. Eles são uma afronta a tudo quanto existe de moral no mundo e me enojam e nunca poderiam transformar-me. Mas algo em mim mudou...

Isso aconteceu quando conheci os militantes anti-racismo. Eles lutam de uma maneira exacerbada e, para mim, discutível. Em vez de querer igualar as raças, parecem buscar ainda mais diferençá-las. Ao invés de relevá-las, pretendem especializá-las. Às vezes me confundem se pregam a superioridade de sua raça preferida ou se tentam compensar deficiências inatas. Eles enxergam racismo em simplesmente tudo que envolva um negro. Como o monstro infantil que habita os guarda-roupas, fortalecem o preconceito de tanto falarem nele. Tornaram inocentes em réus e suspeitos em culpados, sumariamente. Cada passo do homem comum é agora pensado em termos de medo em ser capturado pela patrulha racial, supostamente bem intencionada. Tenho dúvidas quanto a isso. Às veze penso que são pessoas que carregam o preconceito entranhado consigo, mas, reconhecendo ser algo mau, se esforçam por extirpá-lo, e, nessa sanha, acusam todos de compartilhar desse sentimento a fim de dividir o peso de sua consciência. Foram eles que me fizeram enxergar em cores.

Hoje já não sou o mesmo quando vejo um negro. Quero considerá-lo inferior, cheio de defeitos, vindo sempre de uma origem bruta, amparado em concessões de benfeitoria, arrogante de direitos, objeto de condolência, indigno de ocupar a boa situação social em que está ou merecedor do destino cruel que sobre ele se abateu. Mas aí lembro de meu pai e meu irmão mais velho, que nunca usaram a cor para nada (embora meu pai se ressentisse dela, bisneto de um contemporâneo da escravidão). Lembro de meus melhores amigos. Das pessoas com quem convivi durante a maior parte de minha vida... Lembro de quando eu era como os cães e gatos... E volto a mim mesmo e expurgo esses pensamentos medonhos e me tenho vergonha. E volto a odiar os militantes anti-racismo por me fazerem ver o mundo em cores.

terça-feira, 3 de dezembro de 2013

Sugestão de leitura



Título: Devassos por Natureza – Provocações sobre Sexo e a Condição Humana
Autor: Jesse Bering
Editora: Zahar
ISBN: 978-85-378-0958-7






O comportamento humano é um dos mais complexos objetos de estudo para as áreas do conhecimento, seja a filosofia, a psicologia ou a ciência em geral. São vários os fatores envolvidos na caracterização da índole de cada indivíduo. Discussões a respeito de determinismo genético e influência do meio são antigas e estão longe de ter fim. Dentre os aspectos envolvidos, a sexualidade merece especial atenção, e o principal empecilho para avançar em seu entendimento é a falta de disposição de diversos segmentos (ativistas, intelectuais e até pesquisadores) em abandonar ideias pré-concebidas e míopes a esse respeito para que se possa construir um genuíno saber científico que seja útil para a sociedade.

Em seu livro intitulado Devassos por Natureza, Jesse Bering se dispõe a enfrentar sem qualquer receio essas mentes que atravancam seu caminho de contínuo buscador da verdade, ao mesmo passo que lança questões provocantes para os leitores repensarem a questão da conduta sexual em nosso meio. Distúrbios estranhos, origem da sexualidade, zoofilia, falta de sexualidade, pedofilia, são alguns temas explorados pelo autor, de forma erudita e ao mesmo tempo simples e acessível a quem tem um mínimo de cultura.

O maior trunfo do livro é ser seu autor praticamente imune a acusações de preconceito ou partidarismo. Doutor em psicologia, sectário do evolucionismo, homossexual assumido e ateu, ele pode criticar livremente questões como formação da homossexualidade e benefícios de acreditar em Deus. Ele busca, o máximo possível, analisar qualquer questão (desde a forma do órgão sexual masculino até a taxa de reprodução entre religiosos e não-religiosos) a partir de uma visão científica (algo que às vezes até cientistas não conseguem, presos que estão a suas crenças pessoais), livre de pré-conceitos e almejando descobrir a verdade, independentemente de pressões sociais.

Entre as polêmicas do livro destaca-se a posição do autor de que não nascemos com nossa sexualidade definida, mas que é fruto de um processo complexo e ainda não desvendado que envolve, entre outras coisas, experiências vividas na infância – algo que nossos ativistas pelo direito dos homossexuais deveriam entender*. Pode-se ressaltar também a questão da pedofilia, onde ele critica que o medo que cerca o tema impede que se avalie a questão em detalhes, uma vez que a maioria das pessoas tem desejos por adolescentes e jovens e tentam reprimi-lo realizando acusações contra outrem.

Devassos por Natureza é recomendado para todos os que não se incomodam em conhecer ideias diferentes das suas e às vezes da sociedade como um todo, além de apreciar elucubrações raras e aparentemente estranhas.


* Isso não é uma afirmação que os homossexuais não devam ter direitos. A crítica é à defesa utilizada em seu auxílio.

sábado, 23 de novembro de 2013

Sugestão de leitura




Título: O Cortiço
Autor: Aluísio Azevedo
Editora: várias








Nem sempre autores falavam em seus livros de lugares que nunca foram (como Chico Buarque, no romance Budapeste) ou problemas dos quais não conheciam (os militantes modernos). Eles precisavam conhecer bem o tema que queriam retratar, a fim de traçar um panorama real e um retrato confiável em suas obras. Em uma época em que fotos eram artigo de luxo ou estavam engatinhando e o cinema estava longe de surgir, cabia à palavra escrita a responsável e árdua tarefa de descrever tudo quanto havia no mundo, desde a descoberta de uma terra desconhecida, um novo mundo, aos relatos da vidinha cotidiana. Desse modo surge O Cortiço, certamente um dos melhores livros da literatura brasileira.

Aluísio Azevedo era maranhense e, como era comum no Brasil do século XIX, morou e trabalhou durante algum tempo no Rio de Janeiro. Nessa época, o que já foi morro, periferia, e hoje é comunidade, antes havia sido cortiço – um conglomerado de pobres das mais diversas estirpes. Foi em um desses que Aluísio Azevedo alugou um quarto e morou durante certo tempo a fim de conhecer o modo de vida daquelas pessoas e descrevê-las com incomum acurácia. Influenciado pelo Realismo europeu e pela corrente positivista, o autor não poupou nos zoomorfismos, utilizando expressões e comparações com animais para ilustrar as ações dos personagens, sem contudo defendê-los ou acusá-los, mas apenas narrando seu modo de vida segundo uma visão de mundo. A descrição detalhada de Aluísio surpreende. O despertar no cortiço e a menarca de Pombinha são passagens antológicas que atestam essa característica na trama, cujo personagem-central é o próprio cortiço.

O livro inicia com a trajetória de João Romão, que passa de adolescente ajudante de taverna a dono de cortiço (e, por fim, integrante da alta sociedade carioca), através de uma sequência de trambiques, onde até mesmo falsifica uma carta de alforria para uma escrava que se torna sua esposa. Junto com o cortiço vêm dezenas de personagens, alguns com história própria, como é o caso de Jerônimo, Rita Baiana e Pombinha. Sobram ironias e críticas a uma sociedade ainda mais hipócrita que a atual. A narrativa deixa transparecer que o homem é moldado pelo meio em que vive, do qual não pode escapar, como bem preconizava o cientificismo da época.
Seguem alguns trechos da obra:

Desde que a febre de possuir se apoderou dele totalmente, todos os seus atos, todos, fosse o mais simples, visavam um interesse pecuniário. Só tinha uma preocupação: aumentar os bens. Das suas hortas recolhia para si e para a companheira os piores legumes, aqueles que, por maus, ninguém compraria; as suas galinhas produziam muito e ele não comia um ovo, do que no entanto gostava imenso; vendia-os todos e contentava-se com os restos da comida dos trabalhadores. Aquilo já não era ambição, era uma moléstia nervosa, uma loucura, um desespero de acumular; de reduzir tudo a moeda. E seu tipo baixote, socado, de cabelos à escovinha, a barba sempre por fazer, ia e vinha da pedreira para a venda, da venda às hortas e ao capinzal, sempre em mangas de camisa, de tamancos, sem meias, olhando para todos os lados, com o seu eterno ar de cobiça, apoderando-se, com os olhos, de tudo aquilo de que ele não podia apoderar-se logo com as unhas.

***
Bertoleza também trabalhava forte; a sua quitanda era a mais bem afreguesada do bairro. De manhã vendia angu, e à noite peixe frito e iscas de fígado; pagava de jornal a seu dono vinte mil-réis por mês, e, apesar disso, tinha de parte quase que o necessário para a alforria. Um dia, porém, o seu homem, depois de correr meia légua, puxando uma carga superior às suas forças, caiu morto na rua, ao lado da carroça, estrompado como uma besta.
João Romão mostrou grande interesse por esta desgraça, fez-se até participante direto dos sofrimentos da vizinha, e com tamanho empenho a lamentou, que a boa mulher o escolheu para confidente das suas desventuras. Abriu-se com ele, contou-lhe a sua vida de amofinações e dificuldades. “Seu senhor comia-lhe a pele do corpo! Não era brinquedo para uma pobre mulher ter de escarrar pr’ali, todos os meses, vinte mil-réis em dinheiro!” E segredou-lhe então o que tinha juntado para a sua liberdade e acabou pedindo ao vendeiro que lhe guardasse as economias, porque já de certa vez fora roubada por gatunos que lhe entraram na quitanda pelos fundos.
Daí em diante, João Romão tornou-se o caixa, o procurador e o conselheiro da crioula. No fim de pouco tempo era ele quem tomava conta de tudo que ela produzia e era também quem punha e dispunha dos seus pecúlios, e quem se encarregava de remeter ao senhor os vinte mil-réis mensais. Abriu-lhe logo uma conta corrente, e a quitandeira, quando precisava de dinheiro para qualquer coisa, dava um pulo até à venda e recebia-o das mãos do vendeiro, de “Seu João”, como ela dizia. Seu João debitava metodicamente essas pequenas quantias num caderninho, em cuja capa de papel pardo lia-se, mal escrito e em letras cortadas de jornal: “Ativo e passivo de Bertoleza”.
E por tal forma foi o taverneiro ganhando confiança no espírito da mulher, que esta afinal nada mais resolvia só por si, e aceitava dele, cegamente, todo e qualquer arbítrio. Por último, se alguém precisava tratar com ela qualquer negócio, nem mais se dava ao trabalho de procurá-la, ia logo direito a João Romão.
Quando deram fé estavam amigados.
Ele propôs-lhe morarem juntos e ela concordou de braços abertos, feliz em meter-se de novo com um português, porque, como toda a cafuza, Bertoleza não queria sujeitar-se a negros e procurava instintivamente o homem numa raça superior à sua.
***

Eram cinco horas da manhã e o cortiço acordava, abrindo, não os olhos, mas a sua infinidade de portas e janelas alinhadas.
Um acordar alegre e farto de quem dormiu de uma assentada sete horas de chumbo. Como que se sentiam ainda na indolência de neblina as derradeiras notas da última guitarra da noite antecedente, dissolvendo-se à luz loura e tenra da aurora, que nem um suspiro de saudade perdido em terra alheia.
A roupa lavada, que ficara de véspera nos coradouros, umedecia o ar e punha-lhe um farto acre de sabão ordinário. As pedras do chão, esbranquiçadas no lugar da lavagem e em alguns pontos azuladas pelo anil, mostravam uma palidez grisalha e triste, feita de acumulações de espumas secas.
Entretanto, das portas surgiam cabeças congestionadas de sono; ouviam-se amplos bocejos, fortes como o marulhar das ondas; pigarreava-se grosso por toda a parte; começavam as xícaras a tilintar; o cheiro quente do café aquecia, suplantando todos os outros; trocavam-se de janela para janela as primeiras palavras, os bons-dias; reatavam-se conversas interrompidas à noite; a pequenada cá fora traquinava já, e lá dentro das casas vinham choros abafados de crianças que ainda não andam. No confuso rumor que se formava, destacavam-se risos, sons de vozes que altercavam, sem se saber onde, grasnar de marrecos, cantar de galos, cacarejar de galinhas. De alguns quartos saiam mulheres que vinham pendurar cá fora, na parede, a gaiola do papagaio, e os louros, à semelhança dos donos, cumprimentavam-se ruidosamente, espanejando-se à luz nova do dia.
Daí a pouco, em volta das bicas era um zunzum crescente; uma aglomeração tumultuosa de machos e fêmeas. Uns, após outros, lavavam a cara, incomodamente, debaixo do fio de água que escorria da altura de uns cinco palmos. O chão inundava-se. As mulheres precisavam já prender as saias entre as coxas para não as molhar; via-se-lhes a tostada nudez dos braços e do pescoço, que elas despiam, suspendendo o cabelo todo para o alto do casco; os homens, esses não se preocupavam em não molhar o pêlo, ao contrário metiam a cabeça bem debaixo da água e esfregavam com força as ventas e as barbas, fossando e fungando contra as palmas da mão. As portas das latrinas não descansavam, era um abrir e fechar de cada instante, um entrar e sair sem tréguas. Não se demoravam lá dentro e vinham ainda amarrando as calças ou as saias; as crianças não se davam ao trabalho de lá ir, despachavam-se ali mesmo, no capinzal dos fundos, por detrás da estalagem ou no recanto das hortas.
O rumor crescia, condensando-se; o zunzum de todos os dias acentuava-se; já se não destacavam vozes dispersas, mas um só ruído compacto que enchia todo o cortiço. Começavam a fazer compras na venda; ensarilhavam-se discussões e resingas; ouviam-se gargalhadas e pragas; já se não falava, gritava-se. Sentia-se naquela fermentação sangüínea, naquela gula viçosa de plantas rasteiras que mergulham os pés vigorosos na lama preta e nutriente da vida, o prazer animal de existir, a triunfante satisfação de respirar sobre a terra.

domingo, 10 de novembro de 2013

Perdemos a guerra

Má notícia para os amantes das belas-artes: seus dias (os delas) estão contados. Sim, esqueça a efervescência de novas telas, o arroubo de grandes poemas, a verve de eternas composições. Tudo isso é passado. Cabe a nós tão somente nos atermos ao legado dos gênios e mestres, não esperando nada daqui para a frente. Como disse o poeta: “o século está podre”. E esse em que estamos já nasceu em estágio avançado de putrefação. 

E não são apenas as artes que se esvaem em sangue. Os bons costumes também vão pelo mesmo caminho. Antes as pessoas lutavam para expressar sua sexualidade. Hoje elas brigam para expô-la. E do pior ponto de vista possível, sem qualquer busca por resultados justificáveis. Já não há mais idade para iniciação sexual. A inocência das crianças, antes tida como símbolo máximo da pureza, cantada em verso e prosa, caducou. Extinguiu-se. Adultos e infantes compartilham as mesmas indecências, embora essas últimas sejam dispensadas de demonstrar respeito e responsabilidade.

Essa geração, ao contrário de todas as outras, não renovou a arte. Ela a destruiu. Tem-lhe ojeriza. Os movimentos vanguardistas, que traziam em seu bojo o sopro de renovação, a ânsia por expressar seus sentimentos de outra maneira, minguaram. O que se percebe é uma apatia geral. Uma mediocridade que grassa entre os ditos artistas modernos.

E engana-se quem pensa que falo apenas da nata artística – aquela que constitui o panteão eterno da genialidade humana. Refiro-me a toda a gradação de qualidade de produções do gênero. Na literatura, há livros eternizados pelo modo como foram escritos, enquanto outros são sempre lembrados pela estória que carregam. Os livros de hoje são fáceis, não oferecem desafio intelectual algum, muito menos uma escrita elegante. E mesmo esses não encontram leitores ávidos, salvo raras exceções. As músicas populares destinadas às massas têm um muito curto prazo de validade, ao cabo do qual são totalmente esquecidas, e não há uma única frase que fique para a posteridade. Pintores não se esmeram mais. Rabiscam telas e as vendem por altos valores, ainda que não saibam do que se trata – por isso que a muitos desses quadros não foi possível ao autor dar-lhes nomes.

Não adianta rebelarmo-nos, bradar contra, achincalhar. Perdemos a guerra. Essa geração é composta de ignorantes, e na insipiência é que se sentem à vontade. Acham que construir um novo mundo é sepultar tudo o que veio antes deles. Desconhecem que toda grande nação tem por alicerce o saber dos antigos, sua herança intelectual, suas produções diversas. Eles acham que podem fazer melhor, mas o fato é que terminarão por reinventar a roda pelo simples fato de não saberem que ela já existe. Esse é simplesmente o maior retrocesso de todos os tempos.

E ai dos que se dedicam à árdura tarefa de criticar. Como uma pequena zebra em meio a leões, são perseguidos por tentarem julgar a qualidade do que se produz hoje. O liberalismo moral e estético não admite críticas. Ele apregoa que tudo o que se produz é bom, a partir de algum ponto de vista. Sob essa alforria irresponsável têm surgido toda sorte de pseudo-artistas, deturpando padrões e maculando as artes clássicas. Usam a arte, sem contudo a conhecerem ou fazerem parte dela, sem contribuírem nem um pouco com sua causa.

Mas acredito piamente nos ciclos. Creio que, assim como a rica cultura grega foi redescoberta nos anos negros da Idade Média, alguma geração futura remeterá aos grandes vultos que ora se dissipam em busca de justificativa para a humanidade. Oxalá ela possa reacender o espírito criativo e a inquietação estética que se encontra adormecida e desprezada. Enquanto isso, que ninguém se engane: perdemos a guerra, camaradas! Deixemo-nos silenciar e nos saciarmos nas poucas representações realmente verdadeiras que ainda surgem de quando em quando, tímidas, às escondidas, temendo a repreensão da turba ignorante. Desejemos sorte para os que vierem depois de nós. Que eles possam reverter esse quadro. À morte digna, companheiros!

segunda-feira, 4 de novembro de 2013

Caiu na net

Não basta esbravejar contra quem divulga vídeos íntimos na Internet, prejudicando outrem. É necessário conscientizar as pessoas de como podem ser corresponsáveis através de seus deslizes.



Há alguns dias vi, em uma rede social, uma postagem de alguém em apoio a uma jovem chamada Fran. Na verdade, era uma replicação de um blog de outra pessoa. Como não sabia do que se tratava, busquei mais informações. Tratava-se de mais um desses casos conhecidos como “caiu na net” – fotos ou vídeos íntimos (a maioria de relações sexuais) que são postados na Internet, normalmente contra a vontade de ao menos um dos protagonistas. Esse em particular ficou conhecido devido ao fato de ter se tornado “meme” – ideia que se espalha rapidamente através da Internet –, pois, em um dado momento do vídeo, a jovem mencionada anteriormente faz um sinal (incomum para a ocasião) com a mão, parecido com o sinal de “ok”. A propósito, as pessoas que lhe prestavam apoio na Internet repetiam o gesto que a tornou conhecida.

Casos semelhantes não faltam na grande rede. A maioria com o mesmo fim: quem tem o vídeo divulgado abandona emprego, para de sair de casa, muda de cidade – um caso recente culminou em suicídio. Um transtorno para ela e para a família. Normalmente a vítima é uma mulher. As razões variam: vingança, câmera ou aparelho celular roubado, arquivos copiados sem autorização por terceiros, etc. Há sites especializados apenas nesse tipo de material, e há pessoas fascinadas por ele devido ao realismo, bem diferente das filmagens pornográficas realizadas em estúdio. Faixa etária e posição social dos vitimados são as mais diversas possíveis. Algumas fotos/filmagens são realizadas de comum acordo (aparentemente a maioria), outras sem consentimento. Enfim, há de tudo.


O vídeo citado no início do texto não traz nada de novo, mas como tornou-se conhecido, é um bom mote para tratar do tema. Em primeiro lugar, é desnecessário dizer que, nos casos onde alguém deliberadamente divulga um vídeo desse tipo sem o consentimento de quem está nele exposto, com a finalidade de prejudicá-lo, não pode ser classificado como menos que mau caráter. No limite, como criminoso, um sociopata. Mas essa não é a abordagem que pretendo aqui, até mesmo porque para isso existem inúmeras pessoas que não se cansam de fazê-lo. Meu objetivo é analisar um outro aspecto de tais casos. Afinal, bradar contra todo culpado que surja para cada novo caso não é de modo algum produtivo. O bom é utilizar a inteligência e extrair algo útil dessa questão.


Quando as populações europeias da Idade Média começaram a melhorar de vida através da circulação do dinheiro, os bancos, então já existentes, prosperaram. O capital financeiro era importante demais para ser guardado em casa ou circular com seu dono pelas ruas e estradas, sujeito a saqueadores. Hoje isso continua uma verdade, tanto que dispomos de modernos substitutos das cédulas e moedas, como cheques e cartões de crédito. O dinheiro é algo trabalhoso de se conseguir (ao menos para a maioria das pessoas) e valioso o suficiente para que as pessoas evitem expô-lo ao risco de o perder. Alguns o entregam aos bancos, enquanto outros o empregam em negócios financeiros. E esse cuidado não se restringe apenas ao pecúlio, mas a toda sorte de bens. Alguns bancos abrigam joias, documentos, objetos raros, entre outras coisas, todas com valor para seus donos.


Infelizmente, não podemos guardar bens intangíveis nos cofres fortificados dos bancos. Esse tipo de bem exige outro tipo de tratamento e segurança, que cabe quase exclusivamente a nós e a uns poucos a quem os confiamos. Honra, lisura, caráter, fama, prestígio, confiança. São valores construídos com esforço e que podem ser facilmente destruídos. Basta um passo em falso. Embora haja uma tendência crescente de exposição da sexualidade, através de festas como bailes funks, a verdade é que a intimidade permanece como parte da identidade de um indivíduo que ele prefere manter entre quatro paredes. Seu comportamento durante o ato sexual não é algo que deva ser devassado, sob risco de trazer graves consequências e ignomínia, talvez irremediáveis. Sendo assim, talvez seja o caso de nos acercarmos dos maiores cuidados possíveis a fim de preservar nossa imagem.


O grau de liberdade sexual que vimos experimentando década após década dá margem para que pessoas que se sentem excitadas ao fazerem sexo frente a câmeras possam gravar a si mesmas, livres de qualquer dilema moral. No entanto, deve-se atentar que esse fato, a princípio simples e desprovido de riscos, pode-se constituir em prova ou elemento de chantagem que será utilizado contra seu autor. Por isso, duas medidas importantes devem ser tomadas quando se praticar tal atividade.


A primeira delas é mais que óbvia: a escolha do parceiro. Deixar-se filmar em um encontro de sexo casual com um desconhecido é assinar um cheque em branco – claro, e você apenas ponderará a respeito se estiver minimamente sóbrio. Gravar um vídeo com um companheiro de tempos e relação estável também não é garantia de tranquilidade eterna. Como dito antes, a divulgação intencional a fim de prejudicar outrem só pode ser perpetrada por pessoas muito más e/ou doentes. A questão – e se você for minimamente sincero irá concordar – é que esse tipo de homem (foco no gênero masculino devido a ser ele o principal divulgador desse tipo de vídeo) desfruta de grande prestígio entre as mulheres – e há estudos científicos que buscam explicações para esse incômodo fenômeno. Como nossas mulheres ainda vivem a ilusão do amor romântico, onde elas criam um perfil de homem ideal e o preenchem com qualquer um, passam então a ignorar propositadamente tudo que não se encaixa no personagem criado mentalmente – porque o mais importante é a relação, e não o companheiro. Ora, ninguém é mau uma única vez na vida, ainda mais com um ato tão hediondo. As pessoas dão demonstrações várias e repetidas de seu caráter, mas compete a quem quiser vê-los enxergar. Tudo bem que aparências enganam (o risco sempre haverá, mas o importante é tentar mitigá-lo ao máximo), mas encher-se de toda a ingenuidade do mundo e registrar algo tão íntimo e com alto poder devastador com um parceiro arriscado não ajuda em nada. É preciso analisar o que vale a pena.


O segundo cuidado que se deve ter é com o conteúdo registrado. O que fazer com ele? Onde guardá-lo? E por quanto tempo? Mesmo nos casos em que se obsevou o primeiro aspecto (o do companheiro), nada garante que o vídeo vá ao ar pela ação de terceiros. Há muitos displicentes que copiam esse conteúdo para computadores do trabalho, onde pode ser copiado indiscriminadamente, ou enviam seus notebooks para manutenção sem tomar qualquer cuidado. Classificar isso como irresponsabilidade é dizer pouco. É não atentar para o potencial devastador de sua divulgação, colocando a vítima lado a lado com o criminoso, em nível de delinquência mental. Deve-se criar a cultura e a consciência de que isso é arriscado e cuidados devem ser tomados a fim de não se ver em uma situação indelicada como tantos outros mundo afora.

Concordo que é válido lutar pelo extermínio dessa prática, assim como também o é defender o fim de roubos, assassinatos, estupros, preconceito, etc. São desordens que estão com a humanidade desde os tempos imemoriais e não têm pressa nem previsão de irem embora. Até lá, é mais prudente adotar uma postura pragmática que surta efeito a curto prazo, em vez de tentar atingir um inimigo quase invencível.


O pai de Sidarta Gautama – hoje conhecido pelo nome de Buda – sabia que o mundo era mau, por isso mantinha o filho trancafiado dentro dos muros do palácio, a fim de não tomar conhecimento da miséria do mundo. Mas como esse modelo era insustentável, um dia o jovem saiu e ficou chocado com o que havia lá fora, pois não fora preparado para isso. Felizmente, ele encontrou seu caminho e é hoje admirado – e seguido – por milhares de pessoas. Embora a maioria dos militantes e simpatizantes se condoam dos que passam por tal abuso, não adianta querer mudar o mundo a fim de protegê-los. O caminho seguro é ensiná-los os perigos do mundo para que nunca caiam neles.


domingo, 27 de outubro de 2013

O Longo Caminho entre a Teoria e a Prática (ou Direitos Humanos – servem a quem?)

Quem de fato são (ou deveriam ser) os beneficiários dos direitos humanos?


A matemática pode ser vista como uma das ciências mais belas e consistentes que existe. Ela tem sido usada largamente em vários campos do conhecimento e permitiu o desenvolvimento de diversas tecnologias e invenções, além de contribuir para a resolução de diversos problemas nas mais variadas situações. Apesar disso, trata-se de “um modelo perfeito para representar um mundo imperfeito”, ou seja, há um descompasso entre a teoria matemática e a realidade de nosso mundo físico (há uma extensa discussão sobre isso no meio acadêmico: trata-se do platonismo da matemática). Por exemplo, a reta real é uma representação do continuum numérico dos números reais. Desse modo, se você traça uma linha no chão, temos ali uma reta real, com os infinitos números em toda sua extensão. Matematicamente, você não seria capaz de, andando por sobre ela, dado que os passos são contínuos, e não discretos, sair do lugar, uma vez que entre dois números reais há infinitos outros números reais. Mas – surpreendentemente – você consegue! Esse é um caso bobo da não-correlação total entre uma ciência e a realidade que ela modela. Mas não é apenas a matemática que sofre desse mal. Outras ciências (e disciplinas não tão científicas assim) também esbarram por vezes na teimosia da realidade em obedecer a suas prescrições. (vamos deixar esse pensamento marinando para retomá-lo mais à frente)

Há alguns dias um vídeo gravado aqui no Brasil ganhou o mundo e repercutiu em toda a imprensa, nacional e estrangeira. Trata-se de um assalto ocorrido em pleno dia, em uma avenida da cidade de São Paulo. Uma dupla de bandidos, em uma moto, aborda um rapaz que está fazendo uma conversão, também em uma moto, e, de arma em punho, obriga-o a entregar o veículo. Terminada a ação rápida, um deles foge na primeira moto, mas o outro, que montava a moto furtada, é alvejado a tiros por um policial que estava próximo ao local do crime. O rapaz dono da moto agradece ao policial e tripudia do criminoso extendido no chão, já desinvestido da autoridade que julgava possuir e se achando a vítima (ele não vem a óbito, para a insatisfação do jovem assaltado e dos internautas que comentaram o caso nas redes sociais). Tudo foi gravado pela câmera acoplada no capacete do rapaz que quase teve a moto levada.

Esse vídeo foi reproduzido e divulgado fartamente na Internet, e logo surgiram comentários, artigos e posts a respeito. Num deles, dizia-se que a ministra dos Direitos Humanos ficou chocada pela violência do policial e do país como um todo, tomando partido pelo meliante. Outro afirmava que o polícia foi afastado do exercício da função devido a sua conduta. Um terceiro desmentia a suposta declaração da ministra. Agora sabe-se que foi uma postagem de um blog irônico, mas que foi compartilhada como sendo séria devido ao desconhecimento dos leitores. A ministra se pronunciou e ordenou a remoção do artigo do blog, ameaçando inclusive acionar a polícia federal. A informação era falsa, ambas: a da ministra – que em realidade legitimou a abordagem – e a da punição do policial, que na verdade foi condecorado com o mais alto grau de honraria da corporação. Embora ela de fato não tenha feito tal pronunciamento, todos acreditaram sem qualquer estranhamento. Por quê? (desconsidere a parvoíce de nosso povo de cada dia que lê tudo acriticamente – pelo menos só até o fim desse post)

As atuações dos representantes dos direitos humanos (ou pelo menos as visíveis), na minha opinião (e na de diversas pessoas, como pôde-se perceber do caso acima), deixam muito a desejar. Nasci e cresci em uma cidade bastante violenta, onde assaltos eram tão comuns quanto vendedores de pipoca em parques (talvez mais até). Pessoas inocentes e indefesas sofriam e morriam de acordo com a vontade dos agressores, sem poder fazer nada. O máximo que podiam fazer era se sentirem vingadas quando um desses marginais era morto por seus comparsas – ou pela polícia, o que era mais raro. O sentimento geral era de pânico e impotência. Pequenos comerciantes acordavam todos os dias para o calvário do balcão, esperando ser assaltados a qualquer momento. O medo de acordar com bandidos dentro de casa era recorrente. Uma mulher andando sozinha tarde da noite era uma fonte de preocupação para a família. Pobres velhos tinham seus salários – ou a renda conseguida pelo trabalho duro do dia vendendo algum tipo de comida num carrinho de mão empurrado rua acima, rua abaixo – tomados à força por facínoras. Em algumas localidades, os bandidos estabeleciam toque de recolher, aterrorizando os moradores e cerceando sua liberdade. Não se podia ostentar nada de valor, nem almejar ter um padrão de vida melhor, fosse trabalhando ou estudando, sob a custa de sofrer reprimendas. Dado esse panorama de agressão e terrorismo social, era de se esperar uma ação enérgica das forças responsáveis pela segurança pública, nem que fosse uma nota de compadecimento por parte dos representantes dos direitos humanos. Mas era o contrário que ocorria: quando algum criminoso era ferido ou morto ou ameaçado pela turba revoltada, logo surgiam um, dois, um caminhão de representantes dos direitos humanos para garantir seus “direitos” de – pasmem – cidadão e ser humano.
O cidadão que porventura assassinasse um bandido sofria na pele as mais severas penalidades da “justiça”.

Não posso dizer que tais representantes eram queridos pela população de minha terra. E, ao que parece, eles não são bem vistos em outros lugares também. E por um motivo muito simples: eles apenas surgem para defender os fora-da-lei, enquanto a população em geral é abandonada à mercê de criminosos, sem ninguém que se condoa de suas agruras. Foi por esse motivo que tantas pessoas nem sequer pararam para pensar se a ministra de fato seria a autora da fala que lhe atribuíram. O discurso é uma colcha de retalhos de frases normalmente ditas por pessoas afetadamente avessas à realidade social: que foi a sociedade que colocou a arma na mão do criminoso, que ele não tem culpa, que é produto do capitalismo, entre outras pérolas. Esse é o ponto em que retomo a colocação do início do texto para misturar a esse fato e produzir minha posição sobre o tema.

As ciências sociais possuem muitas teorias sobre a sociedade. Verdadeiras teses, colossais, monumentais. É de dar dor de cabeça e vertigem em qualquer um. Mas tenho sérias dúvidas quanto à praticidade (ou aplicabilidade) delas. Creio que minha sensação isso se dá pelo fato de que os intelectuais sociais aparentam gastar seus dias pensando em como as pessoas vivem e limitam-se a isso: apenas pensam, sem conferir como as coisas se dão de fato. O próprio [Karl] Marx passou a vida praticamente sem trabalhar. Não sei se de fato ele conhecia as entrelinhas do trabalho desenvolvido pelos assalariados, com todo o seu microuniverso. Há uma divergência muito grande entre o que pregam os estudiosos da sociedade e o modo como ela opera. O fato é que o povo necessita de ações práticas, e não de teses de doutorado que não resolvem problema algum. O homem é um produto do meio? Sim! Não! Talvez. Depende... Isso é um assunto muito bom para se discutir em uma mesa redonda, mas para o trabalhador que se vê com uma arma apontada violenta e covardemente por um marginal que quer levar sua moto recém-comprada, qual o valor desse questionamento? O problema dele é outro, situado em outra esfera. Viver ou morrer, o instinto básico premente do ser humano. Jogar a culpa na sociedade, buscar as raízes históricas, a vida pregressa do marginal a essa altura do campeonato não tem importância alguma, muito menos resultado prático.

Concordo que uma sociedade que preza pelos direitos de todos tenha a preocupação social com seus criminosos. Mas essa preocupação tem que perpassar por toda a cadeia de risco de potenciais criminosos – ao menos dos casos mais óbvios. Deve-se acompanhar as comunidades das quais a maior parte deles se origina, cuidar da educação pública, criar oportunidades de emprego, punir exemplarmente (e dignamente) os infratores. Não apenas se deparar com o pior cenário possível consumado e querer fazer o resgate histórico dos ocorridos que culminaram naquilo, como que para justificá-lo e, assim, banalizá-lo. É fato que o ambiente influencia o desenvolvimento de um ser humano, mas devemos atribuir a ele toda e qualquer ação nossa? Algumas pessoas são mais sucestíveis a influências que outras, isso também é notório. Mas como realizar cada tratamento individualmente? Deve-se nivelar por baixo, considerando todos inocentes, ou culpar os transgressores pelo mau uso de seu livre-arbítrio?

Estamos em uma situação em que não podemos esperar todos os problemas de base serem resolvidos para agir. Por exemplo, o maior programa de assistência social e distribuição de renda do governo é uma situação paliativa (assim como a política das cotas nas universidades públicas). Ele é muito criticado porque atenua um problema que existe apenas porque questões básicas como saúde e educação não funcionam. Esse é um caso típico em que duas soluções são trabalhadas ao mesmo tempo (estou desconsiderando o fato de que não se está trabalhando para resolver os problemas centenários de educação e geração de riqueza). Às vezes isso é de fato necessário. Então, por que raios alguns intelectuais sociais se preocupam apenas com a origem dos problemas, sem atentar que é necessário uma solução para agora? Chega um momento em que se tem que colocar na balança o justo e o injusto. É imoral dispensar-lhes o mesmo tratamento, como se não houvesse mérito na justiça, ou como se ser injusto fosse louvável.

Concordo que matar um bandido não irá resolver o problema, mas tampouco deixá-lo livre para oprimir a sociedade o fará. Nesse caso, por que condenar quem lhe tira a vida? Lógico que não é a decisão mais acertada, mas qual seria então? Qual a mais útil e prática? O que é impossível concordar é destinar grande quantidade de recursos públicos para garantir direitos a meliantes enquanto a população permanece na penúria. Lembro de vezes em que até helicópteros foram utilizados para transportar criminosos da delegacia até o hospital. Quando um cidadão de bem terá essa regalia? Isso recrudesce a sensação de que não vale a pena ser justo e de que o governo é leniente com os transgressores da lei. Havia um desenho que assistia quando criança em que o personagem do bem sempre dizia, quando alguém sugeria que exterminassem os capangas do mal: “se fizermos isso, seremos piores que ele”. Será? Era um desenho americano. Depois vi que nas produções japonesas (um país com criminalidade baixíssima) todos os praticantes do mal eram exterminados. O que será que isso quer dizer? Talvez o Japão não seja um país civilizado, afinal. Mas o Brasil com certeza é.

Não faço apologia da pena de morte ou algo do tipo, mas não me conformo em tratar uma pessoa de bem igual a um facínora apenas porque, em um momento de fúria e desamparo do estado, pôs ele mesmo um fim a quem o infligia tanto sofrimento. Acaso ele, devido a isso, deixa de ser humano ao ponto de não ter defesa dos direitos humanos? Há muita coisa a ser acertada nesse país, e uma delas, a mais urgente, é tratar cidadãos de bem como cidadãos de bem e infratores como infratores.


Clique aqui para assistir ao vídeo do flagrante.

segunda-feira, 21 de outubro de 2013

"Todo mundo é fã do Michael Jackson"

A reposta humilde e chocante (?) de um jovem talento da música.



Há uns dias encontrei um vídeo na Internet de uma criança (ou pré-adolescente, pois tinha doze anos) se apresentando como calouro em um canal da TV aberta brasileira. Devo dizer que foi uma das apresentações mais marcantes e sensacionais que já vi. Impressionado com tamanho talento, busquei mais vídeos do menino. Encontrei outros tão incríveis quanto o primeiro e outros nem tanto. Em meio a esses últimos, um em particular me chamou a atenção. Foi uma participação dele no programa Esquenta da Rede Globo, comandado por Regina Casé – trata-se de um programa que tenta glorificar todo tipo de cultura que existe Brasil afora, tentando mostrar os valores de nosso povo tão diverso. Perguntado se era fã de Michael Jackson, a resposta do convidado foi: “(...) com certeza. Todo mundo é fã do Michael Jackson”.

Após essa declaração, nota-se um silêncio de milésimos de segundos – como se fossem todos pegos de surpresa –, após os quais alguns músicos ali presentes ensaiam uma salva de palmas e uma interjeição de simpatia à declaração – para a frase não ficar sem resposta –, seguidos timidamente pela plateia. A apresentadora também sai pela tangente, dizendo-se igualmente fã do artista falecido. Tudo é muito rápido, mas o fato merece uma reflexão.

O garoto em questão atende pelo nome artístico de Jotta A. Surgiu no cenário televisivo no Programa Raul Gil, da TV Record, em 2011. Em sua primeira apresentação, cantou uma canção cristã conhecida em todo o mundo (ele é evangélico), intitulada Agnus Dei, composta por um dos mais conhecidos músicos do meio, o americano Michael W. Smith. Quando terminou a música, a plateia o aplaudia de pé, em êxtase (o que se tornou uma constante durante suas participações). Os componentes do júri estavam boquiabertos. Uns diziam ser perfeito, outros o aplaudiram de pé, outros choraram durante toda a apresentação. Durante o concurso, ele realizou uma dezena de apresentações fantásticas. Quando interpretou outro sucesso mundial, Oh Happy Day, até os músicos instrumentistas do programa, contratados para acompanhar os participantes, o aplaudiram. Seus vídeos correram o mundo, somando mais de trinta milhões de acessos no Youtube. É possível ver comentários dos mais diversos países, em inglês, espanhol e idiomas menos conhecidos. Internautas relataram ir às lágrimas ao ouvirem-no cantar. Pessoas do exterior chamaram-no para se apresentar em seus países, enquanto outros vieram ao Brasil para conhecê-lo. Produtores de artistas mundialmente famosos quiseram assinar contrato com ele. Ele foi o vencedor do concurso, e o CD gravado logo após o mesmo rapidamente atingiu a marca de oitenta mil cópias vendidas, garantindo-lhe disco de platina. Diversos vídeos gravados antes do sucesso surgiram, gravados em igrejas, casas, escolinha, e até mesmo num carro. Recebeu prêmios em eventos gospel. Foi elogiado por veteranos. Cantou e gravou com outros tantos. O garoto de voz aguda e capacidade de improviso que poucos adultos têm, que conseguia produzir sons gulturais, que começou a cantar com três anos e gravou o primeiro trabalho aos seis, ganhou o mundo. A comparação foi inevitável: “niño brasileño con una voz como la de Michael Jackson”, diz o título de seu vídeo mais visto mundo afora.

Com o enorme sucesso, o menino poderia subir em um pedestal e olhar os outros lá de cima. Poderia preparar uma cama de orgulho e se deitar nela (e provavelmente seria o maior erro de sua vida, e talvez ele soubesse disso). Mas, diante da pergunta simples, o menino que impressionou o mundo cantando e que entende como poucos a linguagem da música, deu uma resposta simples, que julgou ser a mais apropriada e óbvia (com a humildade que apresentou durante suas apresentações como calouro): “todo mundo é fã de Michael Jackson”.

Provavelmente o público não entendeu suas palavras. Afinal, para a maioria dos presentes, o artista conhecido como Rei do Pop não passava de uma figura esquisita de hábitos estranhos e que morreu de forma inglória. Para muitos, um criminoso, acusado que foi de pedofilia – embora nada se tenha provado até hoje. Os mais antigos ali presentes ainda poderiam saber um pouco mais sobre o astro, mas os mais novos ignoram sua carreira. Não sei o quanto o garoto Jotta A sabe da vida de Michael Jackson, mas sua resposta, além de humilde, é bastante sóbria. Não se trata de gostar de sua música, mas de reconhecer e reverenciar seus feitos artísticos.

Michael Jackson foi um menino prodígio e um fenômeno da música e do show business. Ele não foi um cantor, nem um compositor, ou um dançarino. Ele congregava o superlativo de todas essas habilidades, o que o tornava um artista completo – embora não seja certo que pudesse tocar algum instrumento, produzia com a boca os arranjos para suas músicas (a propósito, era dono de um beatbox – percussão vocal – impressionante). Como cantor, iniciou aos oito anos com seus irmãos no grupo The Jackson 5, logo assumindo o destaque do grupo, com sua voz aguda e interpretação marcante. Ao longo da carreira, desenvolveu um estilo único de cantar, inconfundível e praticamente inimitável. Como compositor, criou dezenas de canções inesquecíveis e que fizeram sucesso no mundo todo, até os dias atuais. Quando compunha, não escrevia as músicas. Utilizava um gravador para registrá-las, já que as idealizava com parte dos arranjos, como algumas bases, percussão e linha de baixo. Quando o fazia, entrava em um estado de êxtase que o impelia a terminar a composição rapidamente (ao criar Billie Jean, não percebeu que o carro que dirigia estava pegando fogo). Como dançarino, apresentava domínio corporal pleno, realizando passos de difícil execução, como quando imitava um robô. Mas sem dúvida sua marca registrada foi a divulgação do moonwalk (efeito visual em que o dançarino dá passos para frente, mas se move para trás), o passo de dança mais famoso do mundo.

Não se pode dizer que o fenômeno Michael foi tão somente um ponto de ruptura no meio musical. Ele foi antes uma intersecção entre ritmos e escolas. Alguns de seus álbuns foram produzidos por Quincy Jones, um trompetista da velha-guarda do jazz que tocou com nomes como Count Basie, Duke Ellington, Gene Krupa e Ray Charles. Paul Jackson Jr, outro jazzista (guitarra), mas da nova geração, também participou de gravações suas. Alguns grandes guitarristas do rock também tocaram com ele, como Slash (Guns'n'Roses) e Eddie Van Halen (Van Halen) – um dos dez melhores guitarristas de todos os tempos. Michael cantou pop, R&B, soul, rock, funk, disco. O impacto de sua música foi tão grande que alterou a filosofia da MTV (na época, um canal recente) de rock para pop, ajudando-a a entrar em evidência. Seus videoclipes são marcos do gênero, revolucionando o que se tinha produzido até então (alguns inclusive foram dirigidos por roteiristas consagrados no cinema, como Martin Scorsese). Ele também foi responsável por abrir as portas do show business para artistas negros. Sua influência sobre os artistas posteriores a ele é praticamente impossível de calcular, de tão presente que é.

O número de premiações e recordes obtidos por Michael impressiona – principalmente porque é o artista que detém o maior número de troféus e títulos. É o artista que mais vendeu em toda a história da música, e Thriller é o álbum mais vendido de todos os tempos (há artistas que nem em décadas de carreira conseguem vender tantas cópias quanto apenas esse disco). Ele tem seu nome registrado duas vezes na Rock and Roll Hall of Fame (feito que apenas cerca de uma dezena de artistas conseguiu), é o único dançarino pop que figura na Dance Hall of Fame, além de figurar na Songwriters Hall of Fame. Recebeu homenagem de dois presidentes americanos. Foi denominado artista da década de oitenta, do século XX, do milênio e lenda da música. Também mantém o recorde de downloads na Internet. Seu perfeccionismo era tanto que até os engenheiros de som de seus discos eram premiados. Quando morreu, a quantidade de tráfego gerado na web congestionou diversos servidores, inclusive fazendo o Google suspender por meia hora a busca por seu nome, pensando tratar-se de um ataque. Um tráfego que dificilmente irá se repetir.

Retomando nosso garoto do início do texto, não sei se ele conhece todos esses fatos relacionados a seu ídolo – e tantos outros que há, mas nos falta espaço aqui para citá-los. O que creio ser mais provável é que sua conclusão (todo mundo é fã do Michael Jackson) foi baseada no reconhecimento musical por parte de outra pessoa também agraciada com o dom da música. Os brasileiros são bons em enterrar grandes artistas nas areias do tempo e dar mais importância a fatos escandalosos que ao talento genuíno. Mas que bom que existem pessoas, mesmo muito jovens, que possuem a humildade de dar honra a quem tem honra, escolhendo seus ídolos a partir de suas próprias conclusões, e não guiando-se por recomendações suspeitas de quem pouco entende do assunto.



Apresentações do Jotta A no Programa Raul Gil

domingo, 13 de outubro de 2013

Humor medíocre

Humoristas conhecidos apenas por suas tiradas baseadas em sexo são a representação da mediocridade, sendo seguidos de perto por um público tão medíocre quanto eles


Embora seja discutível se o homem é ou não um animal – em uma acepção filosófica –, certamente ele possui uma parte animal, caracterizada por sua biologia. No entanto, a consciência e a engenhosidade de que dispõe o homem permitem-lhe utilizar sua fisiologia de modo mais apurado ou mesmo subvertê-la. É o caso da culinária, que vai muito além da atividade primitiva de se alimentar, sendo provavelmente a ciência dos vinhos a cereja do bolo. O erotismo – e todo o universo criado em torno desse tema – é o produto da evolução do ato sexual muito além da pura e simples reprodução.
 
E é essa mesma capacidade de ir muito além das sensações básicas que capacita o homem a encontrar satisfação em atividades que estão em um nível superior em relação a suas necessidades primitivas. Por exemplo, o pensamento crítico ou filosófico está muito distante da necessidade de comer, respirar ou dormir. Ele é abstrato e rico em referencialidades. Da mesma forma o humor fino. Ele lança mão da referenciação, da paródia e da ironia, algo que só os humanos possuem e é, segundo alguns, um traço evolutivo intrigante. E é justamente o fator humor que irá me conduzir nessa exposição.

A questão do humor está em evidência devido às facilidades de divulgação trazidas pela Internet e ao sucesso do formato stand-up aqui no Brasil. Até pouco tempo, o quadro cômico nacional era dominado por migrantes nordestinos que possuíam quadros nas emissoras de televisão do sudeste – no nordeste o humor é endêmico e necessário. Hoje, há uma predominância dos artistas do sul no cenário, que coincide com a ausência de limites da Internet e um enfraquecimento da censura dos canais abertos. Isso deixou aberto o caminho para que muitos profissionais do ramo passassem a explorar largamente o tema sexualidade – esse tema sempre foi recorrente, mas antes era mais restrito a insinuações e malícia, nem sempre percebida pela totalidade do público. Até certo ponto, é um tema como outro qualquer, mas não deixa de ser irritante quando um comediante o toma por núcleo de suas apresentações, demonstrando total falta de criatividade e inteligência para explorar outros temas.

Há um nome para isso: mediocridade. Ela é definida como “ausência de talento ou mérito; insignificância; pequenez”. Talento é algo que definitivamente falta a esses artistas, enquanto pequenez sobra-lhes em abundância. Eles se valem do tema fácil e óbvio por um motivo simples: a certeza de que surtirá efeito, pois trata-se de apelação para uma característica básica do lado animal do homem e, portanto, comum a todos. O humor inteligente é falho porque nem todos conseguem entender suas sutilezas, enquanto o humor caricato deixar escapar aqueles que não conhecem o tema atacado. Mas o humor desenvolvido sobre o tema sexo prescinde de pré-requisitos. Ele se vale da preferência do homem pelos sentidos, pela reação sensorial de seu corpo, pelos instintos animais. E encontra terreno fértil porque a plateia acompanha o comediante no quesito mediocridade.

Muitos filmes brasileiros, peças de teatro e séries de televisão compartilham desse mau gosto. E repercutem positivamente, o que é pior. Muitas músicas vão pelo mesmo caminho. Isso viceja por aqui pelo fato de nosso povo ser inculto e estar feliz com isso. Não conseguem se desvencilhar da dominação dos instintos mais baixos e apenas conseguem achar graça nas coisas desavergonhadas, impudicas, sem-vergonhas. Nas situações mais prosaicas, como uma conversa entre amigos, sempre sai uma referência a órgãos sexuais. Comparações, apenas referentes a sexo. Da mesma forma elogios e achincalhamentos. A salvação vem pela cultura, pelo conhecimento de elite produzido pela raça humana, pelas artes clássicas e pensamentos de grandes mentes. Enquanto isso não vem, não nos veremos livres da mediocridade crescente que se espalha como fogo em palha seca. Que Deus tenha piedade de nós!

segunda-feira, 7 de outubro de 2013

The Voice (do Brasil)

O Brasil, mesmo sendo um país (eternamente) emergente, é dado a costumes que o destituem de sua capacidade criativa. Um deles é o ato de importar programas televisivos idealizados em outros países, formatados para um público específico, com características e perfil próprios, e tentar aplicá-los por aqui. Embora alguns de fato vinguem (os que apelam para nossos instintos primitivos, que, a propósito, grassam entre nossa gente), outros constituem objeto de estranheza e curioso constraste. É o caso do atual programa de calouros do maior canal de TV aberta do país – imitação da versão americana, que, por sua vez, é baseada no original holandês.

O corpo de jurados é composto por artistas do mercado da música, de vertentes variadas, que fizeram sucesso em algum momento da história musical do país. Eles se mantêm de costas enquanto os candidatos se apresentam – para que se concentrem na performance vocal (que é a proposta nuclear do programa), e não se estão dando cambalhotas ou plantando bananeira no palco, como sói acontecer em programas do tipo. Eles podem decidir “adotar” algum participante (treiná-los para as próximas fases do programa), o que é indicado pelo ato de virar de frente para o mesmo. Caso mais de um o faça, o calouro pode escolher de qual deles se tornará pupilo. A fórmula é simples, mas esbarra em um fato cultural brasileiro: nosso povo não gosta de Música.

Parece um paradoxo, afinal, é comum ver as pessoas com (infernais) fones de ouvido o tempo inteiro, temos eventos musicais em todas as épocas do ano, o país é destino obrigatório para grandes nomes do mercado da música internacional, temos inúmeros artistas. No entanto... Nossa relação com a música é usurpadora, negligente, inconsequente, irresponsável, promíscua, parasitária, poluta, conspurcada, deficiente, desrespeitosa, deforme. Isso porque nos valemos apenas dos benefícios da música; a utilizamos apenas para “dar um clima”, nada tendo a ver com a arte da Música em si, a ciência de combinar os sons. O mais perto que se chega disso é aprender violão – e até isso é com fins escusos –, o que, para muitos, é a própria e única essência da música. Quando se vê alguém com uma partitura ou algo do tipo, a única pergunta possível é: “ah, você está aprendendo violão?”. Santa ignorância...

Mas aí pipocam shows de calouros onde a maioria dos que vão lá fazem apresentações espantosas, com grandes interpretações, pleno domínio vocal e técnicas que só vemos lá. A plateia se levanta, bate palmas, grita “vivas” e “hurras”, as pessoas em casa vibram e choram em frente à televisão, comentam no dia seguinte, acessam vídeos na Internet, escolhem um candidato e torcem com ele até o fim. E para quê? Para largá-los ao desprezo dali a algumas semanas, esperando por uma nova temporada do programa, a fim de repetir tudo outra vez. Pobres calouros...

A audiência e os telespectadores realmente ficam boquiabertos diante da qualidade vocal e interpretação apresentadas nesses programas, afinal, não é o que vemos ao vasculhar o repertório nacional. A propósito, por que não? Por onde andam esses cantores de vozes incríveis que nunca chegam ao sucesso? O Brasil tem histórico de cantores fracos, e por um motivo muito simples: só se dá importância às letras das músicas, neglicenciando completamente o talento vocal do intérprete. É difícil combinar um compositor e um bom cantor em uma mesma pessoa, então por aqui os autores das canções preferem eles mesmos as cantarem, ainda que sejam péssimos nisso. E como os ouvintes não têm o menor rastro de conhecimento musical para fazer qualquer tipo de crítica que não seja sentimental, o modelo se propaga, trazendo descontentamento para os que apreciam bons cantores e condenando para sempre ao desconhecimento talentos do porte de Whitney Houston e Michael Jackson, ferindo de morte o mundo da música.

Mas o mais curioso é que muitos desses que se apresentam como calouros aprenderam a cantar no meio evangélico (a propósito, coisa mais comum nos Estados Unidos), que, felizmente, ainda é um reduto onde a música é levada a sério, mas, ao mesmo tempo, sofre críticas de pessoas que acham que entendem muito de música. Até mesmo Ed Mota – músico condenado ao ostracimo por procurar caminhos musicais mais nobres – reconheceu a qualidade musical gospel, convidando alguns artistas desse segmento para cantarem junto com ele. O engraçado é que o que se diz dos cantores de igreja é que gritam em vez de cantar, mas durante os programas televisivos sobram aplausos justamente pela expressividade nos improvisos de suas apresentações. Vai entender...

O objetivo desses programas é procurar artistas rentáveis, pura e simplesmente. Engana-se quem pensa que eles têm a ver com seriedade musical. Mas com um rápido exercício de memória e um simples cálculo estatístico chegamos à conclusão de que têm sido um fracasso. Desde a re-estreia desse tipo de programa na televisão (após décadas de ausência) não há sequer um ganhador que tenha se mantido na mídia – alguns eliminados ainda conseguiram algo, o que deu margem ao mote ácido de que não se deve vencer caso se queira ter uma carreira artística. Por mais que os jurados e a direção desses programas se esforcem para descobrir uma fórmula do sucesso, não é tão simples. O irônico é que os festivais de antigamente, que buscavam artistas de interpretação original, pura e autêntica obtiveram sucesso incrivelmente maior, descobrindo talentos que até hoje estão entre nós.

Essa nulidade de resultados passa também pela visível decadência da qualidade musical do país, tanto no palco como embaixo dele. Nada que seja diferente de um ritmo ensurdecedor e enjoado aliado a letras pejorativas e de baixo calão – defendidas por muitos como livre expressão, mas que na verdade não passam do reflexo de sua mediocridade cultural, intelectual e de caráter – tem chance de sucesso. São músicas feitas para serem consumidas em orgias onde tudo é permitido, onde são estimulados os instintos mais baixos, que compartilhamos com os bichos. Tudo bem esse tipo de música existir (ao menos em uma sociedade como a nossa, marcada pela brutalidade de costumes), o problema é que seus simpatizantes (ou escravos?) as querem escutar no carro, no trabalho, em praça pública, como se fossem grandes pérolas da genialidade humana. E ninguém pode discordar deles.

E é por isso que esse tipo de programa importado, enlatado, não é condizente com nossa gente. Em outros países, como os Estados Unidos, aprende-se música na escola. O público tem maturidade suficiente para não deixar florescer músicas animalescas constituídas de apenas um verso que ainda por cima é onomatopeico. Embora a qualidade musical no mundo esteja em declínio (espera-se que seja apenas um ciclo, dado que a história é repleta deles), ainda há lugar para músicos de verdade lá, e não apenas farçantes. Embora o pop fácil de hoje em dia esteja assumindo o controle, há certa qualidade vocal na maioria dos representantes do gênero, diferentemente do que se vê por aqui, onde não se sabe nem o que é uma segunda voz. 

Esses programas são, por fim, cruéis. Iludem os aspirantes a estrela, prometem-lhes o mundo, mas ao final dão-lhes um tapinha nas costas e mandam-nos de volta à obscuridade. De volta a seus guetos, conseguem alguns poucos fãs que os abordam na rua, alguns espaços para se apresentarem e só. Um ou outro consegue o objetivo inicial. Desse modo, fazem as vezes de animais em zoológicos, onde todo mundo os acha bonitos, mas no fundo quer que eles fiquem lá, bichos estranhos, sem qualquer tipo de envolvimento, visitando-os quando der na telha. O público está de costas para a música e esses calouros são soldados de uma batalha inglória, impossível de vencer. São detentores de um dom que nunca vão conseguir usar. A frustração por não conseguirem fazer valer o talento que a Natureza lhes concedeu deve ser a maior das dores. Enquanto isso, pessoas sem talento algum ganham prêmios e mais prêmios de música, sem possuírem a menor afinidade com ela. Sem conhecerem nada dela. E o público brasileiro é o principal responsável por essa inversão de valores. Carrascos!

Pobres calouros...