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segunda-feira, 28 de maio de 2012

Tempo

O tempo é ágil
Corre tresloucado
como um rio caudaloso
“Temos tempo!”, dizem os pequenos
“Não há mais tempo...”, suspiram os fatigados
Grande infelicidade é –
quando novos –
acreditarmos que o tempo é nosso amigo
Quanta tristeza há –
em sendo velhos –
não termos sido dele companheiros
Um dia após o outro é remédio
dirão alguns
Sim
se contínuos como barbantes atados
Mas dias ao acaso
espaçados por décadas
São testemunhas do tempo
De um tempo que corrói
De um tempo que não perdoa nem faz distinção
Justo à sua maneira
mas nunca o suficiente para nós
ávidos por vida eterna
Quando perceberes
que as décadas que conheceste
estão cada vez mais distantes
E que filhos gerados por elas
alcançam a altura de teus ombros
perceberás o adiantado da vida
Quando teu coração palpitar
e teus concupiscentes desejos
cobiçarem a outrora criança
saberás tristemente
o quanto os dias se hão esvaído
Sábio é aquele que percebe que o segredo da vida
não é lutar contra o tempo
mas entregar-se a ele
Ó ouvis:
Quando criança
te regala bastante
Aproveita o colo de tua mãe
e os abraços de teu pai
Aprende com os tenros companheiros
a inocência do sorrir
a dádiva do olvidar
e os laços da amizade
Folga ao largo das águas
de todas as fontes
e em todas as formas
Brinde o Sol
e saúde a Lua
Pinta o mundo nos mais diversos matizes
e enxerga-o de um modo que nunca mais o verás
Guarda bem essas lembranças
para invocá-las nos dias maus
Em tua juventude
não te amedrontes ao ver descolorir-se a vida
Ainda assim perceberás
quantos tesouros tens a encontrar
Teus companheiros serão maiores e mais fortes
do que nunca imaginaste
Alegra-te em vê-los, pois caminharão contigo
serão amparo e amparados por ti
Não te iludas com a paixão
mas deixa florescer o amor
Cultiva-o para cresceres e ser forte um dia
Nas passagens de dia a que assistires
atenta que são passageiras
e disso não tirarás teu sustento
Cuida em ser bom
e aplica-te a ofícios
para que tenhas um bom caminho a trilhar
Se já adulto
sê justo e responsável
Não porque esperam isso de ti
mas porque é o tempo que te conclama
Ama tua companheira como amaste a poucas coisas na vida
Vive com ela a plenitude de um único ser
para que não feneça jóia tão preciosa
A teus filhos, teu tudo
Dá-lhes o ordinário e o impensável
pois o mundo lhes será credor
Ajude o fraco e ampare o cansado
Sê esteio de muitos
E quando atingires a plena maturidade
conforma-te com o traçado de tua vida
Tenha um bom coração
e orienta os pouco sagazes
Que tuas cãs sejam bom alvitre
e não motivo de desonra
Aproveita os frutos que plantaste
Acolha os aflitos
Desfruta o coração daquela que te acompanhou até aqui
E aguarda o inexorável fim
não com a covardia dos fracos
mas com a bravura dos indômitos
Em todos os momentos porém
o tempo te trará perdas
As lembranças te acossarão
mas ele também as levará em seu devaneio
Tempo...
Tudo é tempo
Tempo...
é tudo

sexta-feira, 25 de maio de 2012

Gabar-se

Pessoas que gostam de aparecer sob a sombra do sucesso alheio não passam de incompetentes

Gabar-se é uma atitude bastante comum. Pessoas se gabam de várias coisas e de diversas maneiras. Às vezes até sem perceber. Alguns por costume. Há os que se gabam por algo que tem ou que são. Outros pelo que sabem. Alguns ostentam algo que conseguiram ou fizeram. E há mesmo os que se gabam por não terem conseguido alguma coisa. Acreditam que mesmo com o insucesso podem parecer superiores. Enchem a boca para dizer que não passaram no vestibular para Medicina ou que deveriam estar morando em outro lugar ou que falharam na seleção para um trabalho cobiçado.

Mas o pior de todos é o que se gaba por algo que outras pessoas tem, ou são, ou fizeram. Na falta de ter algo do que se orgulhar, tomam emprestado feitos de outras pessoas. Gostam de dizer que alguém que conhecem tem determinado emprego ou é conhecido por alguma coisa, enquanto eles mesmos não tem serventia alguma. Acreditam que conhecer ou ser parente de alguém de sucesso lhes confere aura de respeito.

É certo que muitas vezes o sucesso de um respinga em outros. É o caso de pais ricos. Os filhos – ao menos na esmagadora maioria dos casos – são diretamente beneficiados desse fato. Mas enquanto alguns se valem dessa benesse para ter acesso a cultura, cursos e boas faculdades, outros – a maioria – cuidam em esbanjar o bem alheio. Gostam de aparecer para os outros com o que não tem. Se fossem colocados em condições de igualdade com a maioria das pessoas não seriam capazes talvez nem de entrar em uma universidade. Mas se acham superiores. Querem colher sem plantar. São pessoas assim que perpetuam a validade da expressão “pais ricos, filhos nobres, netos pobres”.

Se você é um desses, tenha a humildade e consciência de que apenas está no lugar certo e na hora certa. Isso não é razão alguma para vangloriar-se. Tome o exemplo de outros e saia da mediocridade. Faça algo do que realmente possa se gabar. Pegar carona no sucesso dos outros é atestado declarado de incompetência.

quarta-feira, 23 de maio de 2012

Kong, os negros e as mulheres

Há fundamento nas críticas ao clipe King Kong do cantor Alexandre Pires? Será que é mesmo indignação contra o preconceito a origem dessas críticas?

O Brasil é pródigo em produzir músicas bobas e ridículas. Algumas acabam virando alvo de críticas de algum grupo que diz lutar contra preconceitos específicos. É o caso do clipe King Kong, protagonizado pelo cantor Alexandre Pires, tendo como convidados Mr Catra e o jogador Neymar.

O clipe foi criticado porque, segundo alguns, teria tons discriminatórios a respeito da raça negra.Vi o clipe e atesto que não há nada ali que possa ser considerado de veio racista. Ele pode ser criticado por inúmeros motivos, menos por esse. O clipe inicia com pessoas disfarçadas de macaco invadindo uma mansão onde há várias mulheres de biquíni. Em um primeiro momento elas se assustam, mas depois começam a dançar com os “macacos”. A partir daí o vídeo não difere em nada dos demais clipes nacionais onde abundam o mau gosto, os gestos libidinosos, fartas insinuações sexuais e passos indecentes.
 
A única razão para enxergar no clipe preconceito racial seria o fato de os próprios defensores da moralidade associarem macacos a pessoas da raça negra. No afã de mostrarem que se preocupam com a igualdade racial, deixaram transparecer seus verdadeiros preconceitos. O curioso disso tudo é que o artista principal (assim como os convidados e algumas das dançarinas) é negro. Se fosse racista, então seria um autopreconceito. Esse seria o ponto para buscarmos uma definição filosófica do que seria preconceito racial. Discriminar seria um ato de uma classe para outra? E se partisse de dentro dela? Ou seria uma afronta de uma classe favorecida sobre outra menos favorecida? Nesse caso, o conceito se aplicaria a um negro que discrimina outro? Afinal, ele estaria discriminando a si também, o que os colocaria em condições de igualdade. Não seria o caso de dar vez à expressão ¨vocês que são negros que se entendam¨? Se os próprios negros não se manifestaram, qual a razão de levantar a bandeira por uma luta que ninguém quer?

Esse fato lembra um outro, sempre recorrente – mas que estranhamente não se manifestou nesse acontecimento. Sempre que um vídeo desse naipe surge, com mulheres desfilando sensualidade, um grupo de militantes feministas sai aos berros reclamando de discriminação contra as mulheres. Hoje, graças à luta das feministas de décadas passadas, as mulheres tem liberdade de escolha sobre seus atos. Claro que não estamos na sociedade perfeita, mas muito já foi feito. O que as feministas atuais não querem entender é que as mulheres desses clipes não estão ali forçadas. Estão ali porque se identificam, porque aceitaram participar da gravação, por vulgar que seja. Não apenas elas, mas todas as que dançam esse tipo de música o fazem por opção. Se esse tipo de música faz sucesso, não é por imposição, mas por que os ouvintes se identificam com ela.

Ora, até que ponto esses grupos politicamente corretos lutarão por pessoas que não querem ser defendidas? Afinal, de quem é essa luta? Parece que é mais um exorcismo de preconceitos internos, uma luta por expurgá-los do que genuína vontade de defender os outros. Parece mais algo do tipo “Ei, não deem motivos para eu expressar meu preconceito”, ou “Parem, não deixem patente que há mulheres frívolas”. De fato, há várias frentes de batalha contra o preconceito. Pessoas que não podem se defender, que precisam de ajuda. Que tal direcionar energia para questões procedentes em vez de ficar procurando penitência moral para falhas pessoais?

segunda-feira, 21 de maio de 2012

MMA, esporte duradouro?

Será o MMA uma febre passageira ou um entretenimento permanente?

O esporte do momento é o MMA (Mixed Martial Arts, ou Artes Marciais Mistas). Ao contrário dos demais esportes apreciados atualmente, o nível de violência é alto. Socos, chutes, lesões, sangue, quebra de ossos, desmaios são elementos constituintes de seus eventos. Seus defensores alegam que o antigo vale-tudo é que era violento. Acreditam que o acréscimo de um quarto de dúzia de regras ao antigo esporte o livra do barbarismo.

A volta em estilo glamourizado dos esportes agressivos (no mais literal sentido da palavra) revela nossa apreciação pela violência, embora a queiramos bem longe de nós. Inclusive parte do público presente nos torneios atuais era impensável há alguns anos. São mulheres jovens, bonitas, de família abastada, instruídas, que torcem animadamente para que os lutadores massacrem seus oponentes, assim como faziam as romanas da época do Coliseu. Grandes emissoras de televisão tiraram os campeonatos do obscurantismo para oferecê-los gratuitamente aos lares de todos os brasileiros (o que, em termos de Brasil, significa: aprovado, regulamentado; pode fazer que é bom, é bonito).

Muitos compararão a atual aclamação do MMA com o boxe, que já foi bastante popular – e mais violento que a modalidade praticada hoje em dia –, rendendo uma série de filmes, alguns famosos e lembrados até hoje. Porém, a análise que deve ser feita aqui é mais generalizada. Ambos são esportes violentos. Um teve sua fase áurea, houve um tempo de ausência de esportes do tipo (que os prosadores modernos adoram chamar de hiato), e agora temos o novo esporte da categoria.

No entanto, o mais provável é que daqui a algum tempo ele saia um pouco – ou totalmente – dos holofotes – talvez porque alguns se escandalizem com sua violência, ou porque não tenhamos mais ídolos nacionais. E também é bem certo que após outro tanto de tempo ele retorne, modificado, aclamado novamente. Se não for ele, será outro esporte do mesmo naipe. Pode-se apostar nisso porque podemos prever, comparando com outras áreas, que há duas vertentes que se alternam, guardando oposições entre si. Veja-se o caso da literatura. Os principais movimentos podem ser agrupados em apenas dois grupos, onde cada um nascia em oposição ao que estava em voga. De um lado, o Barroco, o Arcadismo, o Romantismo clássico, o Parnasianismo e o Simbolismo apoiam-se na estética rígida dos versos métricos e temas recorrentes, comportados. Por sua vez, o Ultraromantismo, o Realismo, o Naturalismo e o Modernismo trazem o sabor da denúncia social, dos temas indesejados, da forma de narração livre.

Do mesmo modo, podemos encontar exemplos no mundo da moda. Anos atrás os óculos eram montados em grossas armações, passaram para os finos aros, e há pouco retornaram à espessura de antes. O mesmo acontece com o tamanho das lentes, inquietas entre enormes e pequenas. Os modelos de roupas não ficam atrás. Calças boca-de-sino já foram moda e recentemente ensaiaram retornar, com bem menos sucesso. Cabelos crescem e são minimizados constantemente.

Há diversos outros exemplos, como o design adotado pela indústria automobilística. Os carros quadrados de antes deram lugar a formas arredondadas, mas atualmente podemos ver um retorno às formas retas de outrora.

A razão disso muitas vezes – mas não sempre – deve-se ao fato de uma geração almejar viver os tempos de glória de que tanto ouvem falar por parte dos antigos. Assim, resgatam o antigo e dão-lhe novas feições. Hoje podemos ver a proliferação de tudo que é “retrô”, “vintage”. Originais (vintage) ou repaginados (retrô), é como se tivéssemos voltado um pouco no tempo.

Para os fãs de MMA que usam a frase “ele veio para ficar”, alerto que talvez não seja bem assim. A maioria das coisas que hoje há não vieram para ficar. Serão substituídas em breve para renascerem mais à frente.

terça-feira, 15 de maio de 2012

Todo homem trai?

“Todo homem trai. É de sua natureza.”. Ouvi essa frase há um tempo, de uma mulher. Talvez sua motivação para acreditar na sentença tenha sido uma sequência de desilusões amorosas ou a ciência de casos infelizes de amigas que se viram traídas por seus companheiros. Reconheço que é bastante difícil escapar incólume de uma relação, mas talvez seja necessário analisar a questão mais de perto.

De acordo com os evolucionistas, o impulso sexual masculino deve-se ao fato de, nos primórdios da vida na terra, o macho precisar distribuir seu material genético o máximo possível, o que, naquela época, significava copular com a maior quantidade de fêmeas que conseguisse. Isso incluía afugentar os mais fracos e o coito forçado. Essa atitude ainda pode ser vista abundantemente no reino animal.

Ora, sabemos que há muito deixamos as cavernas e a barbárie e criamos sociedades organizadas e socialmente complexas, com relações culturais bem diferentes das de antes, refletindo em mudanças nas relações amorosas. Na essência, o homem de hoje e seu ancestral distante e bruto não diferem muito, mas à medida que uma criança cresce e se desenvolve cercada de príncipios, regras, tecnologias e manifestações artísticas e culturais, ela adquire um intelecto que a permite transpor sua natureza e portar-se de modo conveniente no mundo moderno.

Obviamente, essa não é uma regra geral. Tanto há os culturalmente instruídos que se satisfazem obedecendo a seus instintos, como há os pobres de conhecimento que alcançaram elevado padrão moral e ético. No entanto, via de regra, podemos identificar o provável caráter de uma pessoa através de ações da mesma. Algumas atitudes tem forte relação entre si, embora possam não ter (ou ter muito fracamente) relação com outras. Vejamos um exemplo.

Sempre foi bastante comum haver festas dedicadas à liberação sexual. Durante a maior parte do tempo as pessoas comportam-se obedecendo a padrões definidos pela sociedade, mas em festas desse tipo tudo é liberado. Se no passado tais eventos eram restritos (a exemplo dos bacanais romanos), hoje eles são abertos ao público. É o caso da maioria das bandas que se apresentam em trios elétricos ou promovem shows onde as músicas servem apenas para incitar o ato sexual. Embora haja desavisados (ou ingênuos) que frequentam tais lugares “apenas pela música” ou “apenas para sair de casa”, o objetivo desses ajuntamentos é relacionar-se. Encontrar parceiros sexuais e realizar a cópula.

O impressionante é que muitas pessoas vão a tais lugares esperando encontrar companheiros para relações sérias ou duradouras. Embora isso possa acontecer, a possibilidade de um relacionamento iniciado dessa forma fracassar é alta. Principalmente se o único fator que levou o homem a escolher uma determinada mulher naquele dia foi a beleza desta ou se ele vinha de seguidos insucessos, ou ainda precisava terminar a festa com alguém. Se após isso o relacionamento continua sem que um se torne interessante para o outro, o término é a única coisa a se esperar. E mais impressionante ainda é o fato de que a maioria das mulheres voltam a tais festividades em busca de outro parceiro, repetindo a mesma história, sempre esperando algo diferente fazendo a mesma coisa.

Daí passam a rotular todos os homens, quando elas apenas conhecem um tipo de homem, que frequentam um tipo de lugar, que portam-se de uma mesma forma. Não tem coragem de experimentar, mudar seus hábitos, alterar seus critérios. A essas eu apenas posso desejar sorte.

domingo, 13 de maio de 2012

Mãe


Mãe
é princípio
de amor
É cura
de dor
É o arrimo
mais seguro
É término
do pesar
Mãe é dádiva
da vida
Mãe não passa
fica
pra sempre
Mãe é o refúgio
na dúvida
Mãe é luz
é guia
Única
É campo de paz
no desespero
Força
no desânimo
Mãe é tudo
na vida
É bênção
preciosa
infinita

terça-feira, 8 de maio de 2012

Lua cheia

O astro-rei definha
Vai dando lugar à dama-da-noite
Ele vai fazer as vezes de contra-regra
para que o espetáculo daquela seja glorioso
Vai surgindo, lentamente
Primeiro a fronte, tímida a princípio
Após, o corpo volumoso
Por fim, ergue-se confiante
Vai acariciando o mar com sua aura luminosa
Este a agradece por torná-lo sublime
um imenso espelho de luz
A assistência, cheia de expectativa,
reverencia o espetáculo em curso
Surge totalmente – enorme, brilhante, alaranjada
Os casais entreolham-se e sorriem
O beijo é abençoado pela mãe do romantismo
Sim
peca aquele que assiste a tudo isso sozinho

* * *

Já vai altaneira a prima-dona
Perpassa o véu celeste de maneira imponente
contemplando os que estão sob seu caminho
Alegram-se ao vê-la
Os jardins concorrem para receber seu acalanto
O homem que trabalha em sua vigília encontra nela uma companhia
O outro, cujo sono lhe escapa
não se contenta em vê-la disforme através do vidro
e sai a saudá-la

* * *

Dando a cada um sua dádiva
caminha sempre firme
seguindo seu trajeto
Por fim, principia a retirada de cena
acompanhada pela mudança do cenário
Porém, deixa em cada um
que assistiu a sua apresentação noturna
a esperança de seu retorno
Vivenciar novamente profundas emoções
Despede-se a mãe de toda as mulheres
e dos poetas românticos
Perde-se no azul fulgurante que retoma o céu,
e sobe noutro palco, alhures
além

sábado, 5 de maio de 2012

Meu pai

 (11/01/1953 – 04/05/2007)
Escrevi esse texto no primeiro dia dos pais que passei após a morte do meu. Resolvi publicá-lo aqui passados cinco anos de sua ida.

Dia dos pais, sem pai. Uma realidade comum para tantos configura-se para mim algo novo e de agora em diante perpétuo. A dor da perda é emulada apenas pela dor das lembranças: se boas, trazem saudade e inconformismo pelo ocorrido; se más, causam indignação por não termos agido de outra forma naqueles momentos, pelas mágoas gratuitas, pela incapacidade de ceder. Meu pai se foi, e cá estou eu lembrando, recordando, interpretando o ato que foi sua vida.

Meu pai, um trabalhador. Desde que se entendeu por gente que trabalhava. Nas matas, caçando lenha; no arado, plantando e colhendo; na feira, vendendo; nas casas-de-farinha, transformando a mandioca; no terreiro, tratando a colheita. O grande fardo à cabeça desmaiou-lhe, o gosto de sangue na boca. Causava-lhe medo cavalgar de madrugada pelos lajeiros, sem lua. Como era duro aguentar a fome, o sol a pino, até a hora – já tarde – do almoço – fava e farinha, quase sempre sem mistura. A fuga para a capital, no final da adolescência, não diminuiu o ritmo. O trabalho na construção civil era de igual modo pesado, por vezes vil. Eram duras as noites em que tinha por panela e prato uma lata de cera, e por cama sacos de cimento vazios. Ali aprendeu a profissão que exerceu pelo resto da vida, sob todos os tempos e todos os horários, em numerosas circunstâncias. Chegou a trabalhar os três horários – quantos mais houvessem – quando os filhos estavam pequenos. Não fez apenas clientes. Fez amigos, que compareceram a seu velório e sepultamento.

Meu pai, um especialista. Sem dúvida o “fazer bem feito” era uma verdade em sua condução profissional. Seus serviços não eram uma alternativa; eram a primeira opção para os que o conheceram, e era a ele que recorriam quando o problema parecia não ter solução. Cuidadoso, sempre deixava o ambiente limpo. Exímio descobridor de infiltrações, indicava certeiramente, sem necessidade de rasgos inúteis, a localização destas. Sua experiência tornava-o indiferente àqueles que receberam o grau de engenheiro, e não raro os desafiava e provava estar certo. Sem saber ler, desenvolveu e realizou o projeto hidráulico de edifícios inteiros, com sucesso. Trabalhou em muitos lugares, participou da construção de prédios importantes da cidade, além de muitos outros trabalhos pelo interior. Mas a maior parte do tempo prestou serviço para a classe média e alta dos bairros da orla e condomínios de luxo. Foi com eles que descobriu que dinheiro não dá caráter a ninguém, pelo contrário. Muitas foram as humilhações que viu e sofreu: serviços baratos não pagos, mal pagos, divididos em vezes, comida estragada enviada por almoço, calúnia, alguém que lhe quis dar frutas por pagamento. Destas, houve um fato que o marcou para sempre: duas crianças aproximam-se dele e de seu ajudante e perguntam: “Vocês são pobres?”, e, à resposta afirmativa, arrematam: “Vamos sair daqui. Eles são pobres. Eles roubam.” Frase de uma criança, que provavelmente aprendeu com seus pais, que reflete a condição intelectual de muitos dos abastados desse país.

Meu pai, um sábio. No velório de um senhor, muitos jovens consternados, apesar de não serem seus parentes. A cena pouco comum é explicada pelo fato de que muitos foram os jovens que afluíram a nossa casa para ouvi-lo. Tomar conselhos, ouvir suas experiências de vida. Temas que se estendiam desde o uso do dinheiro a casamentos em crise; do portar-se em casa alheia à vida profissional. Quantas não foram as pessoas que com ele aprenderam coisas da vida e as aplicaram. E quantas não foram as que só acreditaram que estava certo quando viram na prática o que havia dito. Conselheiro de muitos. Homem difícil de se enganar, sempre ressabiado. Percebia mentira de longe. Mesmo com pouca instrução, conseguia enxergar o que muitos doutos ainda hoje descobrem.

Meu pai, um brincalhão. Mesmo havendo sofrido agruras na vida, não fez disso fonte de mágoa. Sempre tinha motivo para sorrir e caçoar tanto dele próprio como dos outros. Adorava crianças, e não havia neném que não risse em seus braços. Sabia-se que vinha chegando pelas gargalhadas. Seu bom-humor manteve-se até os últimos momentos, mesmo quando seu corpo já fraquejava e a voz, embargada, tornara-se incompreensível.

Meu pai, um homem de autoridade. Enquanto muitos acreditam em dinheiro, cargos e conhecimento para demonstrar autoridade, meu pai dispensava todos esses componentes. Sabia impor-se como poucos, não importando a quem: de ricos a marginais, de crianças impossíveis a animais domésticos. Um olhar era o suficiente para seus filhos perceberem o que queria. No entanto, economizava no uso dessa autoridade, como que considerando-a estratégica.

Meu pai, um esperançoso. A certeza de que as coisas sempre melhorariam era uma de suas características. Foi assim quando pequeno, nos grotões; foi assim quando veio para a capital, morar de favor; foi assim quando comprou, num matagal, um teto de palha sustentado por quatro estacas, que hoje é uma casa. Não possuía todo o dinheiro por ocasião da compra e nem sabia como consegui-lo. Mesmo seu pai tendo a quantia, não deu-lhe vintém, proferindo outra frase que jamais esqueceu: “Meu filho, compra casa quem pode.” Pagou-a antecipado. Não sabe como, mas a esperança sempre o acompanhou. Em suas palavras: “Deus me deu essa casa”.

Meu pai, um homem simples. A grandiosidade nunca foi para ele convite a ser aceito. Lugares finos, roupas chiques, pratos sofisticados. Não fazia questão deles, e por vezes os abominava. Adorava estar à vontade, com sandálias no lugar de sapatos (cuidava em tirá-las ao entrar nas residências em que trabalhava), deitado em sua rede no quintal de casa. Apreciava as comidas simples. Amava as frutas, recém-tiradas do pé. Amava a natureza: as sombras das árvores, o ar puro, banhar-se nas águas, os cantos dos pássaros. Amava as feiras, onde via os preços das coisas e sempre conseguia um preço menor, quando as comprava. Amava conversar com pessoas, as mais diferentes, de qualquer classe e posição social. Era comum vê-lo sentado em frente a nossa casa, dialogando com as pessoas que passavam; cercado de crianças, ensinando-lhes coisas, inclusive a falar. Sobre presentes, dizia ele: “Pode ser um sabonete, mas que seja de coração.” Formalidades, dispensava. Preferia calor humano, gracejos e risos.

Meu pai, um homem digno. “Se depois que eu morrer alguém vier cobrar dívida minha pode chamar a polícia que é ladrão”, dizia. Meu pai foi um homem pobre, de cor, analfabeto, mas seu exemplo de justiça e dignidade é o maior que já tive. No trabalho, sempre cobrou valor justo pelos serviços. Era alguém em quem seus clientes podiam entregar qualquer quantia em dinheiro para comprar material. Odiava inveja. As únicas coisas que almejava eram aquelas que podia conseguir honestamente. “O que é certo é certo.” Apesar de um simples encanador, não admitia que o destratassem: “Eu sou um profissional”. Levou toda a vida para realizar seus sonhos: casa, filhos formados.

Meu pai, um homem de família. De tudo o que meu pai conquistou em vida, a família foi seu bem mais precioso. Aprazia-lhe os momentos com os seus. Amava a mulher com quem construiu casa e constituiu família. Arrisco que dispensava ainda mais amor à esposa que aos filhos. Orgulhava-se dela, por ser igualmente batalhadora, ter a mesma origem e falarem a mesma língua. Amou-a, e demonstrou isso até os últimos instantes. Orgulhava-se pelo fato de os filhos não terem seguido sua sina. Cansei de ouvir: “Estude para ser alguém na vida.” Tendo os três filhos aprovados no vestibular, apressou-se em espalhar a notícia entre seus clientes-amigos. “Outra coisa não, mas filho eu soube criar.” Nunca deixou despercebido qualquer indício de que algo em casa estava errado. Se via alguma coisa de mal, cortava-a pela raiz. Também amava os outros familiares: perdoou seu pai que nunca o deixou estudar e ajudou os irmãos que possuíam menos que ele.

Meu pai, um lutador, um forte. Acostumei-me a vê-lo transpor obstáculos, ficar são das poucas doenças que o acometiam. Fracassou apenas na tentativa de aprender as letras, já passada há muito a idade. O cansaço do dia de trabalho não permitia. O que logrou desse esforço foi conhecer a mulher com quem ficou até o fim.

A última vez que meu pai adoeceu imaginei que fosse como das outras, que logo ficaria bom. Pensei que ainda viveria muito tempo, mas não. Seu quadro agravou-se tão depressa que o perdemos em pouco mais de uma semana. Levei algum tempo para aceitar o fato como verdade, e muitas foram as vezes que sonhei com ele. Em uma delas me deu um abraço tão forte que me faltou o ar. Não pôde ir a minha formatura, nem ouvir o discurso em que o homenageei. Indignava-se com a doença que o consumia: “Eu não era sadio?” Ainda hoje doi-me ao recordar sua expressão ao me fazer essa pergunta. Sentiu que seu momento chegava e, como fora até aquele instante em toda sua vida, enfrentou a morte com bravura. Seu medo de sofrer em cima de uma cama, mobilizando pessoas para cuidar dele, não se realizou. Não reclamou, não chorou. Disse que alcançou seus objetivos, seus sonhos, e que poderia partir em paz. E assim foi.

Meu pai, meu herói. Vão-me perguntar se não errou. Claro que sim, faz parte da condição humana. Mas dentre todas as pessoas que conheci – e muitas eram brilhantes –, nenhuma outra acertou tanto em tantas áreas distintas. Tinha convicções, mas as mudava quando percebia erradas. Já eu, não sei se fui o filho que ele merecia. O mundo que ele queria para mim era tão diferente do seu. Na vontade de que eu fosse melhor que ele, terminou por nos afastar um tanto: assuntos diferentes, interessses diferentes, ideias diferentes. Espero ter amenizado esse sentimento em pelo menos uma situação. Houve uma vez que um colega meu da faculdade disse no apartamento onde morava que estudava com o filho do encanador, e, envergonhado, que seu desempenho era superior ao daqueles criados com todo o conforto. E qual não foi o espanto do edifício inteiro ao saber disso. Parabenizaram-no por isso. Espero que tenha sentido orgulho por mim, pois muito me orgulho dele. Nas vezes que passei da meia-noite estudando, era em seu exemplo que buscava determinação, ou, como ele dizia, “força de vontade”. 

Com sua partida, alguns perderam um conselheiro; outros, um amigo; outros, um excelente profissional. Eu perdi um ídolo. Não sei se terei toda a virtude que meu pai teve, mas metade dela já me bastaria. Não se vê mais aquele homem que caminhava a pé pelos bairros da Jatiúca, Ponta Verde e Pajuçara, com sua bolsa de ferramentas. Não há mais ninguém à porta de casa para me receber. Os vizinhos atestam que parte da rua morreu junto com ele. Seu maior legado para mim foi o enorme caráter que demonstrou em vida. Provavelmente não seria o que sou hoje sem ele, e por isso deitei em seu ataúde meu canudo de bacharel. E findo aqui minha homenagem a ele.

Meu pai,
um forte abraço.

quinta-feira, 3 de maio de 2012

Feminismo

Algumas décadas atrás um grupo de mulheres organizaram uma série de protestos para demonstrar que estavam insatisfeitas com o papel que a sociedade lhes dispensava, sendo o símbolo maior dessa revolta a queima de sutiãs. Naquela época não havia escolha: o destino certo era o casamento (em muitos lugares, arranjado pelos pais) e a eterna vida de dona-de-casa, onde era sua obrigação cuidar do lar e dos filhos e esperar o marido chegar à noite.

Esse movimento ficou conhecido como Feminismo e abriu as portas para que a mulher tivesse poder de escolha sobre seu destino. Um reflexo de que antes ela não dispunha dessa liberdade é o fato de não haver muitas mulheres conhecidas na história do mundo (em todas as áreas: ciências, artes, filosofia, etc.), pois era-lhes vetada a participação e ingresso em universidades e atividades culturais-artísticas em geral. Muitas coisas hoje consideradas normais eram antes vistas com maus olhos pela sociedade. Um claro exemplo da situação da mulher nos tempos idos é a história de Joanna D'arc: a francesa teve participação heroica na Guerra dos Cem Anos, mas foi condenada à fogueira acusada de bruxaria.

O Feminismo pôs abaixo muitas das barreiras que impediam as mulheres de seguirem seus próprios caminhos, outorgando-lhes o direito de decidir o rumo de suas vidas. Hoje podemos ver mulheres em profissões anteriormente exclusiva de homens, como engenharia, por exemplo. Embora haja lutas a ganhar, muito já foi feito em favor delas.

No entanto, uma surpresa surgiu: mesmo com o poder de esolha, muitas mulheres preferiram seguir o mesmo rumo de antes – cuidar da casa e dos filhos. A diferença é o fato de não terem sido obrigadas a isso. Decidiram por sua própria vontade. Isso nos leva a uma conclusão: o papel de dona de casa nunca foi abjeto em si, mas sim a “predestinação” a que as mulheres estavam submissas. Naquele momento, era preciso combater o sistema atacando-o em seu símbolo-maior: o lar. Sendo assim, milhares partiram para o mercado de trabalho, negando a ocupação doméstica de que eram incumbidas por natureza. Romper era preciso.

Mas semelhante a uma superfície líquida que a princípio se agita ao receber uma gota que cai, mas se acalma com o tempo, assim as mulheres foram se acomodando na sociedade redesenhada por suas lutas. E não são poucas as que preferem abrir mão de uma carreira profissional para dedicarem-se à atividade doméstica. O Feminismo teve seu papel e sua importância inegável na história, mas ainda há hoje as que são adeptas ferrenhas das armas que eram úteis anos atrás, mas não hoje. O princípio da luta não é igualar os sexos, mas destacar os direitos devidos ao público feminino. Uma mulher de calça naquela época era um símbolo da luta, mas hoje frequentemente é um artigo de sensualidade – embora os homens ainda prefiram as saias. Hoje as mulheres entendem que devem mais do que nunca ser femininas, provando que podem valer-se de seus direitos sem abrir mão da natureza de seu gênero.

Talvez hoje a maior luta seja interna. Muitas mulheres aceitam tacitamente as jornadas de trabalho, sem lutar por incluir o companheiro nas atividades domésticas e cuidado com os filhos. Há ainda as que não incultem nos filhos homens suas obrigações dentro de casa, criando uma pessoa que no futuro achará estranho sua companheira querer compartilhar com ele as obrigações de casa.

O Feminismo abriu portas. Cabe agora às mulheres correr por uma delas e tentar ser feliz com suas escolhas.