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domingo, 27 de outubro de 2013

O Longo Caminho entre a Teoria e a Prática (ou Direitos Humanos – servem a quem?)

Quem de fato são (ou deveriam ser) os beneficiários dos direitos humanos?


A matemática pode ser vista como uma das ciências mais belas e consistentes que existe. Ela tem sido usada largamente em vários campos do conhecimento e permitiu o desenvolvimento de diversas tecnologias e invenções, além de contribuir para a resolução de diversos problemas nas mais variadas situações. Apesar disso, trata-se de “um modelo perfeito para representar um mundo imperfeito”, ou seja, há um descompasso entre a teoria matemática e a realidade de nosso mundo físico (há uma extensa discussão sobre isso no meio acadêmico: trata-se do platonismo da matemática). Por exemplo, a reta real é uma representação do continuum numérico dos números reais. Desse modo, se você traça uma linha no chão, temos ali uma reta real, com os infinitos números em toda sua extensão. Matematicamente, você não seria capaz de, andando por sobre ela, dado que os passos são contínuos, e não discretos, sair do lugar, uma vez que entre dois números reais há infinitos outros números reais. Mas – surpreendentemente – você consegue! Esse é um caso bobo da não-correlação total entre uma ciência e a realidade que ela modela. Mas não é apenas a matemática que sofre desse mal. Outras ciências (e disciplinas não tão científicas assim) também esbarram por vezes na teimosia da realidade em obedecer a suas prescrições. (vamos deixar esse pensamento marinando para retomá-lo mais à frente)

Há alguns dias um vídeo gravado aqui no Brasil ganhou o mundo e repercutiu em toda a imprensa, nacional e estrangeira. Trata-se de um assalto ocorrido em pleno dia, em uma avenida da cidade de São Paulo. Uma dupla de bandidos, em uma moto, aborda um rapaz que está fazendo uma conversão, também em uma moto, e, de arma em punho, obriga-o a entregar o veículo. Terminada a ação rápida, um deles foge na primeira moto, mas o outro, que montava a moto furtada, é alvejado a tiros por um policial que estava próximo ao local do crime. O rapaz dono da moto agradece ao policial e tripudia do criminoso extendido no chão, já desinvestido da autoridade que julgava possuir e se achando a vítima (ele não vem a óbito, para a insatisfação do jovem assaltado e dos internautas que comentaram o caso nas redes sociais). Tudo foi gravado pela câmera acoplada no capacete do rapaz que quase teve a moto levada.

Esse vídeo foi reproduzido e divulgado fartamente na Internet, e logo surgiram comentários, artigos e posts a respeito. Num deles, dizia-se que a ministra dos Direitos Humanos ficou chocada pela violência do policial e do país como um todo, tomando partido pelo meliante. Outro afirmava que o polícia foi afastado do exercício da função devido a sua conduta. Um terceiro desmentia a suposta declaração da ministra. Agora sabe-se que foi uma postagem de um blog irônico, mas que foi compartilhada como sendo séria devido ao desconhecimento dos leitores. A ministra se pronunciou e ordenou a remoção do artigo do blog, ameaçando inclusive acionar a polícia federal. A informação era falsa, ambas: a da ministra – que em realidade legitimou a abordagem – e a da punição do policial, que na verdade foi condecorado com o mais alto grau de honraria da corporação. Embora ela de fato não tenha feito tal pronunciamento, todos acreditaram sem qualquer estranhamento. Por quê? (desconsidere a parvoíce de nosso povo de cada dia que lê tudo acriticamente – pelo menos só até o fim desse post)

As atuações dos representantes dos direitos humanos (ou pelo menos as visíveis), na minha opinião (e na de diversas pessoas, como pôde-se perceber do caso acima), deixam muito a desejar. Nasci e cresci em uma cidade bastante violenta, onde assaltos eram tão comuns quanto vendedores de pipoca em parques (talvez mais até). Pessoas inocentes e indefesas sofriam e morriam de acordo com a vontade dos agressores, sem poder fazer nada. O máximo que podiam fazer era se sentirem vingadas quando um desses marginais era morto por seus comparsas – ou pela polícia, o que era mais raro. O sentimento geral era de pânico e impotência. Pequenos comerciantes acordavam todos os dias para o calvário do balcão, esperando ser assaltados a qualquer momento. O medo de acordar com bandidos dentro de casa era recorrente. Uma mulher andando sozinha tarde da noite era uma fonte de preocupação para a família. Pobres velhos tinham seus salários – ou a renda conseguida pelo trabalho duro do dia vendendo algum tipo de comida num carrinho de mão empurrado rua acima, rua abaixo – tomados à força por facínoras. Em algumas localidades, os bandidos estabeleciam toque de recolher, aterrorizando os moradores e cerceando sua liberdade. Não se podia ostentar nada de valor, nem almejar ter um padrão de vida melhor, fosse trabalhando ou estudando, sob a custa de sofrer reprimendas. Dado esse panorama de agressão e terrorismo social, era de se esperar uma ação enérgica das forças responsáveis pela segurança pública, nem que fosse uma nota de compadecimento por parte dos representantes dos direitos humanos. Mas era o contrário que ocorria: quando algum criminoso era ferido ou morto ou ameaçado pela turba revoltada, logo surgiam um, dois, um caminhão de representantes dos direitos humanos para garantir seus “direitos” de – pasmem – cidadão e ser humano.
O cidadão que porventura assassinasse um bandido sofria na pele as mais severas penalidades da “justiça”.

Não posso dizer que tais representantes eram queridos pela população de minha terra. E, ao que parece, eles não são bem vistos em outros lugares também. E por um motivo muito simples: eles apenas surgem para defender os fora-da-lei, enquanto a população em geral é abandonada à mercê de criminosos, sem ninguém que se condoa de suas agruras. Foi por esse motivo que tantas pessoas nem sequer pararam para pensar se a ministra de fato seria a autora da fala que lhe atribuíram. O discurso é uma colcha de retalhos de frases normalmente ditas por pessoas afetadamente avessas à realidade social: que foi a sociedade que colocou a arma na mão do criminoso, que ele não tem culpa, que é produto do capitalismo, entre outras pérolas. Esse é o ponto em que retomo a colocação do início do texto para misturar a esse fato e produzir minha posição sobre o tema.

As ciências sociais possuem muitas teorias sobre a sociedade. Verdadeiras teses, colossais, monumentais. É de dar dor de cabeça e vertigem em qualquer um. Mas tenho sérias dúvidas quanto à praticidade (ou aplicabilidade) delas. Creio que minha sensação isso se dá pelo fato de que os intelectuais sociais aparentam gastar seus dias pensando em como as pessoas vivem e limitam-se a isso: apenas pensam, sem conferir como as coisas se dão de fato. O próprio [Karl] Marx passou a vida praticamente sem trabalhar. Não sei se de fato ele conhecia as entrelinhas do trabalho desenvolvido pelos assalariados, com todo o seu microuniverso. Há uma divergência muito grande entre o que pregam os estudiosos da sociedade e o modo como ela opera. O fato é que o povo necessita de ações práticas, e não de teses de doutorado que não resolvem problema algum. O homem é um produto do meio? Sim! Não! Talvez. Depende... Isso é um assunto muito bom para se discutir em uma mesa redonda, mas para o trabalhador que se vê com uma arma apontada violenta e covardemente por um marginal que quer levar sua moto recém-comprada, qual o valor desse questionamento? O problema dele é outro, situado em outra esfera. Viver ou morrer, o instinto básico premente do ser humano. Jogar a culpa na sociedade, buscar as raízes históricas, a vida pregressa do marginal a essa altura do campeonato não tem importância alguma, muito menos resultado prático.

Concordo que uma sociedade que preza pelos direitos de todos tenha a preocupação social com seus criminosos. Mas essa preocupação tem que perpassar por toda a cadeia de risco de potenciais criminosos – ao menos dos casos mais óbvios. Deve-se acompanhar as comunidades das quais a maior parte deles se origina, cuidar da educação pública, criar oportunidades de emprego, punir exemplarmente (e dignamente) os infratores. Não apenas se deparar com o pior cenário possível consumado e querer fazer o resgate histórico dos ocorridos que culminaram naquilo, como que para justificá-lo e, assim, banalizá-lo. É fato que o ambiente influencia o desenvolvimento de um ser humano, mas devemos atribuir a ele toda e qualquer ação nossa? Algumas pessoas são mais sucestíveis a influências que outras, isso também é notório. Mas como realizar cada tratamento individualmente? Deve-se nivelar por baixo, considerando todos inocentes, ou culpar os transgressores pelo mau uso de seu livre-arbítrio?

Estamos em uma situação em que não podemos esperar todos os problemas de base serem resolvidos para agir. Por exemplo, o maior programa de assistência social e distribuição de renda do governo é uma situação paliativa (assim como a política das cotas nas universidades públicas). Ele é muito criticado porque atenua um problema que existe apenas porque questões básicas como saúde e educação não funcionam. Esse é um caso típico em que duas soluções são trabalhadas ao mesmo tempo (estou desconsiderando o fato de que não se está trabalhando para resolver os problemas centenários de educação e geração de riqueza). Às vezes isso é de fato necessário. Então, por que raios alguns intelectuais sociais se preocupam apenas com a origem dos problemas, sem atentar que é necessário uma solução para agora? Chega um momento em que se tem que colocar na balança o justo e o injusto. É imoral dispensar-lhes o mesmo tratamento, como se não houvesse mérito na justiça, ou como se ser injusto fosse louvável.

Concordo que matar um bandido não irá resolver o problema, mas tampouco deixá-lo livre para oprimir a sociedade o fará. Nesse caso, por que condenar quem lhe tira a vida? Lógico que não é a decisão mais acertada, mas qual seria então? Qual a mais útil e prática? O que é impossível concordar é destinar grande quantidade de recursos públicos para garantir direitos a meliantes enquanto a população permanece na penúria. Lembro de vezes em que até helicópteros foram utilizados para transportar criminosos da delegacia até o hospital. Quando um cidadão de bem terá essa regalia? Isso recrudesce a sensação de que não vale a pena ser justo e de que o governo é leniente com os transgressores da lei. Havia um desenho que assistia quando criança em que o personagem do bem sempre dizia, quando alguém sugeria que exterminassem os capangas do mal: “se fizermos isso, seremos piores que ele”. Será? Era um desenho americano. Depois vi que nas produções japonesas (um país com criminalidade baixíssima) todos os praticantes do mal eram exterminados. O que será que isso quer dizer? Talvez o Japão não seja um país civilizado, afinal. Mas o Brasil com certeza é.

Não faço apologia da pena de morte ou algo do tipo, mas não me conformo em tratar uma pessoa de bem igual a um facínora apenas porque, em um momento de fúria e desamparo do estado, pôs ele mesmo um fim a quem o infligia tanto sofrimento. Acaso ele, devido a isso, deixa de ser humano ao ponto de não ter defesa dos direitos humanos? Há muita coisa a ser acertada nesse país, e uma delas, a mais urgente, é tratar cidadãos de bem como cidadãos de bem e infratores como infratores.


Clique aqui para assistir ao vídeo do flagrante.

segunda-feira, 21 de outubro de 2013

"Todo mundo é fã do Michael Jackson"

A reposta humilde e chocante (?) de um jovem talento da música.



Há uns dias encontrei um vídeo na Internet de uma criança (ou pré-adolescente, pois tinha doze anos) se apresentando como calouro em um canal da TV aberta brasileira. Devo dizer que foi uma das apresentações mais marcantes e sensacionais que já vi. Impressionado com tamanho talento, busquei mais vídeos do menino. Encontrei outros tão incríveis quanto o primeiro e outros nem tanto. Em meio a esses últimos, um em particular me chamou a atenção. Foi uma participação dele no programa Esquenta da Rede Globo, comandado por Regina Casé – trata-se de um programa que tenta glorificar todo tipo de cultura que existe Brasil afora, tentando mostrar os valores de nosso povo tão diverso. Perguntado se era fã de Michael Jackson, a resposta do convidado foi: “(...) com certeza. Todo mundo é fã do Michael Jackson”.

Após essa declaração, nota-se um silêncio de milésimos de segundos – como se fossem todos pegos de surpresa –, após os quais alguns músicos ali presentes ensaiam uma salva de palmas e uma interjeição de simpatia à declaração – para a frase não ficar sem resposta –, seguidos timidamente pela plateia. A apresentadora também sai pela tangente, dizendo-se igualmente fã do artista falecido. Tudo é muito rápido, mas o fato merece uma reflexão.

O garoto em questão atende pelo nome artístico de Jotta A. Surgiu no cenário televisivo no Programa Raul Gil, da TV Record, em 2011. Em sua primeira apresentação, cantou uma canção cristã conhecida em todo o mundo (ele é evangélico), intitulada Agnus Dei, composta por um dos mais conhecidos músicos do meio, o americano Michael W. Smith. Quando terminou a música, a plateia o aplaudia de pé, em êxtase (o que se tornou uma constante durante suas participações). Os componentes do júri estavam boquiabertos. Uns diziam ser perfeito, outros o aplaudiram de pé, outros choraram durante toda a apresentação. Durante o concurso, ele realizou uma dezena de apresentações fantásticas. Quando interpretou outro sucesso mundial, Oh Happy Day, até os músicos instrumentistas do programa, contratados para acompanhar os participantes, o aplaudiram. Seus vídeos correram o mundo, somando mais de trinta milhões de acessos no Youtube. É possível ver comentários dos mais diversos países, em inglês, espanhol e idiomas menos conhecidos. Internautas relataram ir às lágrimas ao ouvirem-no cantar. Pessoas do exterior chamaram-no para se apresentar em seus países, enquanto outros vieram ao Brasil para conhecê-lo. Produtores de artistas mundialmente famosos quiseram assinar contrato com ele. Ele foi o vencedor do concurso, e o CD gravado logo após o mesmo rapidamente atingiu a marca de oitenta mil cópias vendidas, garantindo-lhe disco de platina. Diversos vídeos gravados antes do sucesso surgiram, gravados em igrejas, casas, escolinha, e até mesmo num carro. Recebeu prêmios em eventos gospel. Foi elogiado por veteranos. Cantou e gravou com outros tantos. O garoto de voz aguda e capacidade de improviso que poucos adultos têm, que conseguia produzir sons gulturais, que começou a cantar com três anos e gravou o primeiro trabalho aos seis, ganhou o mundo. A comparação foi inevitável: “niño brasileño con una voz como la de Michael Jackson”, diz o título de seu vídeo mais visto mundo afora.

Com o enorme sucesso, o menino poderia subir em um pedestal e olhar os outros lá de cima. Poderia preparar uma cama de orgulho e se deitar nela (e provavelmente seria o maior erro de sua vida, e talvez ele soubesse disso). Mas, diante da pergunta simples, o menino que impressionou o mundo cantando e que entende como poucos a linguagem da música, deu uma resposta simples, que julgou ser a mais apropriada e óbvia (com a humildade que apresentou durante suas apresentações como calouro): “todo mundo é fã de Michael Jackson”.

Provavelmente o público não entendeu suas palavras. Afinal, para a maioria dos presentes, o artista conhecido como Rei do Pop não passava de uma figura esquisita de hábitos estranhos e que morreu de forma inglória. Para muitos, um criminoso, acusado que foi de pedofilia – embora nada se tenha provado até hoje. Os mais antigos ali presentes ainda poderiam saber um pouco mais sobre o astro, mas os mais novos ignoram sua carreira. Não sei o quanto o garoto Jotta A sabe da vida de Michael Jackson, mas sua resposta, além de humilde, é bastante sóbria. Não se trata de gostar de sua música, mas de reconhecer e reverenciar seus feitos artísticos.

Michael Jackson foi um menino prodígio e um fenômeno da música e do show business. Ele não foi um cantor, nem um compositor, ou um dançarino. Ele congregava o superlativo de todas essas habilidades, o que o tornava um artista completo – embora não seja certo que pudesse tocar algum instrumento, produzia com a boca os arranjos para suas músicas (a propósito, era dono de um beatbox – percussão vocal – impressionante). Como cantor, iniciou aos oito anos com seus irmãos no grupo The Jackson 5, logo assumindo o destaque do grupo, com sua voz aguda e interpretação marcante. Ao longo da carreira, desenvolveu um estilo único de cantar, inconfundível e praticamente inimitável. Como compositor, criou dezenas de canções inesquecíveis e que fizeram sucesso no mundo todo, até os dias atuais. Quando compunha, não escrevia as músicas. Utilizava um gravador para registrá-las, já que as idealizava com parte dos arranjos, como algumas bases, percussão e linha de baixo. Quando o fazia, entrava em um estado de êxtase que o impelia a terminar a composição rapidamente (ao criar Billie Jean, não percebeu que o carro que dirigia estava pegando fogo). Como dançarino, apresentava domínio corporal pleno, realizando passos de difícil execução, como quando imitava um robô. Mas sem dúvida sua marca registrada foi a divulgação do moonwalk (efeito visual em que o dançarino dá passos para frente, mas se move para trás), o passo de dança mais famoso do mundo.

Não se pode dizer que o fenômeno Michael foi tão somente um ponto de ruptura no meio musical. Ele foi antes uma intersecção entre ritmos e escolas. Alguns de seus álbuns foram produzidos por Quincy Jones, um trompetista da velha-guarda do jazz que tocou com nomes como Count Basie, Duke Ellington, Gene Krupa e Ray Charles. Paul Jackson Jr, outro jazzista (guitarra), mas da nova geração, também participou de gravações suas. Alguns grandes guitarristas do rock também tocaram com ele, como Slash (Guns'n'Roses) e Eddie Van Halen (Van Halen) – um dos dez melhores guitarristas de todos os tempos. Michael cantou pop, R&B, soul, rock, funk, disco. O impacto de sua música foi tão grande que alterou a filosofia da MTV (na época, um canal recente) de rock para pop, ajudando-a a entrar em evidência. Seus videoclipes são marcos do gênero, revolucionando o que se tinha produzido até então (alguns inclusive foram dirigidos por roteiristas consagrados no cinema, como Martin Scorsese). Ele também foi responsável por abrir as portas do show business para artistas negros. Sua influência sobre os artistas posteriores a ele é praticamente impossível de calcular, de tão presente que é.

O número de premiações e recordes obtidos por Michael impressiona – principalmente porque é o artista que detém o maior número de troféus e títulos. É o artista que mais vendeu em toda a história da música, e Thriller é o álbum mais vendido de todos os tempos (há artistas que nem em décadas de carreira conseguem vender tantas cópias quanto apenas esse disco). Ele tem seu nome registrado duas vezes na Rock and Roll Hall of Fame (feito que apenas cerca de uma dezena de artistas conseguiu), é o único dançarino pop que figura na Dance Hall of Fame, além de figurar na Songwriters Hall of Fame. Recebeu homenagem de dois presidentes americanos. Foi denominado artista da década de oitenta, do século XX, do milênio e lenda da música. Também mantém o recorde de downloads na Internet. Seu perfeccionismo era tanto que até os engenheiros de som de seus discos eram premiados. Quando morreu, a quantidade de tráfego gerado na web congestionou diversos servidores, inclusive fazendo o Google suspender por meia hora a busca por seu nome, pensando tratar-se de um ataque. Um tráfego que dificilmente irá se repetir.

Retomando nosso garoto do início do texto, não sei se ele conhece todos esses fatos relacionados a seu ídolo – e tantos outros que há, mas nos falta espaço aqui para citá-los. O que creio ser mais provável é que sua conclusão (todo mundo é fã do Michael Jackson) foi baseada no reconhecimento musical por parte de outra pessoa também agraciada com o dom da música. Os brasileiros são bons em enterrar grandes artistas nas areias do tempo e dar mais importância a fatos escandalosos que ao talento genuíno. Mas que bom que existem pessoas, mesmo muito jovens, que possuem a humildade de dar honra a quem tem honra, escolhendo seus ídolos a partir de suas próprias conclusões, e não guiando-se por recomendações suspeitas de quem pouco entende do assunto.



Apresentações do Jotta A no Programa Raul Gil

domingo, 13 de outubro de 2013

Humor medíocre

Humoristas conhecidos apenas por suas tiradas baseadas em sexo são a representação da mediocridade, sendo seguidos de perto por um público tão medíocre quanto eles


Embora seja discutível se o homem é ou não um animal – em uma acepção filosófica –, certamente ele possui uma parte animal, caracterizada por sua biologia. No entanto, a consciência e a engenhosidade de que dispõe o homem permitem-lhe utilizar sua fisiologia de modo mais apurado ou mesmo subvertê-la. É o caso da culinária, que vai muito além da atividade primitiva de se alimentar, sendo provavelmente a ciência dos vinhos a cereja do bolo. O erotismo – e todo o universo criado em torno desse tema – é o produto da evolução do ato sexual muito além da pura e simples reprodução.
 
E é essa mesma capacidade de ir muito além das sensações básicas que capacita o homem a encontrar satisfação em atividades que estão em um nível superior em relação a suas necessidades primitivas. Por exemplo, o pensamento crítico ou filosófico está muito distante da necessidade de comer, respirar ou dormir. Ele é abstrato e rico em referencialidades. Da mesma forma o humor fino. Ele lança mão da referenciação, da paródia e da ironia, algo que só os humanos possuem e é, segundo alguns, um traço evolutivo intrigante. E é justamente o fator humor que irá me conduzir nessa exposição.

A questão do humor está em evidência devido às facilidades de divulgação trazidas pela Internet e ao sucesso do formato stand-up aqui no Brasil. Até pouco tempo, o quadro cômico nacional era dominado por migrantes nordestinos que possuíam quadros nas emissoras de televisão do sudeste – no nordeste o humor é endêmico e necessário. Hoje, há uma predominância dos artistas do sul no cenário, que coincide com a ausência de limites da Internet e um enfraquecimento da censura dos canais abertos. Isso deixou aberto o caminho para que muitos profissionais do ramo passassem a explorar largamente o tema sexualidade – esse tema sempre foi recorrente, mas antes era mais restrito a insinuações e malícia, nem sempre percebida pela totalidade do público. Até certo ponto, é um tema como outro qualquer, mas não deixa de ser irritante quando um comediante o toma por núcleo de suas apresentações, demonstrando total falta de criatividade e inteligência para explorar outros temas.

Há um nome para isso: mediocridade. Ela é definida como “ausência de talento ou mérito; insignificância; pequenez”. Talento é algo que definitivamente falta a esses artistas, enquanto pequenez sobra-lhes em abundância. Eles se valem do tema fácil e óbvio por um motivo simples: a certeza de que surtirá efeito, pois trata-se de apelação para uma característica básica do lado animal do homem e, portanto, comum a todos. O humor inteligente é falho porque nem todos conseguem entender suas sutilezas, enquanto o humor caricato deixar escapar aqueles que não conhecem o tema atacado. Mas o humor desenvolvido sobre o tema sexo prescinde de pré-requisitos. Ele se vale da preferência do homem pelos sentidos, pela reação sensorial de seu corpo, pelos instintos animais. E encontra terreno fértil porque a plateia acompanha o comediante no quesito mediocridade.

Muitos filmes brasileiros, peças de teatro e séries de televisão compartilham desse mau gosto. E repercutem positivamente, o que é pior. Muitas músicas vão pelo mesmo caminho. Isso viceja por aqui pelo fato de nosso povo ser inculto e estar feliz com isso. Não conseguem se desvencilhar da dominação dos instintos mais baixos e apenas conseguem achar graça nas coisas desavergonhadas, impudicas, sem-vergonhas. Nas situações mais prosaicas, como uma conversa entre amigos, sempre sai uma referência a órgãos sexuais. Comparações, apenas referentes a sexo. Da mesma forma elogios e achincalhamentos. A salvação vem pela cultura, pelo conhecimento de elite produzido pela raça humana, pelas artes clássicas e pensamentos de grandes mentes. Enquanto isso não vem, não nos veremos livres da mediocridade crescente que se espalha como fogo em palha seca. Que Deus tenha piedade de nós!

segunda-feira, 7 de outubro de 2013

The Voice (do Brasil)

O Brasil, mesmo sendo um país (eternamente) emergente, é dado a costumes que o destituem de sua capacidade criativa. Um deles é o ato de importar programas televisivos idealizados em outros países, formatados para um público específico, com características e perfil próprios, e tentar aplicá-los por aqui. Embora alguns de fato vinguem (os que apelam para nossos instintos primitivos, que, a propósito, grassam entre nossa gente), outros constituem objeto de estranheza e curioso constraste. É o caso do atual programa de calouros do maior canal de TV aberta do país – imitação da versão americana, que, por sua vez, é baseada no original holandês.

O corpo de jurados é composto por artistas do mercado da música, de vertentes variadas, que fizeram sucesso em algum momento da história musical do país. Eles se mantêm de costas enquanto os candidatos se apresentam – para que se concentrem na performance vocal (que é a proposta nuclear do programa), e não se estão dando cambalhotas ou plantando bananeira no palco, como sói acontecer em programas do tipo. Eles podem decidir “adotar” algum participante (treiná-los para as próximas fases do programa), o que é indicado pelo ato de virar de frente para o mesmo. Caso mais de um o faça, o calouro pode escolher de qual deles se tornará pupilo. A fórmula é simples, mas esbarra em um fato cultural brasileiro: nosso povo não gosta de Música.

Parece um paradoxo, afinal, é comum ver as pessoas com (infernais) fones de ouvido o tempo inteiro, temos eventos musicais em todas as épocas do ano, o país é destino obrigatório para grandes nomes do mercado da música internacional, temos inúmeros artistas. No entanto... Nossa relação com a música é usurpadora, negligente, inconsequente, irresponsável, promíscua, parasitária, poluta, conspurcada, deficiente, desrespeitosa, deforme. Isso porque nos valemos apenas dos benefícios da música; a utilizamos apenas para “dar um clima”, nada tendo a ver com a arte da Música em si, a ciência de combinar os sons. O mais perto que se chega disso é aprender violão – e até isso é com fins escusos –, o que, para muitos, é a própria e única essência da música. Quando se vê alguém com uma partitura ou algo do tipo, a única pergunta possível é: “ah, você está aprendendo violão?”. Santa ignorância...

Mas aí pipocam shows de calouros onde a maioria dos que vão lá fazem apresentações espantosas, com grandes interpretações, pleno domínio vocal e técnicas que só vemos lá. A plateia se levanta, bate palmas, grita “vivas” e “hurras”, as pessoas em casa vibram e choram em frente à televisão, comentam no dia seguinte, acessam vídeos na Internet, escolhem um candidato e torcem com ele até o fim. E para quê? Para largá-los ao desprezo dali a algumas semanas, esperando por uma nova temporada do programa, a fim de repetir tudo outra vez. Pobres calouros...

A audiência e os telespectadores realmente ficam boquiabertos diante da qualidade vocal e interpretação apresentadas nesses programas, afinal, não é o que vemos ao vasculhar o repertório nacional. A propósito, por que não? Por onde andam esses cantores de vozes incríveis que nunca chegam ao sucesso? O Brasil tem histórico de cantores fracos, e por um motivo muito simples: só se dá importância às letras das músicas, neglicenciando completamente o talento vocal do intérprete. É difícil combinar um compositor e um bom cantor em uma mesma pessoa, então por aqui os autores das canções preferem eles mesmos as cantarem, ainda que sejam péssimos nisso. E como os ouvintes não têm o menor rastro de conhecimento musical para fazer qualquer tipo de crítica que não seja sentimental, o modelo se propaga, trazendo descontentamento para os que apreciam bons cantores e condenando para sempre ao desconhecimento talentos do porte de Whitney Houston e Michael Jackson, ferindo de morte o mundo da música.

Mas o mais curioso é que muitos desses que se apresentam como calouros aprenderam a cantar no meio evangélico (a propósito, coisa mais comum nos Estados Unidos), que, felizmente, ainda é um reduto onde a música é levada a sério, mas, ao mesmo tempo, sofre críticas de pessoas que acham que entendem muito de música. Até mesmo Ed Mota – músico condenado ao ostracimo por procurar caminhos musicais mais nobres – reconheceu a qualidade musical gospel, convidando alguns artistas desse segmento para cantarem junto com ele. O engraçado é que o que se diz dos cantores de igreja é que gritam em vez de cantar, mas durante os programas televisivos sobram aplausos justamente pela expressividade nos improvisos de suas apresentações. Vai entender...

O objetivo desses programas é procurar artistas rentáveis, pura e simplesmente. Engana-se quem pensa que eles têm a ver com seriedade musical. Mas com um rápido exercício de memória e um simples cálculo estatístico chegamos à conclusão de que têm sido um fracasso. Desde a re-estreia desse tipo de programa na televisão (após décadas de ausência) não há sequer um ganhador que tenha se mantido na mídia – alguns eliminados ainda conseguiram algo, o que deu margem ao mote ácido de que não se deve vencer caso se queira ter uma carreira artística. Por mais que os jurados e a direção desses programas se esforcem para descobrir uma fórmula do sucesso, não é tão simples. O irônico é que os festivais de antigamente, que buscavam artistas de interpretação original, pura e autêntica obtiveram sucesso incrivelmente maior, descobrindo talentos que até hoje estão entre nós.

Essa nulidade de resultados passa também pela visível decadência da qualidade musical do país, tanto no palco como embaixo dele. Nada que seja diferente de um ritmo ensurdecedor e enjoado aliado a letras pejorativas e de baixo calão – defendidas por muitos como livre expressão, mas que na verdade não passam do reflexo de sua mediocridade cultural, intelectual e de caráter – tem chance de sucesso. São músicas feitas para serem consumidas em orgias onde tudo é permitido, onde são estimulados os instintos mais baixos, que compartilhamos com os bichos. Tudo bem esse tipo de música existir (ao menos em uma sociedade como a nossa, marcada pela brutalidade de costumes), o problema é que seus simpatizantes (ou escravos?) as querem escutar no carro, no trabalho, em praça pública, como se fossem grandes pérolas da genialidade humana. E ninguém pode discordar deles.

E é por isso que esse tipo de programa importado, enlatado, não é condizente com nossa gente. Em outros países, como os Estados Unidos, aprende-se música na escola. O público tem maturidade suficiente para não deixar florescer músicas animalescas constituídas de apenas um verso que ainda por cima é onomatopeico. Embora a qualidade musical no mundo esteja em declínio (espera-se que seja apenas um ciclo, dado que a história é repleta deles), ainda há lugar para músicos de verdade lá, e não apenas farçantes. Embora o pop fácil de hoje em dia esteja assumindo o controle, há certa qualidade vocal na maioria dos representantes do gênero, diferentemente do que se vê por aqui, onde não se sabe nem o que é uma segunda voz. 

Esses programas são, por fim, cruéis. Iludem os aspirantes a estrela, prometem-lhes o mundo, mas ao final dão-lhes um tapinha nas costas e mandam-nos de volta à obscuridade. De volta a seus guetos, conseguem alguns poucos fãs que os abordam na rua, alguns espaços para se apresentarem e só. Um ou outro consegue o objetivo inicial. Desse modo, fazem as vezes de animais em zoológicos, onde todo mundo os acha bonitos, mas no fundo quer que eles fiquem lá, bichos estranhos, sem qualquer tipo de envolvimento, visitando-os quando der na telha. O público está de costas para a música e esses calouros são soldados de uma batalha inglória, impossível de vencer. São detentores de um dom que nunca vão conseguir usar. A frustração por não conseguirem fazer valer o talento que a Natureza lhes concedeu deve ser a maior das dores. Enquanto isso, pessoas sem talento algum ganham prêmios e mais prêmios de música, sem possuírem a menor afinidade com ela. Sem conhecerem nada dela. E o público brasileiro é o principal responsável por essa inversão de valores. Carrascos!

Pobres calouros...