Pesquisar este blog

segunda-feira, 9 de junho de 2014

Abaixo a mulher mulherzinha!

A despeito de todas as conquistas do movimento feminista, esse avanço não tem chegado integralmente a todas as esferas que cercam a vida da mulher. O lado profissional, que é sabido ainda não ser plenamente igualitário*, talvez tenha apresentado, por incrível que pareça, mais avanços que o lado sentimental. Mesmo que haja aqui e ali exemplos de mulheres que seguem suas vidas sem se importar com regras sociais originadas em séculos passados, não são poucas as que ainda as seguem e, pior, as defendem – inclusive muitas bem-sucedidas profissionalmente e de elevado nível cultural. 

Libertar a mulher, hoje, passa necessariamente por afastá-la da ideia do amor romântico como o conhecemos. Quantas não desperdiçam suas vidas em busca de um “príncipe” que trará sentido a suas vidas? Quanta energia e esforço não é perdido perseguindo esse ideal quase utópico? A farsa da idealização de um parceiro serve apenas para encaminhá-las ao sofrimento. De tão convencidas que são por essa ideia, dão mais importância à relação que ao companheiro em si. Elas criam uma máscara e saem em busca de alguém que a use. Dessa forma, ignoram quem essa pessoa realmente é, com suas virtudes e, principalmente, seus defeitos. Quando a euforia inicial do romance passa, e finalmente enxergam quem os parceiros realmente são, se desesperam por terem criado para si uma ilusão que lhes tomou tanto tempo – já que vislumbram os romances como investimento.

Se as mulheres são vistas como inferiores por muitos homens, é simplesmente porque muitas assumem tacitamente esse papel. Condicionam sua felicidade a um relacionamento. Se não estão em um, sentem-se infelizes e fracassadas. Insistem em relações desastrosas porque acham que nunca irão encontrar outra pessoa. Viver um grande amor é o principal objetivo de suas vidas, atrapalhando muitas vezes que foquem em outras questões, como estudos e profissionalização. Realizam sexo ultrajante pela simples obrigação de uma relação infeliz – e preferem isso a uma noite de prazer descompromissado onde há respeito mútuo. Tem-se que destruir a imagem da mulher incompleta, que necessita de um homem a seu lado para ter um sentido na vida, do homem que tem que pagar sua conta e sustentar a casa. Da princesa que precisa ser resgatada porque não consegue fazer nada sozinha. 

É preciso jogar fora o papel da mulher coitada que tem que esperar o homem vir até ela. Da mulher que envia mensagens secretas às nuvens na esperança de que os homens pelos quais se interessa as interpretem. Não à toa os homens de caráter duvidoso se saem bem no quesito número de conquistas. Como não têm escrúpulos, atiram-se à tarefa do galanteio sem considerar quaisquer consequências. E, uma vez que as mulheres estão à espera de que alguém lhes venha falar, consideram que eles são verdadeiros apenas por isso. Iludem-se e voltam a iludir-se, repetidas vezes, criando a partir de experiências ruins ideias deformadas sobre todos os homens. Muitas preferem viver infelizes e frustradas a tomarem uma iniciativa. Preferem permanecer na comodidade de seus lugares, experimentando apenas as oportunidades que lhes chegam, em vez de abandonarem essa posição limitante e ampliar as possibilidades de boas experiências.

Para libertar a mulher, nesse nosso século, temos de quebrar a promessa da certeza do amor eterno a qual todos têm direito – mas pouquíssimos encontram. Temos que explodir a condição da mulher que abre mão de sua vida, se limita, se anula, mente para o parceiro e para si mesma a fim de fazer um relacionamento dar certo. Da mulher que assume todas as tarefas e responsabilidades do lar sem exigir ou consentir que o marido tome parte nelas. Que precisa de um divórcio para compreender que ainda está viva, que não existem contos de fadas e que tem à disposição mais escolhas do que imagina. Abaixo a mulher que se humilha, que se deixa agredir – física ou psicologicamente –, que critica as que tentam quebrar esse paradigma. Fora com a mulher que pecisa de falsas juras de amor para se entregar ao prazer das carícias; que dissemina que sexo só interessa ao homem; que se sente depravada ao fazer sexo casual; que pede desculpas por ser “oferecida”. Desfaça-se a ideia de que amor, paixão e sexo se confundem. Que se ponha um fim no número de mulheres que fazem sexo forçado em relações estáveis mais do que no meretrício. Sem isso, outras conquistas têm sua importância reduzida. Essa mudança deve partir do interior de cada um – homens e mulheres –, senão corre-se o risco de termos uma sociedade onde o avanço das mulheres não passa de teatro. Esses mitos é necessário derrubar. 


*E aqui é necessário fazer um adendo: não conheço bem como essas pesquisas são conduzidas, mas desconfio de que muitas chegam a conclusões sobre diferenças de gênero no âmbito laborativo a partir de confusões estatísticas, seja de amostragem, seja de interpretação de resultados.

sexta-feira, 25 de abril de 2014

Fazer o certo


Uma alegação que se tem feito largamente desde que a psicologia caiu no gosto popular é que adolescentes fazem estripulias porque não conseguem avaliar a consequência de seus atos. Ou seja, não têm discernimento do que é certo ou errado, correto ou impróprio. Em décadas anteriores, jovens nessa idade tinham responsabilidades dentro de casa, e cedo eram classificados como adultos, casando-se ou assumindo atribuições dessa fase da vida. Eles eram cobrados pelo que se esperava deles e arcavam totalmente com as consequências de suas escolhas, que não raro eram tomadas sem qualquer auxílio dos pais ou pessoas mais experientes. Algumas vezes tais decisões eram acertadas, em outras, não. Mas qual das duas gerações tinha melhores noções de certo e errado?

A verdade é que ambas estão em condições de igualdade, talvez com ligeira vantagem de uma ou outra. E isso por um motivo muito simples: as pessoas, não importa em que época, sempre sabem como devem proceder (a ética kantiana se baseia nisso). Cumpre esclarecer que não estamos tratando de decisões projetadas para o futuro, como que profissão escolher ou onde morar. Remetemos aqui a como agir em determinados lugares e frente a determinadas situações. Por exemplo, no trabalho, devemos fazer o serviço bem-feito, não importa a situação; em casa, devemos ajudar nossos pais ou cônjuges; devemos respeitar nossos semelhantes sempre; devemos ser justos a qualquer custo e ajudar a quem quer que precise. Essas são recomendações gerais que todos conhecemos, julgamos corretas, mas nem sempre as pomos em prática. Mas por quê?

Não sei se é possível responder de forma objetiva a essa pergunta, mas há alguns possíveis fatores para tal ocorrência. Talvez um traço de rebeldia latente que reside em todos nós, de ir contra as regras, mesmo as boas e úteis. Talvez um egocentrismo avassalador que nos impede de ver o outro como alguém que nos afeta e que é afetado por nossas ações. Talvez uma carga transcendental que paira sobre fazer o certo, que nos impele ao caminho mais fácil e curto do desvirtuamento. Talvez a inexorável força que nos leva a seguir os passos da maioria, não importa quais sejam. Talvez uma maldade natural encerrada em nossa essência de ser humano. Ou quem sabe simplesmente preguiça de agir quando é mais cômodo ficar estagnado. Seja lá qual for a resposta, o fato é que sempre sabemos como deveríamos agir, mas muitas vezes não o fazemos.

Certa feita ouvi por acaso um discurso moral inspirador vindo de uma fonte muito improvável: um jovem marginalizado, dado a bebedeiras – possivelmente também a drogas ilícitas –, vadiagem e pequenos delitos. Em sua fala, distribuía conselhos e admoestações a todos: que as crianças ajudassem as mães, que as pessoas se entendessem, que os jovens trabalhassem visando a uma vida melhor. Seria comovente, caso ele mesmo não pusesse em prática nenhuma de suas considerações. Mas isso serve para mostrar que mesmo nas piores condições sociais, as pessoas sabem os deveres que se devem praticar.

Isso vem de encontro ao que pensam e proclamam alguns ativistas sociais, pois alegam que criminosos e delinquentes agem sem consciência de seus atos, em revolta cega contra a sociedade. A verdade é que bem poucos (se os há) não sabem que estão agindo errado, embora alguns hajam de fato em tom de inconformidade com sua posição social. Por mais que a um garoto da periferia faltem boas referências de pessoas bem-sucedidas que seguiram por caminhos justos, poucos têm convicção de que enveredar pelo crime é o certo a se fazer. A maioria despreza mesmo uma vida honesta por ser dura e possuir benefícios de longo prazo, talvez sem grandes recompensas materiais.

Quantos de nós já não nos pegamos dando sermão em outrem, aconselhando ou cobrando, mesmo sabendo que não agimos devidamente quando estavámos em situação semelhante? Bom seria se usássemos dessa empatia ao avesso não para lembrar de como deveríamos ter agido, mas para imputarmos a nós mesmos o modo correto de proceder em situações delicadas e específicas. Se o primeiro passo para a mudança ou correção é reconhecer o erro, então o que falta para construirmos uma sociedade melhor, se já conhecemos também as soluções?


quarta-feira, 9 de abril de 2014

Minha idiossincrasia


Passei toda minha adolescência me autodeclarando niilista e iconoclasta. Adorava discordar das unanimidades e escarnecer dos ídolos adorados por todos. Tinha verdadeiro prazer nisso. Nunca recebendo impressões dos outros, sem ter contato com a crítica especializada, sempre tirava minhas próprias conclusões a partir de minhas observações. Não tinha muito acesso a informação, de modo que, ao ouvir um cantor ou banda (invariavelmente sem saber seu nome), realizava uma audição totalmente isenta, livre de qualquer dado que viesse a tendenciar minha opinião crítica. E o que gostava ainda mais era descobrir antes de todo mundo um talento, alguém ou algo que viesse a fazer sucesso ou ser bem conhecido. Isso me enchia de orgulho, pois comprovava meu faro para talentos brutos ou ignorados. Na mesma medida, rejeitava alguém ou algo que estava na boca do povo. Sentia verdadeira aversão, antes mesmo de conhecer o objeto de veneração pública. Só depois de tal coisa cair no esquecimento é que me aproximava e a examinava bem, e, se fosse o caso, dava meu crédito.

Não sou mais adolescente, mas ainda guardo comigo essa característica – um pouco esmaecida, talvez. Absorvendo conhecimento de diversas fontes, passei a admirar certos ídolos baseado no que descobri a respeito deles (ou de experiências que tive) e também abandonei o espírito do niilismo (por julgá-lo uma tentativa pouco prática de solução de problemas). Continuo partidário de minhas descobertas e avaliações, sentindo grande satisfação quando algum crítico reconhecido corrobora minha nota preliminar. Sim, ainda sinto repúdio em relação à celebração massiva de algo. E creio que essa última característica tem gerado uma imagem incongruente de mim mesmo perante os que acompanham meus posicionamentos à certa distância.

Estamos vivendo tempos de ativismo social intenso (ainda que fortemente virtual e não necessariamente sincero, dado que virou algo cult). Jovens idealistas bradam contra as desigualdades do mundo, suas injustiças, seus carrascos desmascarados. Escolhem alvos, bandeiras a serem levantadas bem alto a fim de chamar a atenção para suas causas. É bem verdade que muitos que se dedicam à tal atividade estão apenas gastando a energia dos hormônios juvenis. Quem os encontrar daqui a alguns anos não os reconhecerá, incrustados que estarão na realidade do sistema outrora pérfido. Não simpatizo com seus exageros, nem com seus modos, nem com sua incontinência. O problema é que também sou contra algumas coisas que eles atacam. Por exemplo, tenho verdadeira abominação por pessoas que julgam alguém pela cor de sua pele. Também não concordo que as mulheres não sejam equiparadas aos homens em diversos aspectos. Tenho combatido ferozmente tudo que chega a mim em relação a isso e outros pontos, mas algo me impede de subir num banco e gritar contra isso aos quatro ventos.

Esse empecilho é o barulho que vem de tanta gente eufórica tentando mudar o mundo a qualquer preço, empurrando possíveis aliados e passando por cima de quem para pra pensar um pouco se estão indo na direção certa. Preferia ser eu o primeiro a escancarar os problemas inúmeros desse país, de nossa sociedade. Publicamente defender os que sofrem, acusar os que os maltratam. Fazer conhecidas as pequenas classes desfavorecidas que ninguém se importa em enxergar. Mas antes que minha voz pudesse ser ouvida por muitos eles vieram e tomaram a dianteira. Agora falta-me assunto. Vez em quando vocifero contra eles, como que para vingar-me. Irrita-me saber que muitos não têm real compromisso com a causa. Preocupam-se demasiado com o discurso, mas pouco com as ações. É como um irmão que toma o brinquedo de outro sem o objetivo de se divertir.

É por isso que evito discursar sobre problemas sociais nos meios de difusão. A fim de não me confundirem com um deles. Eu sei, parece mesquinhez, mas é uma força maior do que eu. Quem é de meu convívio próximo sabe pelo que luto, mas quem toma conhecimento de minhas causas pelo que exponho deliberadamente para o mundo pode ter uma ideia equivocada de minhas ideologias. Como todo cidadão oriundo da periferia, detesto a polícia. Detesto patrões inescrupulosos. Detesto as classes abastadas que ridicularizam os trabalhadores pobres. Impreco contra o governo, a justiça, o transporte público, os médicos que nunca trabalham, os professores que nunca dão aulas. Somos iguais, mas diferentes.

É esse sentimento estranho que me faz ser um paradoxo: um iconoclasta conservador (sim, o sistema está falido e eu o repudio, mas isso é culpa de seus preceitos ou das pessoas que o puseram a perder?). Defendo a demolição de figuras e procedimentos arraigados, desde que não seja realizado por uma trupe barulhenta e por vezes supérflua. Enquanto zoam para os holofotes, sigo fazendo minha pequena parte nos bastidores, impossibilitado de elevar minha voz a fim de não me ver no meio deles. Às vezes tenho até vontade de me voltar contra as causas que apoiam, mas aí paro e me conscientizo que as causas nada têm que ver com seus arroubos. Foram apenas tomadas de reféns. Não sei se um dia eles se calarão, mas, se acontecer, estarei pronto para erguer a minha voz.

segunda-feira, 31 de março de 2014

Sugestão de leitura


Título: O Som da Revolução: uma História Cultural do Rock – 1965-1969
Autor: Rodrigo Merheb
Editora: Civilização Brasileira
ISBN: 9-788520-010556







À exceção dos clássicos da literatura, livros brasileiros são invariavelmente mal escritos. E isso nos dois aspectos possíveis: forma e conteúdo. Reflexo de uma cultura de pouca leitura e ódio ao idioma, realizado no minimalismo preconizado por estudantes e alguns professores, o discurso é fraco e as palavras são mal escolhidas. No quesito teor, o desapego a detalhes e a ojeriza a teorias produz um manual técnico com fins práticos muitas vezes inútil; um maço de poucas páginas ou um calhamaço não coeso que quase nada agrega a quem o ler e pouco faz diferença em relação a outras obras do mesmo assunto. Que dirá causar impacto. Por esse motivo é que causa grata surpresa quando nos deparamos com uma obra produzida em solo nacional que prima pela boa escrita, tem uma narrativa envolvente e é pródiga em detalhes que fazem toda a diferença.

O Som da Revolução: uma História Cultural do Rock – 1965-1969, de Rodrigo Merheb, é leitura obrigatória para aficionados, simpatizantes e curiosos do rock, e altamente recomendada para interessados em geral, ignorantes sobre o assunto e inimigos do estilo. A proposta do livro está expressa no segundo subtítulo: a decisão de cobrir um período curto (mas prolífico) da história do rock revela a despretensão do autor em escrever uma malfadada cobertura de todos esses anos do estilo musical, ao mesmo tempo que, dada a extensão de suas quase quinhentas páginas, mostra que esses poucos anos são narrados com riqueza de detalhes. O autor escolheu dois festivais, um para início e outro para encerramento da obra, e um terceiro para o recheio: Newport e Altamont, escoltando o inevitável e mítico Woodstock.

A escolha do festival de Newport como abertura deve-se ao fato de ter sido nele que Bob Dylan, nome de grande expressão do folk americano, tocou pela primeira vez em público sua guitarra elétrica, escandalizando a audiência ali presente. Marcava assim o início da invasão do rock a áreas até então livres de sua influência. Já Altamont foi o palco da desordem que anunciou que a paz e o amor talvez fossem incompatíveis com os ideais de uma geração que clamava por músicas tão agressivas. No meio deles, por sua vez, Woodstock, representação maior da cultura hippie e ponto de parada obrigatória a qualquer história do rock que se preze, pouco teve de coletividade, espontaneidade, organização e, por incrível que pareça, música. Mas, para maiores explicações, é necessário ler o livro.

O autor não se limita a despejar datas, nomes e acontecimentos, mas constroi um panorama da época que contextualiza o leitor no espírito e ânimos daquele tempo, trazendo à tona a motivação dos músicos e consumidores do rock de então. As histórias dos personagens são bem entrelaçadas, de modo que nomes não surgem ou desaparecem do nada. Todos vêm e vão com um propósito, e nunca com uma história própria, desconectada das demais. Uma deficiência de livros de história, sejam propedêuticos, acadêmicos ou de entretenimento, é dar a impressão de que um determinado personagem existiu sozinho durante seu tempo. Merheb não cai nessa armadilha, indicando o entrosamento, as influências, as desavenças e tudo o mais que viveram juntos os protagonistas e coadjuvantes das cenas descritas no livro. É importante destacar que o autor não se deteve aos artistas, mas desenha também o retrato dos empresários e qualquer um que tenha desempenhado alguma influência no meio. Ao retratar muito mais que seus feitos – suas histórias de vida, desventuras e projetos –, traz o personagem para perto do público, que o encara antes como figura humana que histórica.

Mas um dos principais méritos do livro – e que poderia também ser um tiro pela culatra – é emitir ligeiras reflexões sobre o fenômeno rock, principalmente sobre a cultura hippie: seu impacto, sua filosofia e seus membros. O modo como mostra o tão combatido sistema capitalista de braços dados com o movimento que pregava a revolução, e por fim a total posse do novo ritmo pelos empresários que o empacotaram para pôr em prateleiras, desperta no leitor a curiosidade de pensar sobre o caráter dos movimentos de contracultura. Até onde se sustentam? A confissão, anos depois, de ídolos da rebeldia niilista de que estavam arrependidos de seus dias de militância consiste em um grito de alerta para aqueles interessados em mudar o sistema (é impossível implodir o sistema ou de fato seus opositores obrigatoriamente combaterão por um curto período de tempo de suas vidas? O sistema é inexorável ou a motivação de seus inimigos não é sólida?). E o desvencilhamento do rock do caráter de reforma social que o caracterizou no início (tanto um como outro capitaneados por Bob Dylan) levanta o debate sobre o papel político da arte – algo tão forte no Brasil.

Outro ponto forte consiste na reiteração do autor em chamar a atenção para a comum influência do blues sobre os rockeiros sessentistas. Apesar de hoje se perder de vista, o blues foi um dos principais estilos que deu origem ao rock, onde bebiam seus jovens astros. De fato, Eric Clapton e Janis Joplin estão mais para bluseiros deslocados no espaço e tempo (e amaldiçoados pela brancura de suas dermes) do que para astros de rock. Há também no livro uma seção na qual o leitor é agraciado com indicações de quais álbuns ouvir para apreender a produção musical daquela época, de grandes nomes a quase desconhecidos. Registre-se ainda a façanha realizada por Meheb em escrever, com muita propriedade, um livro sobre a história do rock, um estilo que não se firmou muito por aqui – sobrevive em guetos, e o intitulado rock nacional não passa de uma declaração chauvinista de que não conseguimos fazer rock de alta qualidade. Por tudo isso é que Uma História Cultural do Rock desponta como um importante acervo a figurar nas estantes dos que se sentem mais vivos com o pulsar binário do ritmo que atravessou décadas e marca gerações até hoje.



quinta-feira, 20 de março de 2014

Mulher real?

De uns tempos para cá, tem se tornado comum algumas pessoas levantarem bandeiras defendendo a presença de “mulheres reais” nas propagandas. Essas pessoas alegam que as mulheres retratadas nas propagandas são irreais, impossíveis de serem encontradas nas ruas ou por aí. Isso tem surtido algum efeito, de modo que algumas empresas têm se valido de modelos de medidas mais amplas e outras “imperfeições” em cumprimento ao clamor crescente. Mas o que seria uma mulher real, afinal?

Em primeiro lugar, é necessário lembrar que tudo – de comida a lugares, de cores a texturas, passando por pessoas – que é apresentado em propagandas (televisivas ou impressas) soa falso. Isso se deve às técnicas de produção. Objetos falsos (muitas comidas são de plástico ou massa), iluminação, maquiagem, truques cenográficos, tratamento digital, uso de computador, dentre outros, são alguns recursos que conferem a aparência irreal que vimos nos informes publicitários.* Descontado esse fato, resta saber o porquê de as modelos serem irreais. Para isso, precisamos investigar o complicado fenômeno do padrão de beleza (em termos bem superficiais, cumpre avisar, e meramente baseados na concepção deste autor).

Diferentemente do que alguns idealistas possam afirmar, a beleza é um dado concreto na natureza e conta enormemente para a escolha de parceiros (por exemplo, pavões dependem da beleza de suas caudas para atrair fêmeas). Inclusive alguns estudos apontam que a região cerebral ativada pela visualização de algo belo consiste em uma região dita primária, onde também atuam sensações como a fome, a sede e o frio (qualquer homem tem certeza disso). Os seres humanos usualmente fazem distinção entre o que é agradável a seus olhos e o que não é. Alguns cientistas creditam a percepção ou ocorrência de beleza ao grau de simetria presente no assunto observado, recorrendo inclusive à razão áurea desenvolvida pelos gregos a fim de medir a quantidade de beleza presente em algo (de acordo com essa teoria, as mulheres seriam mais belas que os homens por possuírem mais traços simétricos e devidamente proporcionais – nem era necessário realizar estudos para chegar a essa constatação). Apesar disso, muitos de nossa espécie escolhem seus parceiros por outros fatores, embora não deixem de se sentir atraídos por algo que considerem bonito. E o impressionante é que o conceito do que é belo varia em relação a tempo e lugar.
O que um árabe considera uma mulher bonita pode não ser o mesmo para um europeu. O que um nativo de alguma selva africana acha agradável pode diferir do que pensa um esquimó. Mas isso não significa um cartesianismo do quesito gosto. Muito provavelmente um representante da beleza de um determinado povo seja também apreciado em outra cultura (ainda que inexista ali). E se tomarmos um indivíduo de seu local de origem para viver em outro ambiente diferente do seu, é provável que se adapte e também mude o que considera bonito. Mesmo dentro de um país, como o Brasil, nos adaptamos quando nos movemos de uma região a outra. Logo, percebe-se que não há um padrão fixo de beleza, mas adaptativo (qualquer garoto do colegial sabe disso, pois, ao final do ano, as colegas de classe que achava feias no início do período letivo parecem mais agradáveis). Bem, mas isso no que se refere às pessoas enquanto detentoras de gostos individuais, idiossincráticos. Mas há outro padrão vigente, que é o da mídia, ou, como dizem, da indústria da beleza, panfletado em revistas, propagandas e desfiles de moda.
Mas esse padrão também é variável. Na década de oitenta, até o início da década seguinte, modelos de passarela não eram magras nem altas. Eram apenas esbeltas. Cindy Crawford foi uma excelente representante do gênero – talvez a maior de sua geração. Se ela tentasse ingressar no mundo da moda hoje, seria rejeitada peremptoriamente. Isso porque o padrão aceito por esse universo mudou. Hoje, mulheres magérrimas são consideradas bonitas, exemplos a serem seguidos, deixando como legado uma legião de jovens adolescentes bulímicas e anoréxicas. Qual padrão imperará nos próximos anos não se sabe, mas decerto o atual cadulcará, como ocorre em todas as áreas do conhecimento e artes. Mas há um fator a se levar em conta: esses dois padrões de beleza (o dos indivíduos e o da indústria) não coincidem. No máximo possuem alguns pontos de interseção.
Posso afirmar, como homem, que não somos influenciados pelos padrões “ditados” por empresários do mundo da moda – ou somos muito pouco, o que se daria em um contexto global da sociedade, e não diretamente através da mídia (por exemplo, Gisele Bündchen nunca será uma musa para nós). O problema reside no fato de as mulheres darem mais importância ao que a indústria diz do que ao que os homens falam. Conheço mulheres que cansam de ouvir que são lindas, mas se sentem inseguras porque não estão em concordância com os ditames de empresários da moda que nunca conhecerão e que amanhã abraçarão outro padrão de beleza arbitrário. Muitas mulheres se ressentem por não serem magras o suficiente, ou não terem cabelos lisos e compridos, ou olhos claros, ou ainda a pele alva. Mas a boa notícia é: para o público que realmente importa (os homens que se relacionarão com elas), não faz diferença. Não será uma propaganda que irá mudar ou moldar o que achamos de uma mulher. E mais: há homens com todos os tipos de gostos. Há preferências por muito magras, magras, muito gordas, apenas gordas, atléticas, roliças, baixas, altas, loiras, morenas, negras, ruivas, asiáticas, anãs, até mesmo grávidas e deficientes1. É difícil encontrar uma mulher sequer que nunca tenha sido galanteada – e é fácil supor que para cada pretendente que expressa sua admiração há no mínimo um que não o faz, o que nos leva a deduzir que o número de admiradores é no mínimo o dobro do que ela supõe.
Mas há uma verdade inconveniente que precisa ser dita: as “mulheres reais” das propagandas politicamente corretas não são consideradas muito atraentes pela maioria dos homens – preferimos as fornidas. E isso não é resultado de efeito propagandístico. É que há tantas mulheres incríveis circulando por aí que não há porque considerarmos nem as magras dos anúncios nem as cheias “normais” como as mais desejáveis. Qualquer passeio em um shopping, uma visita a uma praia, uma hora sentado em um banco de praça, um passeio pelo centro da cidade, uma ida a uma boate revela que não há razão para afirmar que não haja mulheres reais lindas. Embora não sejam a maioria, o número está longe de ser ínfimo, embora varie de região a região. Há lugares mais generosos e outros menos. Mas também há homens mais criteriosos e outros menos – alguns, para a felicidade de muitas, bem menos. E, lembrando que o padrão individual de beleza é adaptativo, restam poucos motivos para bradar contra tais propagandas.
O que não faz sentido é acusar os homens de preconceito quando não achamos uma determinada mulher bonita. Não há uma sala de controle em nosso cérebro onde acionamos botões e alteramos nossas preferências. O que hoje achamos belo é resultado de anos de experiências e sensações, portanto, está muito longe de ser voluntário – como também não o é a orientação sexual. Talvez com bastante exercício mental seja possível lidar em algum grau de controle com esse mecanismo, assim como monges budistas podem atear fogo a seus corpos e não sentirem dor. A questão é: até onde se pretende ir com isso? O benefício esperado compensa o esforço?
Reitero minha posição: se as mulheres ouvissem mais os homens do que a mídia, não teriam tantos problemas. Ao contrário do que se imagina, os homens não mentem nesse quesito – no máximo, exageram. Eles nunca elogiarão uma mulher que de fato não considerem atraentes2 (salvo em jogos fúteis de conquistas entre eles). Mas, como elas mesmas confessam, as mulheres se arrumam para a avaliação das outras mulheres, e não de seus companheiros – que invariavelmente as acharão muito bem produzidas, não importa o que usem. Outro agravante é que não têm consenso quanto ao conceito de magreza. Uma mulher perfeitamente em forma, visivelmente frequentadora de academia, com IMC dentro da faixa normal, é considerada magra. Enquanto para elas há apenas duas classificações quanto ao índice de tecido adiposo (gorda ou magra), para os homens há uma gradação de pelo menos dez níveis, onde a preferência deles é distribuída ao longo de todos esses segmentos.
Não vale o esforço de destruir a mídia –  ela sempre existirá. Cabe ouvi-la menos. A felicidade está mais perto do que se imagina.

* Vou contar um caso pessoal para ilustrar o fato. Quando estava no ensino médio, um grupo de meninas fez uma gravação em estúdio simulando um noticiário, como trabalho de uma disciplina. Todos os garotos ficaram surpresos em perceber como a maquiagem melhorou a aparência de uma das componentes – que nunca foi assunto em nossos comentários. Vale ressaltar que isso se deu em um estúdio de segunda classe de uma cidade pequena; que dirá do resultado obtido em  grandes estúdios.

1Em um episódio do seriado Dr. House, o médico protagonista convence uma paciente a encarar com naturalidade a cicatriz de uma cirurgia, alegando que será fácil encontrar homens que se interessem por tal característica.

2O que pode acontecer é o contrário: devido a fatores externos, alguns homens podem mentir, dizendo que não acham uma determinada mulher bonita (por exemplo, por ela ser empregada doméstica). Mas mesmo isso é raro.

segunda-feira, 17 de março de 2014

A mulher-prêmio

“– Tem que me merecer!”

Sempre achei essa frase estranha. E eu sei que você já ouviu alguém (muito provavelmente uma mulher) falando isso. Ela dá a entender que existem algumas condições prévias às quais um  homem deve se encaixar a fim de que a mulher aceite ter um relacionamento com ele. Creio que há duas situações possíveis que se encaixam na sentença. Uma delas diz respeito às vezes em que o homem precisa dar provas de que verdadeiramente tem interesse em manter uma relação séria com uma mulher. Isso se resume basicamente em respeitá-la, o que inclui: não traí-la (se isso é uma condição compartilhada pelo casal), cumprir acordos, respeitar sua família, não lhe esconder segredos que afetam a ambos, etc. Isso é o justo e óbvio fundamento de qualquer relação (e ocorre nos dois sentidos). Já a outra situação envolve prescrições menos afetivas. Mas que tipo de condições seriam essas? Pode haver algum risco oculto nisso?

No cenário atual da sociedade, a relação entre homens e mulheres não é muito difícil de descrever: eles vivem a correr atrás delas, e elas constantemente têm que decidir quais afastará e quais deixará chegar perto. Isso vale para relações amorosas ou não, mas aqui nos interessa apenas o primeiro caso. A decisão delas se baseia em dois fatores: algo que eles são e algo que eles fazem. No primeiro grupo há questões como se ele é bonito, se é de uma determinada etnia (negros parecem ser preferenciais), se é de fora (algumas se interessam muitissimamente por isso), etc. Já o segundo tem a ver com se ele é engraçado, se é músico (acredite, algo que conta muito), se é simpático (na acepção original da palavra, e não como eufemismo masculino para bonito), se é desordeiro (por incrível que pareça, estes fazem bastante sucesso), entre outros. Os homens que fazem mais sucesso são simplesmente aqueles que conseguem identificar o que mais agrada às mulheres e agem de acordo com esses critérios. Um momento! Isso quer dizer que eles podem agir falsamente, mostrando alguém que de fato não são? Resposta: sim!

Antes de prosseguirmos com a constatação acima, façamos uma análise de como uma mulher, hoje em dia, enxerga uma relação.

Herdada de tempos antigos, ainda está em voga a tradição de a mulher se colocar como o centro da relação. Seus pretendentes devem duelar entre si, cumprir uma lista de exigências, seguir procedimentos ditados por elas (uma espécie de cartilha comum elaborada pelas mesmas), dar-lhe atenção (e razão) sempre, etc. Para elas, a energia em escolher um dentre vários e permiti-lo fazer parte de sua vida e intimidade dispende tanta energia que deve ser vista com bastante cautela – um investimento. Uma vez em um relacionamento, usa de todas as suas forças para mantê-lo, para os olhos dos outros e para fazer jus ao trabalho de seleção do parceiro. Muitas até mesmo consideram estar sozinha uma falha inadmissível, uma falta grave. Outras sentem-se culpadas quando têm diversos parceiros casuais ou se consideram “rápidas” demais na escolha e nos avanços de intimidade em uma relação. Elas têm muito medo de escolher alguém “errado” (e não são poucos os casos de depressão e suicídio decorrentes de decepção amorosa quando se sustenta essa visão idealista). Os tempos estão mudando, mas esse ainda é o retrato de como a maioria das mulheres enxerga um romance (inclusive muitas mulheres supostamente modernas e independentes).

Esse comportamento, de tão comum, é recorrente no cinema. No filme A Rede Social, baseado em fatos reais (embora não se saiba se o fato a seguir é ou não ficcional), há uma cena na qual uma  garota tem uma noite de sexo casual com um desconhecido. No outro dia, ela julga que ele tem que lembrar seu nome, embora ela nem sequer tenha perguntado o dele – que a própria reconhece como mundialmente famoso ao ouvi-lo. Já em RED – Aposentados e Perigosos, há uma cena onde um homem deixa uma mulher em casa após o jantar, esperando que ela o convide para entrar. Como ela não o faz, ele protesta, alegando que pagou a conta e por isso deveria poder subir. Esse é um resultado possível quando se estabelece critérios como “pagar a conta” para avaliar pretendentes. Quem não quer ser tratado como mercadoria que não se ponha à venda.

É inegável que nós, os homens, achamos as mulheres incríveis. Adoramos não apenas sua beleza, mas sua feminilidade, que suaviza um mundo bruto onde existe mal. Sentimo-nos bem quando as temos por perto, não importa em que tipo de relação. Elas têm nossa atenção sem qualquer esforço, e de bom grado atendemos seus pedidos. Não é necessário esforço algum para que as tratemos assim. Gastamos grande parte de nossa energia (e, para alguns, de seus dias também) para atrair sua atenção. O fato é que, para nós, elas já estão em um pedestal, não sendo necessário que se elevem ainda mais. E é aqui que reside o problema.

Ao se imputarem o título de alcançáveis para poucos (os “escolhidos”, os que “as merecem”), elas descem os homens ao nível de um adereço, uma peça que se mostra boa o suficiente para acompanhá-las. É como não levar em conta o conjunto de qualidades individuais de cada um, valendo apenas se eles cumpriram ou não as tarefas pretendidas. Se são adequados ao rito que ditaram. E é esse o motivo de tantos homens serem falsos, como observamos no início. Já que não importa sua real conduta e caráter – basta que sigam as normas da cartilha, que façam aquilo de que gostam –, se apresentam como elas os esperam, ocultando quem realmente são, apenas para cumprir seu objetivo. Por outro lado, outra consequência é as mulheres decidirem por um homem que atende aos requisitos impostos (um “bom homem”, um homem “decente”, “de bem”), mas que não possui qualquer afinidade com a parceira. Em ambos os casos, o resultado para elas é a decepção ao constatarem que, apesar de terem dedicado tempo e energia em escolher o companheiro, fizeram uma má escolha.

Não se pode colocar homens e mulheres em planos diferentes, pois ambos são seres humanos. O que vale para um, vale para o outro: respeito, atenção, companheirismo, atração. Relações onde o homem tem que se desdobrar das mais diversas formas para agradar à companheira, sem receber atos recíprocos, são injustos e desiguais. Talvez até infelizes. Naturalmente os homens farão de tudo para mostrar a suas companheiras que as admiram, mas não faz mal que elas retribuam na mesma medida, ou quase. Mulheres não são objetos, tampouco homens o são. Os papéis dentro de uma relação podem até variar, mas são duas pessoas acima de tudo, com seus valores e particularidades. Um não é melhor que o outro. Uma mulher não é algo que se mereça, e um homem não é alguém que deva ser aprovado em testes. Suas índoles é que devem ser levadas em conta, a fim de que ambos se conheçam como realmente são e nisso baseiem suas escolhas. E é o amor que se deve buscar, e não o campeão de uma olimpíada romântica.

segunda-feira, 10 de março de 2014

Menos hipocrisia, por favor!

Quanto de preconceito realmente havia na declaração da professora sobre um passageiro de aeroporto que julgou mal vestido? 


Há algumas semanas, houve uma celeuma nas redes sociais devido a um post de uma professora universitária referindo-se, sem rodeios, ao modo como um passageiro estava vestido no aeroporto. Bermuda, tênis, camisa regata, óculos-escuros levantados para o alto da cabeça, uma lata (cerveja?) à mão. Ela diz que o sujeito parece estar em uma rodoviária, e não em um aeroporto. Nos comentários, algumas pessoas – incluindo o reitor da universidade – concordam e alegam que o glamour de voar já não existe mais. Outra reclama que se sente incomodada quando alguém desse porte – porque o passageiro em questão tem medidas um pouco avantajadas – senta-se a seu lado e fica roçando o braço peludo nela. Após o furdunço, todos os envolvidos pediram desculpas. Mas... era para tanto?

A enxurrada de críticas alegava que a professora criticava os pobres que agora podiam andar de avião; que não os suportava; que se tratava de ódio pelas classes menos favorecidas; que era preconceito social, etc. À primeira vista, o fato realmente gera estranheza porque parece ser uma falta de decoro. Afinal, figuras universitárias são tidas como puras, iluminadas, praticamente inumanas (e também por estarmos vivendo em uma época politicamente correta, onde há uma lista de coisas que se pode ou não dizer, que nada têm que ver com o caráter verdadeiro de algo). Mas todo fato pode ser visto sob vários aspectos e diferentes ângulos. Para a maioria das pessoas, é difícil deixar as paixões de lado – afinal, são tão mais comburentes – e fazer uma análise fria dos fatos; mas esse é o melhor caminho para não gerar injustiças. Se lermos atentamente os comentários da foto publicada pela professora, notamos facilmente o seguinte: em nenhum momento foi citada a condição social do rapaz. O que estava em foco era o modo como estava vestido. Ora, então de onde surgiram os protestos de ódio social e etc.? Voilà! Da cabeça dos que protestaram, o que dá a entender que quem tem preconceito são os próprios (eles afirmarão que o preconceito dela pelos pobres é implícito).

Tudo bem, concordo que não é tão simples. Mas façamos um esforço. De fato, voar já foi um grande evento. Havia almoço, expectativa, conforto, etc. Ou seja, glamour (eu mesmo já li isso em uma crônica publicada em revista de grande circulação, escrita por uma redatora saudosista). São tempos idos. As empresas tiveram que baixar o padrão de atendimento (tirando o almoço e o conforto) para poder sobreviver no mercado. Com essa medida, os preços baixaram e os voos se popularizaram, tornando-se acessíveis ao público das classes C e D. Por outro lado, a malha rodoviária interestadual sempre foi – e ainda é – a opção dos menos abastados. Agora retomemos o personagem da foto. Por que ele seria passageiro de uma rodoviária e não de um aeroporto? Devido a sua indumentária. Ponto. Mas o que exatamente isso traduz?

Por um lado, podemos pensar que a afirmação sustenta que todos os pobres se vestem de maneira extremamente informal – ou de mau gosto, dependendo do ponto de vista. Bem, quanto a isso posso falar com propriedade, dado que nasci e me criei na periferia. A maioria dos pobres gosta de se arrumar para ir a lugares como bancos, igrejas (principalmente), escola ou universidade, cerimônias sociais, etc – afinal, ser pobre e desarrumado já é demais, pensam. De uns tempos para cá isso está mudando, em parte devido à influência do modo casual de se vestir da própria classe média – lembro-me que me espantei quando vi alguém usando sandália de dedo (bem como bonés) na universidade e em shoppings. Logo, se a frase expressa esse sentimento, creio ser por desconhecimento de causa.

Por outro lado, a frase pode ter se baseado em experiência pregressa, e não em suposição ideológica. Talvez quem relacionou o modo de vestir do homem com os tipos que se veem em rodoviárias o tenha feito a partir de suas experiências – poucas, talvez – nesses lugares. Por que não? Nunca saberemos. Também nunca saberemos a real intenção da professora (o que sabemos é que a formalidade no vestir em nossa sociedade está mudando de modo geral – e os mais velhos não veem isso com bons olhos).

Mas o certo é que houve, isso sim, uma grande parcela de pessoas que, a partir da foto do rapaz, automaticamente o julgaram pobre; incapaz de comprar o que seriam roupas adequadas para se frequentar um aeroporto. Pelo que entendi, essa foi a maior prova de preconceito no caso. Jornalistas, cronistas, ativistas, internautas, todos os que vociferaram contra a professora e seus concordantes parecem ter imbuído em si o germe do preconceito e da hipocrisia reinantes no Brasil. O tema do ódio entre as classes sociais – nos sentidos alto-baixo e baixo-cima – é digno de nota e deve ser tratado com a atenção que se exige, mas o fato ocorrido descredenciou os argumentos simplesmente por se basear em suposições preconceituosas dos próprios “defensores” das classes desfavorecidas (e eu duvido que haja tanta gente a favor dos pobres por aqui).

Isso me lembra um outro fato, ocorrido há poucos anos, também de auto-denúncia. Um cantor negro nacional, junto com mais dois participantes igualmente negros e famosos, gravaram um clipe onde participavam coadjuvantes fantasiados de macaco. Automaticamente o artista foi acusado de racismo, mesmo sendo negro. Na cabeça dos críticos, era uma associação clara entre a etnia negra e os primatas. Mas o fato é que essa associação era clara e direta apenas em suas cabeças. Nem a música, nem os gestos, nem o fato gritante da própria cor dos participantes indicava isso. O cantor teve que dar longas explicações a respeito, apenas para explicar o óbvio: que não era racista.

Parece-me que o caso do passageiro do aeroporto é apenas uma nova versão desse outro, com alguma complexidade adicional. Um comentário pessoal, de uma visão pessoal, na leitura de quem busca acusar a todos de sofrer de seus próprios preconceitos, como que para livrar-se um pouco de sua culpa (uma catarse), pode gerar muito ruído por nada.


PS: parece que o passageiro em questão na verdade é dono de um escritório de advocacia; acabara de desembarcar de um cruzeiro e usava roupas leves devido aos comentários de que estava quente na cidade onde mora. Prometeu tomar as medidas legais cabíveis em relação aos envolvidos.


terça-feira, 25 de fevereiro de 2014

A lição que ninguém quis aprender

Não faz muito tempo, os termos “rei do camarote” e “agregar valor” se tornaram parte integrante do vocabulário dos que usam ao menos um pouco a Internet. O motivo foi um vídeo de um suposto endinheirado que torrava milhares de reais em uma única noitada, e que gerou uma onda de repúdio à conduta tão hedonista. A matéria foi divulgada em um veículo de grande projeção, mas depois ficou-se sabendo que se tratava de uma montagem de um grupo humorístico: o ricaço não era ricaço; a esnobação não era esnobação; a verdade não era verdade e a indignação tornou-se em risos. 

Grande parte dos internautas deitaram a tripudiar sobre o conglomerado jornalístico responsável, acusando-o de não possuir jornalismo profissional – principalmente os que discordam da ideologia política do grupo. Sim, eles podem ter errado, mas sempre é bom lembrar que o campo do erro é a grande interseção de todos nós, seres individuais ou entes coletivos, legalmente constituídos ou livremente independentes. E afinal, mesmo que a pessoa que aparece no vídeo não fosse quem dissesse ser, sabemos que há pessoas reais que se portam tal qual descrito ali – inclusive surgiram outros vídeos na Internet de pessoas que reivindicavam para si o título de “o verdadeiro rei do camarote”. Mas houve uma grande lição nisso tudo, e não foi o reforço com o cuidado de o jornalista analisar suas fontes. Foi uma lição importante, mas que a maioria preferiu ignorar.

Gente endinheirada torrando dinheiro com frivolidades sempre causa comoção nas pessoas. Proferem injúrias, conjuram impropérios, chamam-lhes maus. As pessoas se indignam com o fato de haver tantas pessoas padecendo fome, sede, frio; necessidades as mais diversas, enquanto há outras alheias a tudo isso, gastando seus recursos em benefício próprio, com vistas apenas à diversão. É inegável que esse dinheiro poderia ajudar muitas pessoas, mas a questão da obrigatoriedade de contribuir com causas sociais é bastante melindrosa. Mas esse ainda não é o ponto.

Diversos afirmaram que, se estivessem no lugar do rapaz do vídeo, ajudariam muitas pessoas, doando grandes somas de dinheiro. A questão é: não é necessário ser rico para ajudar alguém. Para os realmente necessitados, toda ajuda é bem-vinda. E não apenas de dinheiro. Pode ser uma palavra de consolo, doação de utensílio, mesmo usado (roupa, eletrodoméstico, móvel), uma carona, uma hospedagem, uma cesta básica, um conselho. A maioria de nós pode ajudar minimamente de alguma forma, mas é mais confortável nos escondermos sob a declaração de que não podemos ajudar porque não somos milionários o suficiente. Mas o que é pouco para o rico, é muito para nós. E o que é pouco para nós, é muito para alguém. Basta procurarmos com vontade para encontrar quem necessita.

Há idosos abandonados em asilos que ficariam felizes em ter com quem conversar em tardes de domingo. Há crianças lutando sozinhas contra o câncer sem saber até quando estarão vivas. Há pessoas morrendo de fome nas ruas imundas, que ficariam satisfeitas com o resto de nossas refeições que desperdiçamos. Há jovens estudantes na periferia sem qualquer perspectiva de futuro, optando pelo crime como caminho mais óbvio por não ter quem lhes indique outro caminho. Há gente morando em casebres infestados de insetos que os picam constantemente. Há crianças abandonadas em orfanatos que nunca saberão o que é uma família. Há menores infratores que pioram a cada vez que são detidos em centros de recuperação, sem nunca saber o que é amor. Há presidiários que nunca conseguirão mudar de vida por não saberem como isso é possível. A maior necessidade do mundo não é resolvida com dinheiro, mas com afeto, com compadecimento, com uma palavra de conforto e boa vontade. Criticar quem tem muito dinheiro como se apenas eles tivessem a obrigação de ajudar é ter apontado quatro dedos acusadores para si. A oportunidade de ajudar está mais perto do que supomos, e é mais simples do que imaginamos.

segunda-feira, 17 de fevereiro de 2014

Militantes

Será a recente onda de ativismo pelas minorias um movimento sólido ou apenas um modismo?


Protestos sempre existiram na sociedade moderna – direitos dos negros, direitos das mulheres, direitos dos trabalhadores. Cada grupo defendia suas causas e muitos foram os benefícios alcançados através dessas manifestações. Hoje em dia podemos contemplar um novo levante de insatisfeitos erguendo bandeiras, mas, em geral, divergem em um ponto em relação aos protestos de outrora: esses manifestantes defendem outras classes que não a sua*. Ou seja, não pertencem ao grupo pelo qual lutam. São idealistas de uma causa, movidos, à primeira vista, pelo altruísmo e empatia. Será mesmo?

Acredito que, antes de sermos seres sociais, somos seres biológicos, com uma constituição pré-concebida do que viremos a ser durante o curso da vida. Esta talvez seja a razão de existirem perfis psicológicos que se repetem nas mais diversas sociedades, compondo um padrão mais ou menos definido (a quantidade de padrões diverge entre as correntes psicológicas: algumas afirmam serem quatro, ou nove, enquanto outras atestam que são onze ou treze, e outras mais). Entre esses grupos, parece haver (e isso é, advirto, percepção minha) um tipo contestador e rebelde, que defende sua ideologia acima de tudo, não importando que para isso tenha que afrontar a outros. Ao que me parece, o atual modo ativista se presta bem a esse papel comportamental. Tendo a causa como mero pretexto, a ênfase está no método adotado.

Não faz muito tempo, houve um dia oficial de paralisações sindicais país afora. Como fui impedido de acessar as instalações da empresa onde trabalho, decidi visitar minha família, que mora a poucas centenas de quilômetros. Qual não foi minha surpresa (aqui, eufemismo para indignação) ao ser informado que a estrada (de administração federal) estava bloqueada devido aos protestos. Após mais de uma hora de trânsito lento, consigo sair da cidade por uma rota alternativa – que, soube depois, só não foi também interditada devido à falta de pessoal suficiente. Essa é uma característica desses novos movimentos: acreditar que suas causas estão acima de tudo, e que todos devem concordar com eles e aceitar participar direta ou indiretamente de suas reivindicações, uma vez que acreditam buscar o bem de todos – embora elejam algumas minorias em especial.

É louvável defender uma causa, principalmente quando não se pertence à classe em questão, mas é importante não subverter as regras sociais básicas com o intuito de levá-la adiante – a menos que o objetivo seja de fato substituir regras sociais elementares. Impedir o direito de ir e vir, por exemplo, não me parece um bom método para angariar simpatizantes, além de ser uma boa demonstração de que desrespeitar as leis e os cidadãos não envolvidos no caso é algo que se deseja promover – e não estamos falando de desobediência civil, embora muitos deles declarem agir de acordo com esse conceito. Não se trata de uma condenação do ato de protestar, mas de uma crítica ao protesto vazio e sem objetivos, sem alvos, que banaliza o direito cívico de promover manifestações legítimas.

Um agravante para esse novo movimento é o fato de que, por ter se tornado politicamente correto – até mesmo cultdefender causas sociais (ou ambientais), o coro tem engrossado com vozes tão-somente situacionais, ou seja, pessoas não engajadas de fato, mas que acreditam ser moralmente recomendável defender alguma causa – querem aparecer. À primeira vista, isso parece ser bom, mas esses membros pouco envolvidos parecem contribuir mais com trapalhadas do que com atitudes sérias. Confundindo ideias e vislumbrando situações que não existem, terminam por propagar antipatia ao movimento do qual fazem parte. Mas não apenas eles. Alguns dos militantes mais aguerridos também enxergam um mundo que precisa ser salvo, reduzindo-o tão somente a sua visão partidarista, maniqueísta, autoproclamando-se salvadores da humanidade.

Nisso incorrem em uma de suas maiores fraquezas: a incoerência. Não raro se valem de argumentos fracos e atitudes que reprovam nos outros, mas que empregam largamente, como que justificadas pela grandeza de suas atitudes. Afirmam estudar e saber mais que qualquer outro sobre os assuntos de seu interesse (embora limitem-se a uma visão unilateral do mundo, lendo apenas pensadores que sustentam seus princípios), tentando com isso minar um debate que poderia ser proveitoso. Não admitem opinião contrária as suas, alegando que tudo já foi discutido e deliberado por eles, não sendo mais necessário argumentar a respeito – assumindo o papel de donos da verdade. Quando em debate, exasperam-se, vociferam e realizam ataques pessoais. Desaprovam qualquer ideologia contrária, meneando a cabeça em sinal de desprezo, sem querer ouvir ou se esforçar em rebater os argumentos alheios, julgando seus adeptos como intelectualmente inferiores. Ou seja, são tão intolerantes quanto o pior conservador, diferenciando-se deste apenas por estar do outro lado no campo das ideias.

É comum também aderirem a uma causa sem sequer conhecê-la. São doutrinados por militantes antigos e passam a vomitar suas palavras de ordem, sem checar o contexto dos fatos e se importar de fato com os indivíduos que supostamente defendem. Lembro muito bem de um caso que se passou na universidade de minha segunda graduação, quando uma funcionária do restaurante universitário foi morta pelo ex-marido em seu local de trabalho. Em um grupo de uma rede social da universidade, um aluno filiado a uma frente nacional estudantil postou uma mensagem-clichê convocando os demais estudantes a realizarem um evento em protesto ao ocorrido – sem objetivos claros ou mesmo definidos, se é que os havia. Na mensagem, ele afirmava que a mulher morta era negra e pobre e que esses seriam os motivos de ela ter sido assassinada, e não a falta de segurança generalizada da universidade, onde carros já foram roubados, alunas estupradas e pessoas assaltadas. Não tardou para surgirem comentários contrários à convocação. Em um deles, um aluno desmentiu o fato de a vítima ser negra: estava com uma foto da mesma. Outra aluna levantou uma questão pertinente: será que haviam visitado a família da vítima, ido ao velório, ou apenas aproveitavam o momento para se autopromover? A questão é que, na primeira colocação, a cartilha do movimento ensina que todo pobre é automaticamente negro, e, no segundo caso, não faz menção alguma a conhecer as vítimas de perto: apenas a causa importa; os eventuais personagens não passam de estatísticas frias, sem rostos ou nomes.

Ou seja, muitos deles não pasam de alienados, tão alienados quanto os capitulantes inertes do sistema. Longe de pensarem sobre suas bandeiras, enxergam apenas o que querem, filtrando tudo que lhes chega e compondo mesmo situações que não existem. Embora admitam lutar contra uma espécie de tirania, algumas de suas causas não passam de busca por impor suas convicções a todos, constituindo-se apenas em substituição de uma repressão por outra. A despeito de se denominarem paladinos da justiça, a verdade é que não são. São tão comuns como qualquer outro grupo, apenas divergem dos que estão no poder. Se residissem na Arábia Saudita ou Afeganistão, talvez fossem jihadistas ou xiitas, tentando converter o mundo e condenando os contrários a sua fé. É necessário analisar com bastante cautela quais de suas reivindicações são realmente válidas e quais não passam de romantismo libertário; arroubos ressentidos de pessoas que gostariam de ter participado de fatos políticos importantes ocorridos décadas atrás, mas não eram nascidas.

Muitos são apenas revoltados, e seriam revoltados sob quaisquer circunstâncias. Pessoas desse grupo social-psicológico muitas vezes vestem-se de modo a chocar e provocar, ouvir músicas que os distingam dos demais, transformar a aparência em algo que se possa chamar de bizarro. Outras também tornam-se ativistas. Basicamente, buscam chamar a atenção através da diferença, uma vez que não se enquadram nos padrões seguidos pela sociedade, onde dificilmente seriam notados – e muitos deles abandonam seus ideais ao atingirem certa idade, vencidos que são pelo sistema. Acercam-se de seus semelhantes, leem e discutem apenas livros e ideias relacionadas a sua doutrina, abandonando assim uma ideia plural do mundo, mas pensam que conhecem a realidade, não enxergando que apenas conhecem o universo que construíram para si mesmos. Apesar de constar em suas cartilhas que devem atacar fervorosamente religiões, não se diferenciam em nada de muitos fieis a quem criticam. O discurso repleto de lugares-comuns é um bom exemplo dessa padronização, produto de doutrinação ideológica. E é essa ideologia que pretendem fazer adotada por todos, sem saber se de fato é o que as pessoas almejam e não raras vezes desconsiderando fatores básicos da índole humana e focando em teorias fugidias sem projeto prático de resultados. Concentram seus esforços apenas nos problemas, sem investigar suas causas, baldando seus esforços em resolvê-los de verdade. Em situações extremas, terminam por fomentar problemas de seu interesse, ao patrocinar liberdades individuais que resultam em desastres sociais.

A questão não é pensar ou agir diferente. Muito menos se importar com desfavorecidos. O ponto é ter objetivos claros e coerentes. Construir mudança social através dos instrumentos sociais. Respeitar a liberdade de expressão de opositores e valer-se de argumentos sólidos, e não apenas de vontade e querer. Analisar o mundo de facto livre de pré-julgamentos e juízos de valor a fim de compreendê-lo em sua integralidade. Estão de parabéns os que lutam de acordo com esses princípios.


* Os movimentos antigos citados contavam com simpatizantes de fora da classe reclamante, mas eram muito poucos em comparação com o corpo total.

segunda-feira, 10 de fevereiro de 2014

A matrix do mundo real

Os lutadores de uma causa devem antes preocupar-se em conscientizar as pessoas que há visões alternativas de mundo, mas nunca devem arrogar-se o título de detentores da verdade absoluta.


The Matrix (1999), filme dos irmãos Wachowski, foi um grande sucesso sob vários aspectos. Criou escola com seus efeitos especiais, lançou tendências, influenciou segmentos. Suas intrincadas referências (filosóficas, religiosas, tecnológicas, literárias, etc.) geraram calorosas discussões por parte dos fãs e diversos livros para dissecar os elementos presentes no filme. A obra pode ser analisada (e vista) sob diversos aspectos: apenas recreação, filosoficamente, etc.

De modo resumido, o filme narra uma distopia em um futuro onde as máquinas dominaram os seres humanos e passam a cultivá-los, controlando sua reprodução, mantendo-os em estado de dormência permanente e fazendo-os sonhar todo o tempo, alimentando-se da energia gerada por seus cérebros durante esse processo. Esses sonhos seriam a realidade que vivemos hoje, simulada pelas máquinas. Daí advém o nome do filme: Matrix é o nome do mundo virtual onde os humanos pensam que realmente vivem. No entanto, há um grupo que, de alguma maneira, consegue despertar e sair da Matrix, conhecendo assim o mundo real – um ambiente caótico em uma Terra destruída e escura. Esse pequeno exército entra e sai da Matrix clandestinamente a fim de libertar outras pessoas – motivo pelo qual é perseguido por agentes das máquinas infiltrados na Matrix. Mostra-lhes a verdade: que vivem uma ilusão e que têm a escolha de permanecer desse modo ou despertar para a realidade.

Esse paralelo tem sido utilizado largamente em nosso meio. Diversos grupos alertam que vivemos em uma matrix, iludidos pelo governo, pela mídia, pelo senso comum, pela cultura de massa, pelas convenções sociais, etc. De fato, muitos não se apercebem que no mundo há muito mais do que nos é apresentado. Há opções ocultas, há informações escondidas convenientemente, há histórias e dados forjados, mentiras descaradas, verdades desconhecidas. O acesso a informações nem sempre é fácil, o que contribui para que muitos sigam suas vidas alheios de tudo o que está além da mera visão cotidiana.

Mas a trama do filme traz um fato digno de observação: uma das pessoas retiradas da Matrix se arrepende. Mesmo sabendo da verdade, ela prefere voltar para lá, onde a vida pode ser mais confortável, mesmo sabendo que não passa de um sonho. Para retornar à antiga vida, trai seus companheiros, mas acaba morto. Esse é um caso aparentemente pouco ou nada explorado, mas que pode ser esclarecedor.

Recentemente, os partidários de algumas causas sociais antigas e outras novas, como o feminismo, por exemplo, buscam despertar as pessoas para suas lutas, mais ou menos como os personagens do filme. De acordo com eles, estão libertando as pessoas da matrix do mundo real, tornando-as cientes de que são enganadas, de que não enxergam o que não está patente ou de que não vivem a verdade plena como deveria ser. Conclamam-nas a se juntarem à luta. E, como os bravos do filme que libertam os humanos dormentes, consideram que os libertos têm a obrigação de segui-los. Se não o fazem, ou se não os ouvem, muitas vezes são insultados e julgados de diversas maneiras. Embora seja louvável querer romper com o tradicional, principalmente se pernicioso, há uma questão a se considerar.

Mostrar que há outras realidades além da ordinária não significa que elas sejam mais desejáveis que a que se conhece, ou mesmo melhores. Por isso a motivação da luta não deve ser por converter alguém ou recrutar colaboradores, mas sim de dar-lhes o poder da escolha. Escolhas só podem ser feitas quando há opções, para o que deve-se ir além do que está aparente, e para isso os movimentos se prestam. Mas isso não significa que sua visão do mundo real esteja sempre correta, absolutamente. Ela pode ser apenas mais uma realidade paralela, não-intencionalmente enganosa. Por que não admitir que algumas pessoas, conhecendo as supostas ilusões do mundo atual, prefiram as coisas do jeito que estão? Talvez elas nem sejam ilusões afinal. Ou sejam só um pouco, de modo que não se justifique uma mudança radical que não proporcione grandes benefícios.

Afinal, quem sabe se não há de fato diferenças no comportamento de homens e mulheres? Quem pode dizer que o “padrão de beleza” é realmente superficial? Pode ser que as pessoas gostem mais de viver em um mundo consumista que compartilhar tudo com todos. Deve haver os que prefiram mesmo aceitar todos os dogmas de uma religião, seita ou partido. O imprescindível, e essa deve ser a luta, é ter à disposição opções que tornem as escolhas uma decisão pessoal. Qualquer tentativa de premer quem quer que seja a escolher um determinado caminho invalida a luta pela verdade. A liberdade de escolha é o bem maior que justifica essa luta.

segunda-feira, 3 de fevereiro de 2014

Da Obrigação do Beijo Gay ou A Mídia, Essa Grande Lente de Aumento

Em meu primeiro curso de inglês, quando acabava de sair da adolescência, certa feita o professor perguntou se a mídia influenciava ou era influenciada pelas pessoas, ou seja, se ela ditava novos padrões e tendências ou se apenas mostrava o que existia. Na ocasião, propus que a mídia funcionava como uma lente de aumento: exibia algo que ocorre em escala pequena para um público enorme (é assim que expressões de uma região se espalham país afora). Até hoje ainda penso que essa é uma boa representação de como a mídia funciona na maior parte dos casos.
 
Há poucos dias houve o primeiro beijo gay protagonizado por dois atores no horário nobre da maior emissora de televisão do país. Em programas anteriores, algumas cenas foram gravadas, mas eram sempre suprimidas, nunca indo ao ar. Já houve o beijo feminino em uma emissora de menor porte, portanto, sem tanta repercussão. Há tempos existe uma cobrança por parte dos militantes pró-homoafetividade para que cenas de beijo entre homossexuais fossem exibidas em folhetins. E ele finalmente veio. Mas por que agora e não antes?

O Brasil é um país enorme, com uma grande população, culturalmente diversa, mas semelhante em alguns aspectos. Em essência, trata-se de uma sociedade conservadora – embora a maioria das pessoas não atuem nesse sentido. A maioria apenas vive despreocupadamente, o que inclui permanecer seguindo os costumes reinantes no meio, ou seja, é um conservadorismo inconsciente – afinal, o que esperar de uma sociedade vazia de educação e cultura? Sabemos que a liberalidade acompanha o desenvolvimento econômico: quanto mais desenvolvida uma localidade, mais liberal será seu povo. Temos poucos centros urbanos razoavelmente desenvolvidos aqui, e, de fato, é fácil perceber que são claramente mais liberais que regiões interioranas. E é aqui que entra a lente de aumento midiática, uma vez que é nesses grandes centros que as produtoras de televisão estão instaladas.

A mídia, através de propagandas ou programas televisivos, busca retratar características, costumes, acontecimentos, tradições de algum segmento de nossa sociedade. E há vários deles: o caipira, o nordestino, o religioso, o boêmio, o boa-praça, a ovelha-negra, etc. São tipos bem conhecidos, alguns comuns em todas as regiões e, embora sempre haja a esteriotipação (de modo por vezes injusto), esse é o modo encontrado para caracterizar o personagem perante o público, que rapidamente o identifica. E, para o identificar com sucesso, as produtoras evitam retratar personagens representantes de nichos pouco conhecidos. Mas nem sempre.

Muitas vezes os autores dessas produções escolhem um tema que acham importante tratar, seja por motivação pessoal, intenção de discutir questões sensíveis ou ainda despertar nos telespectadores curiosidade ou atenção para algo que mereça alguma consideração. Desse modo, questões como doenças pouco compreendidas, imigração ilegal, tráfico internacional de pessoas, barriga-de-aluguel, dentre várias outras, já foram temas em novelas brasileiras. Mas a escolha do que retratar em suas tramas segue alguns critérios. E não chocar a sociedade em peso invariavelmente é um deles (veremos o porquê adiante).

A homossexualidade vem sendo discutida há tempos e cada vez mais tem ganho espaço – e vale citar que as novelas dos canais abertos têm contribuído bastante para isso, pois, ainda sendo as maiores formadoras de opinião do país, sempre retratam os gays como pessoas boas e gentis, ajudando-os a conquistar a simpatia do público – o que não significa que a conversão dessa empatia pelo personagem para o mundo real seja integral. Sabemos que em alguns lugares está se tornando menos incomum demonstrações públicas de afeto, mas não em outros – a maioria, por enquanto. A decisão da produtora em finalmente exibir a tão cobrada cena vem no embalo da abertura que esse tema tem conseguido. Ou seja, utilizando seus poderes de difusão em massa, projetou algo que acontece timidamente, às escondidas, para um público numeroso e diversificado, alegrando uns e decepcionando outros, o que é natural em uma sociedade tão heterogênea como a nossa – e vale lembrar que o novo nunca é unânime. Mas a pergunta ainda ressoa: por que não antes?

Algumas pessoas querem imbuir produtoras e emissoras de obrigação moral de combater o que quer que seja. Mas o fato é que elas não têm. O modelo de negócio da televisão ainda hoje é a captação da atenção dos telespectadores através de programas que despertem seu interesse a fim de exibir comerciais de produtos e serviços. A missão dessas empresas não é quebrar tabus, mas promover o comércio através de propagandas. Estamos em um tempo em que damos preferência a empresas com programas de responsabilidade social e ambiental, mas isso é um requisito não-fundamental para as companhias. Trata-se de um diferencial competitivo. O objetivo das empresas de comunicação não é mudar o mundo ou transformar a sociedade. Essa é a razão de ela ter bastante cautela com o que vai ao ar. É por isso que realiza pesquisas junto ao público a fim de medir o índice de audiência e saber se está agradando ou não aos telespectadores. Por este motivo consideram o contexto do momento antes de exibir um determinado conteúdo. Há tempos a questão homossexual frequenta as telenovelas brasileiras, mas as emissoras julgavam que o público de quinze anos atrás não estava preparado para cenas de beijo entre casais gays. Se tais cenas foram exibidas agora, é porque a emissora julgou que a sociedade, em parte, já está preparada para isso – ou que a discussão já pode ser levantada (ou apenas desejava cativar o grande público LGBTS). A televisão é uma máquina de entretenimento amparada no marketing, não uma entidade política ou sindical – muito embora ela possa ter (e normalmente tem) alguma inclinação partidária, algo que também não é unânime.

Mas aqui no Brasil há esse sentimento de que tudo deve ter motivação política: a música tem que ser política, as universidades, os livros, os órgãos públicos, o entretenimento. É uma redução do mundo a uma visão míope das coisas. É verdade que temos vários problemas a resolver, mas não é distribuindo obrigações indevidas a órgãos não-competentes que iremos saná-los. A televisão sempre irá nivelar por baixo sua programação, pois sua ocupação é o flerte com o público, ora retratando as verdades óbvias, ora atiçando sua comodidade – atuando como lente de aumento. Os ativistas LGBTS podem comemorar, mas não devem esquecer que a luta é primariamente deles, com ou sem aliados. O apoio da mídia é, nesse sentido, um bônus inesperado e muito bem-vindo ao movimento, mas longe de ser uma obrigação.

quarta-feira, 29 de janeiro de 2014

Saiu e encontrou a morte


Saiu e encontrou a morte
Recebeu os amigos em casa
e, afoito, apressou-se nas depedidas
A mãe ainda o viu dobrar a esquina
sem saber se ouviu o que lhe falara
A camisa nova
comprada na noite anterior
só foi lavada uma vez
e agora está embebida em sangue
Em sua ansiedade
queria encontrar a vida –
mas a morte o encontrou antes
Saiu e retornou sem vida
Os amigos, todos juntos, rodearam seu corpo
Sua mãe, em prantos, apertou-lhe ao peito
O chão, a poça de sangue, o tiro errante
A multidão, a correria, os gritos
Os protagonistas fugitivos e alheios
Uma breve vida
Uma vida ingênua
Virgem das mágoas do mundo
Livre da dureza dos homens
E finda

domingo, 19 de janeiro de 2014

Hoje eu vi as estrelas

(Tema baseado no apagão do Nordeste ocorrido no dia 28 de agosto de 2013)

A cidade, em polvorosa, corre 
Acelera o acelerado
Carros e pessoas se desentendem
nas trincheiras da guerra cotidiana
Querem chegar em seus lares antes da noite
– e ela vem, com certeza
Sem energia, a cidade pára
Sem energia, as pessoas vão-se às casas
Sem energia, os carros voam
A noite traz o sentimento antigo
do homem frágil
do homem pequeno
do homem inconsciente de si
Refugiados em casa, voltamos a temer as trevas
As notícias de longe já não chegam
desmanchando a aldeia global
Os sons elétricos desaparecem
e nos fazem companhia o barulho mecânico da natureza
A luz volta a ser errante
e nossas vorazes pupilas sorvem o menor facho que seja
E em meio à impotência da fragilidade
olho para cima
a contemplar o domo celeste
o teto de nossos ancestrais
Foi quando notei que há tempos não fazia isso
e lembrei que há muito
eu não via as estrelas
A luz da terra cega o homem,
que passa a ignorar a luz do céu
Mas elas sempre estão lá
– nem sempre as mesmas
Hoje meu espírito se aquietou
Ouvi o som da paz
Do silêncio gritante
Pressa não há mais
Preocupação não há mais
A dor se foi
Hoje reconheço que todos os homens são meus irmãos
E a natureza é nossa irmã mais velha
Já não lembro de meus problemas
Pequenos
Pequenos agora são todos eles
Porque eu novamente vi as estrelas
Esse ato simples, esquecido
me fez lembrar que a vida não é só movimento
mas também estado
É permanência
É quietude
Nesse momento, crianças devem estar fazendo sombras à luz de velas
as mãozinhas se desdobrando em movimentos agitados
Outras estão recolhidas junto aos pais
receando a noite incomum e órfãs da artificialidade brilhante
Nesse momento deve haver casais se amando
prateados pelo astro distante e pelos outros pontos rutilantes do céu
Ah, essas pequenas luzes...
Há tempos não as vejo
Mas hoje paguei meu débito
Hoje voltei a ser uma criatura do mundo
e sinto que a vida voltou a mim
Sinto que fui aceito pelo Universo
Apenas porque...
Hoje...
Hoje eu vi as estrelas