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sábado, 20 de julho de 2013

Casa

– Quero ir pra casa!

A frase, pronunciada entre soluços, fez com que muitos passageiros da aeronave se revolvessem em seus assentos em busca de sua autora. Depararam-se com uma garotinha em início de vida, com um vestido rosa disputando atenção com seus cachos dourados. Em prantos, ela esfregava as mãozinhas nos lhos e continuava instando com seus pais que a levassem para casa. Casa...
 
Mesmo a pouca idade daquela criança não foi suficiente para impedi-la de compreender o real sentido do termo. Apavorada com o que talvez tenha sido seu primeiro voo, inibida diante de tantas pessoas desconhecidas, desconfiada da segurança da viagem, sua única alternativa foi remeter ao lugar onde se sentia mais segura: o lar.

Desde que o homem cansou de se preocupar com sua segurança e sofrer no próprio corpo a fúria das intempéries ele tem buscado formas de abrigo. Em um passado remoto, quando ainda não dispunha de ferramentas, métodos e matéria-prima, ele buscou na natureza a solução: em vez das plantas de altas copas, passou a abrigar-se em formações rochosas. Esse fato originou o epíteto que caracterizou o vivente daquela época: “o homem das cavernas”.

Com o advento das tecnologias e o estabelecimento da raça humana nos lugares mais diversos do globo, eis que surge uma infinidade de moradias à disposição. Houve os que fabricaram tijolos – enquanto alguns os coziam, outros os preferiam crus – e construíram casas com eles. Muitos se serviram da abundância de madeira de sua região para se proteger do frio. Não foram poucos os que, mais práticos, utilizaram o barro em estado puro para edificar seus cômodos. Tantos foram os que empilharam pedras de modo engenhoso. Houve mesmo quem se valeu de peles de animais para montar seu teto. E quem não tinha nada além de gelo a seu redor pegou nele mesmo e fez seu iglu.
 
Percebendo que a importância de sua invenção ultrapassava o propósito inicial, eis que surge uma insatisfação com o nome que lhe dera. Ora, um lugar onde agora se passa a maior parte do tempo – seja comendo, dormindo, descansando, pondo o amor em prática, dando à luz, ou mesmo trabalhando – não pode ter a mesma designação de antes. Assim, surgiu na língua – que sempre atende aos desejos de seus falantes – um nome novo, que remetia não à estrutura física, mas à simpatia e afeto que os habitantes de seu interior lhe dispensavam. No nosso idioma temos o termo “lar”, complementando “casa”. Os espanhóis saíram com a dupla “casa” e “hogar”. Os ingleses criaram “house” e “home”. Os alemães, por sua vez, vieram com “Hause” e “Zuhause”. Os franceses juntaram tudo em “maison”, talvez pelo fato de fazerem tudo com prazer – vejam-se suas invejadas refeições que não engordam.

Ao longo da história, várias casas tornaram-se notórias. Algumas onde residiram vivos, outras destinadas já aos mortos. Algumas são suntuosas, outras são bastante humildes. Podemos visitar algumas, mas outras apenas vemos de longe. Visitar as casas alheias nos faz compará-las com a nossa – o que pode nos trazer felicidade quando a achamos superior, ou inquietação ao senti-la menos nobre. Há quem viva a vida inteira numa única habitação, ao passo que muitos outros carregam consigo reminiscências dos lugares que já chamou de lar. E devemos ainda lembrar daqueles que, rebeldes que são, abandonam suas casas para voltarem à natureza bruta e acolhedora.

Mas nossa garotinha chamava por sua casa... Seu lar. Mesmo sendo tão nova ela sentia, pela experiência, que em sua casa ela estaria bem-guardada. Lá ela não teria preocupações, nem medo – talvez só um pouquinho, mas haveria pessoas para a reconfortar. Não se sabe como era sua casa – se grande, pequena, um apartamento ou um condomínio fechado de alto luxo. Para ela não importava esses conceitos de gente grande. Para a pequena, seu lar era suficiente, independentemente da opinião dos outros a seu respeito. Ali ela era feliz. Para lá ela queria retornar – e já! Ela embarcou contrariada em sua viagem, mas sabia que, ao regressar, sua casa estaria lá para a acolher e fazê-la de novo feliz.

Trajetória


Me desculpe, não sou todo mundo
Me desculpe, não sou qualquer um
Vá desculpando, saí lá do fundo
e dando bem duro cheguei até aqui
Nascido maldito, cresci afastado
dos olhos dos outros, qual filho bastardo
Vivi humilhado e vendo de longe
bonitas escolas e seus estudantes
que vinham de carro e os chamavam por nome
Enquanto na minha escola de bairro
faltava de tudo, das mesas ao quadro
Os mestres, mal-pagos, brigavam com a gente
que, então inconscientes, devíamos estar
Mas vá desculpando, cresci sem esmero
às vezes chinelo não tinha no pé
Apenas a fé, companhia de graça
dizia que um dia isso ia passar
Feri minhas mãos assentando tijolo
queimei o meu rosto no sol de rachar
Passei até fome, imagine você
mas não desisti de lutar e vencer
Amigo desculpe, não sou de sua laia
Nada de graça veio até mim
Se hoje sou gente, me visto e como
foi por muito sono que eu já perdi
De dia trabalho, à noite estudo
no meu quarto escuro, em livros dormi
Quebrei a cabeça, queimei sobrancelha
mas valeu a pena se estou hoje aqui
Você me desculpe, se teve de tudo
não aproveitou nada, e hoje está aí
Não me humilhe, pois não há motivo
se cheguei mais longe, mais alto cresci
Se quer minha sombra, deita aí e descansa
mas não jogue pedras, que os frutos são meus
Se quer minha ajuda, não vejo problema
mas vê se te lembras do passado teu
Onde é que estavas quando estive em tua porta?
O que tu fizeste pra me ajudar?
Por que tu querias derrubar meu casebre?
Se era meu teto, meu tudo, meu lar?
Mas já não importa, ficou para trás
Somente o futuro eu quero seguir
Agora me deixa, não sou de teu bando
prossigo lutando, feliz em sorrir

quinta-feira, 18 de julho de 2013

Sugestão de leitura




     Título: Em Defesa da Comida – Um Manifesto
     Autor: Michael Pollan
     Editora: Intrínseca
     ISBN: 978-8598-078-335







Quem nunca se viu confuso diante das notícias sobre resultados de estudos sobre alimentos? Uma semana o café faz mal; na outra, é aconselhável. Ora o ovo é um vilão, ora é um heroi nutricional. Na última década, um alimento xis era celebrado por muitos; hoje, é execrado por todos. A dieta que antes era garantia de saúde agora foi condenada ao esquecimento. Esses poucos fatos servem para ilustrar o quanto a ciência da nutrição é incipiente em mensurar os reais benefícios (ou malefícios) dos alimentos. Mas, e se, de repente, não apenas esses fatos isolados estivessem equivocados? E se de repente descobríssemos que a atual dieta ocidental está apoiada sobre falsos fundamentos nutricionais? E se os alimentos que comemos diariamente na verdade estão nos tornando doentes? E se os propalados benefícios de determinada comida na verdade estão nos intoxicando? Se isso tudo de repente nos surge como verdade, haveria saída para nós?

O jornalista Michael Pollan decidiu investigar a veracidade do que nos vendem a indústria e a mídia da alimentação. O resultado de entrevistas, conversas informais, pesquisas e leitura de artigos foi compilado na obra Em Defesa da Comida – Um Manifesto. O que Pollan fez não é diferente do que uma pessoa comum faz ou poderia fazer: empreender uma jornada em busca do que se oculta sob rótulos e promessas de benefícios à saúde de alimentos industrializados. Talvez sua única vantagem em relação ao cidadão comum seja o fato de ele ser jornalista, o que lhe permitiu ter acesso a grandes nomes da área, sejam cientistas ou nutricionistas, além de farto acesso a literatura relacionada. Desse modo, seu livro nos poupa o trabalho de ir em busca de informações criteriosas, entregando-nos dados valiosos a respeito (cujas fontes, listadas ao final, podem ser consultadas pelos leitores mais interessados). Seu livro é, no mínimo, interessante.

Pollan resume seus princípios alimentares em três premissas: “Coma comida. Não em exceso. Principalmente vegetais”. Cada uma delas é desdobrada em um tópico independente. Por exemplo, ele sugere que comamos comida, o que nos remete ao questionamento: mas o que é comida? A ordenança sugere que esse simples conceito talvez não seja tão simples de depreender no mundo de hoje, com a numerosa oferta de produtos alimentícios desenvolvidos em laboratórios e preparados em indústrias de processamento. Pollan defende o retorno às origens, ou seja, substituindo o atual leque de opções disponíveis nos supermercados (a maioria artificial) pela culinária de nossos avós (ou ainda antes deles), ampliando o cardápio com a maior diversidade de vegetais possível – e, de preferência, oriundos de fazendas orgânicas.

Em seu livro, Pollan registra ainda que provavelmente o maior vilão da atualidade seja o carboidrato refinado (aquele encontrado na farinha de trigo fina, no açúcar refinado e no arroz branco), sendo o principal responsável pelas doenças crônicas da atualidade. Ele defende ainda que as dietas regionais (como a francesa, a mediterrânea) devem ser consideradas como uma combinação testada e aperfeiçoada através dos anos, por várias gerações, e não devem ser vistas através de suas partes isoladas, mas como um todo. A propósito, Pollan data o início do “nutricionismo” – e o fim da alimentação de verdade – quando a ciência começou a dissecar os alimentos em seus componentes (a fim de reconstruí-los artificialmente). Uma decisão infeliz, visto que, nesse caso, o todo é maior que a soma das partes.

O livro reflete bem a questão alimentícia nos Estados Unidos, que pode ser extendida à maioria dos países que adotaram os mesmos hábitos (Brasil incluso), conhecidos como dieta ocidental. No entanto, o Brasil parece estar em uma situação um pouco melhor, ao menos no que se refere ao consumo de junk food e semelhantes. E nossas regiões mais agrárias, como algumas localidades do Norte e Nordeste, parecem seguir uma alimentação mais nutritiva devido à diversidade das culturas regionais e ao consumo de menos produtos industrializados, o que inclui leite in natura e ovos de galinhas criadas comendo pasto.

Seguem algumas premissas propostas pelo autor a fim de balizar um consumo mais saudável:

  • Não coma nada que sua avó não reconheceria como comida
  • Evite comidas contendo ingredientes cujos nomes você não possa pronunciar
  • Não coma nada que não possa um dia apodrecer
  • Evite produtos alimentícios que aleguem vantagens para sua saúde
  • Compre comida em outros lugares [que não o supermercado], como feiras livres ou mercadinhos hortifrútis
  • Pague mais, como menos
  • Coma uma variedade maior de alimentos
  • Prefira produtos provenientes de animais que pastam
  • Cozinhe e, se puder, plante alguns itens de seu cardápio
  • Prepare suas refeições e coma apenas à mesa
  • Coma com ponderação, acompanhado, quando possível, e sempre com prazer

domingo, 14 de julho de 2013

Medicina para quem precisa


O Conselho de Medicina é totalmente contra a importação de ḿedicos, mas o que propõem em substituição? Aliás, qual o real motivo de não se deslocarem para as regiões carentes?


Certa feita, enquanto cursava minha primeira graduação, observei as placas de formatura das turmas de medicina afixadas nos corredores do hospital universitário. A quase totalidade delas trazia o seguinte nome de turma: “nossos pais”. Pensei: para tantas turmas terem o mesmo nome, elas devem ter tido o mesmo perfil de aluno. Um perfil onde os pais desempenharam papel fundamental na vida acadêmica desses alunos, provendo todas as (dispendiosas) condições durante os longos anos envolvidos no curso (contando os anos de preparação anteriores ao ingresso na universidade). Um perfil óbvio que se encaixa nessa realidade é, no mínimo, o de classe média. 

Não se pode dizer que os cursos de medicina não são elitistas. Em primeiro lugar, são os cursos mais concorridos de praticamente todas as universidades brasileiras, com as médias muito mais altas que as dos demais cursos. Para obter uma vaga são necesários anos de preparação, o que significa uma vida inteira frequentando bons colégios e um ou mais anos em cursos voltados para a prova de ingresso. Uma vez lá dentro, é necessário dedicação integral ao curso, o que elimina preocupações do tipo como obter recursos – a fonte de renda, invariavelmente, serão os pais. Findos os seis anos iniciais, parte-se (quase sempre) para a residência, o que adia por mais alguns anos a prática enquanto profissional. Durante todo esse período o aluno não tem a menor preocupação em obter sustento por meios próprios. Imaginar que um estudante esforçado seja suficiente para fazer parte desse seleto grupo é pura ingenuidade.

“Nossos pais” relembra outro fato: muitos dos estudantes de medicina são filhos de médicos. Não poucas vezes, também netos de médicos. Até mesmo uma dinastia completa. É inegável o prestígio que médicos desfrutam no Brasil, sob o título de “doutor”. Não à toa muitos de nossos presidentes (sem contar outros vultos políticos) eram médicos. O dito universitário de que uma pessoa de branco andando de carro no campus é aluno de medicina, enquanto outra andando de branco a pé cursa enfermagem faz sentido. Os alunos de medicina são conhecidos pelas festas homéricas que promovem. Enquanto o curso de direito – outro curso elitista – aos poucos se “democratiza” com o surgimento de várias faculdades particulares com preços mais ou menos acessíveis, um curso de medicina em tais estabelecimentos custa alguns milhares de reais mensais. Elitista? Sem dúvida.

Hoje discute-se a proposta do governo de trazer médicos de outros países para atuar no Brasil. O anúncio desse fato desencadeou protestos inflamados por parte da comunidade médica, alegando diversos motivos pelos quais seriam contra a importação de profissionais. O objetivo do governo é recrutar médicos do estrangeiro para atuarem em regiões onde há deficiência (ou ausência) de médicos para atender às comunidades locais. A região amazônica seria uma grande beneficiária, já que é pródiga em casos de falta de auxílio médico. Tais médicos se limitariam ao atendimento básico junto às populações mais carentes, desassistidas das condições mínimas de saúde.

Mesmo anunciando que o contrato é temporário e limitando o campo de atuação dos profissionais do estrangeiro, não houve acordo: o conselho de medicina é contra a medida. Para ele, é culpa do governo se não há médicos em regiões remotas. Para o governo, são os médicos que não querem atender nesse lugares. Enquanto eles não se entendem, a população segue sofrendo males que não existem mais no mundo moderno, minimamente esclarecido e asséptico.

Creio piamente que a maioria dos médicos não se dispõe a ir a lugares ermos. E isso nada tem que ver com salário ou estrutura de atendimento. Tem a ver com abandonar toda uma vida de facilidades em prol de lidar com gente simples e ignorante em lugares que não oferecem o mesmo nível de conforto das capitais e grandes cidades. Ora, uma turma inteira que viveu à sombra de “nossos pais” por acaso quererá distanciar-se deles ao concluir o curso? (os que não vieram de tal meio estão loucos para atingir esse patamar, preferindo ficar onde é mais provável auferir lucros) Alguns o fazem, até mesmo participando de missões humanitárias visando apenas o bem-estar do próximo. Mas mesmo assim muitos tomam essa decisão motivados por uma inquietação na consciência de quem sempre teve tudo. É politicamente incorreto afirmar que a classe média despreza a população de baixa renda, mas é falacioso afirmar o contrário. O esporte dos privilegiados economicamente é fazer pouco dos que ocupam a posição abaixo da sua na hierarquia social. Fala-se muito no preconceito de cor ou de orientação sexual, mas nada é dito do preconceito social e econômico, tão mais comum e igualmente imoral e destrutivo.

Só quem conhece o atendimento público de saúde sabe como o mesmo é deficiente. Sua ineficiência se extende por todos os aspectos. Sua face mais conhecida é a total precariedade de infraestrutura: não há leitos, falta medicação, alta frequência de equipamentos danificados, impossibilidade de realizar exames para diagnósticos. A visão de um hospital (ou mesmo posto de saúde) público assusta os despreparados e não-conhecedores da realidade: corredores infestados de pessoas nas mais adversas condições, funcionários indiferentes ao sofrimento dos pacientes e familiares, gente morrendo por falta de atendimento, precariedade geral do imóvel. Mas há uma característica recorrente: nunca há médicos suficientes. Isso ocorre mesmo nas capitais e grandes cidades, onde há mais médicos disponíveis que no interior. Mesmo os que estão no hospital são de difícil acesso. Como sombras, aparecem e somem, e ninguém sabe onde encontrá-los. É comum esperar horas para ser atendido. O que muita gente não sabe – mas supõe – é que o problema não é bem a falta de profissionais, mas a resolução da parte deles em simplesmente não atender. Há aqueles que chegam atrasado e vão embora mais cedo. Há os que simplesmente decidem não ir. Muitos até vão, mas uma vez lá dentro, preferem se dedicar a atividades que consideram de maior relevância, como assistir televisão. Alguns plantonistas, ao serem acionados para se dirigirem ao hospital, preferem aguardar até que haja bastantes pacientes agonizando, a fim de fazer valer seu trabalho em se deslocar até lá – se morrerem antes, paciência, era o dia deles (ao menos permanece em casa).

Ninguém há de negar que a situação no interior é igual ou pior que nas metrópoles, e que de fato o trabalho do médico é prejudicado. Sempre há nesses hospitais uma ambulância (quando há sorte, mais de uma) para levar casos mais complicados para outras cidades onde haja hospitais com mais condições de os atender. Às vezes só há médico uma ou duas vezes por semana, e mesmo assim por poucas horas. Embora não haja tantos louros em atender em tais locais, os pacientes são de tal forma gratos que presenteiam o responsável por sua cura com os mais variados frutos da terra – pois é o pouco que têm. 

Todos hão de concordar que falta estrutura para os médicos que trabalham no interior. Mas, se esse é o impeditivo para que se desloquem até lá, por que nunca se pronunciaram a respeito? Se o fizeram, não foi com a veemência com que estão defendendo suas vagas em tais localidades. Isso parece menos preocupação com os pacientes do que reserva de mercado: não querem ir, mas também não permitem que ninguém vá (semelhante aos donos de vastas terras improdutivas que não se dissuadem a se desfazer delas). O argumento levantado por eles de que se está pondo em risco a saúde das pessoas não convence – não para quem conhece o serviço prestado pelos médicos públicos, onde encontrar um médico solícito é quase como encontrar um político honesto. Ora, muitos médicos nem sequer olham para seus pacientes. Mal os ouvem. Apenas rabiscam uma receita e mandam-no embora. Querem se livrar deles a todo custo, como se ganhassem por paciente atendido. Por acaso o consellho de medicina acha que isso é sinônimo de qualidade? Ele acredita que os profissionais estrangeiros farão pior?

Quem conhece algum médico em familiaridade já deve ter ouvido falar de hospitais bem equipados do interior que aguardam a ida de médicos há bastante tempo. Eles simplesmente não querem. Ninguém duvida que é difícil trocar a cidade grande pelo interior, mas afirmar que esse não é o motivo pelo qual faltam médicos nesses lugares é uma desculpa muito frouxa. Não se sabe o que pretende o conselho de medicina com tais medidas de repúdio. Talvez aguardar que as cidades se desenvolvam até o ponto de oferecerem o conforto que almejam. Fica a impressão de que, ao se reformarem e equiparem os hospitais ermos, sairão com outra desculpa para não irem atender lá. Ora, se não pretendem trabalhar longe de seu local de origem, que digam logo de uma vez e proponham uma solução para isso – como fez o ministro da saúde, ao propor formar profissionais desses próprios lugares, favorecendo sua permanência na localidade.

No calor do momento, surgiu nas redes sociais um vídeo onde uma médica da rede pública aparece desabafando todas as misérias do setor, imprecando furiosamente contra o governo, que ficou como único culpado na história. Você está certa, colega trabalhadora, ninguém discorda de sua raiva frente à impotência de uma máquina que se recusa a funcionar. Mas você sabe que a situação é ainda pior graças a muitos de seus colegas de profissão que também se negam a cumprir com suas obrigações – como os que a abandonaram sozinha naquela noite em que te filmaram. O que não se pode fazer é pegar uma exceção e promovê-la a regra. Há sim péssimos médicos no serviço público. Há muitos que mal vão ao trabalho, preferindo atender na iniciativa privada no mesmo horário de seu expediente no hospital do governo. Mas claro que eles não serão punidos. O conselho de medicina é deveras conivente com seus componentes, quer tenham cometido erros médicos, quer tenham faltado com a ética, quer tenham sido desumanos.

Enquanto nada se decide, os males seguem devastando a população mais pobre, esquecida em seus grotões país afora. Muitos contam com a sorte de serem agraciados pela boa vontade de voluntários que surgem de repente e magicamente vão embora, deixando-os com o sentimento de como seria bom se pudessem dispor de alguém que os pudesse atender no sofrimento eterno a que estão predestinados.


Para saber mais sobre a importação de médicos, clique aqui.

quarta-feira, 10 de julho de 2013

A "cura" gay


A história de uma proposta de decreto, ativistas radicais, povo ignorante e mídia manipuladora.


Que o Brasil é um país onde as pessoas não gostam de ler todo mundo sabe. Que o Brasil é um país onde a maioria dos que leem não consegue entender nada também não é novidade. Agora também se estabeleceu que aqui é um lugar onde não se precisa ler para tomar algo como verdade ou não. Basta ouvir um boato – nem sequer oriundo de entidade supostamente idônea – que automaticamente ele é tomado por verdade, não importando suas implicações. O projeto de decreto legislativo que ficou conhecido como “cura gay” é o caso mais notório disso.

É curioso notar que a imensa e esmagadora maioria dos que se declararam contra a proposta de decreto legislativo 234/11 simplesmente não a leu. Alguns a atacaram simplesmente porque os outros assim procederam (“ora, se todo mundo está fazendo, então deve ser o certo!”), já outros o fizeram acreditando tratar-se de uma causa justa – mas desconhecendo seu conteúdo. Mas havia o perigoso grupo dos militantes. Esse grupo, muito frequentemente, não está interessado em ser justo ou em debates saudáveis. Eles tão somente vão de encontro a tudo que cite o nome de sua bandeira, sem qualquer análise ou chance de defesa pela outra parte. Sem respeito mesmo. Consideram-se donos de toda a verdade.

É fácil dirimir qualquer dúvida – e todo o engodo que houve por detrás desse ativismo fanático – a respeito do projeto. Basta lê-lo e ler as seções da Resolução 1/99 do Conselho Federal de Psicologia (CFP) às quais ele faz referência. Mas, antes disso, deve-se dizer algumas verdades. Primeiro: esse projeto não foi elaborado pelo deputado Marco Feliciano, como quis fazer crer o grupo do contra. Ele (o projeto) é de autoria do deputado João Campos. Marco Feliciano, na qualidade de presidente da Comissão de Direitos Humanos e Minorias da Câmara, apenas o colocou em votação (e, diga-se de passagem, ele não votou nem contra nem a favor, pois quem ocupa esse cargo é isento de votar). Segundo: o projeto não afirma que homossexualidade seja doença, não institui métodos de cura para homossexuais, nem conclama os psicólogos que o façam. O que o projeto pretende é sustar (suspender, anular) um parágrafo e um artigo de uma Resolução do Conselho Federal de Psicologia que proíbe os profissionais de oferecer algum tipo de tratamento para mudança de orientação sexual. Vejamos o que diz o projeto:

Art. 1º Este Decreto Legislativo susta o parágrafo único do Art. 3º e o Art. 4º, da Resolução do Conselho Federal de Psicologia nº 1/99 de 23 de Março de 1999.
Art. 2º Fica sustada a aplicação do Parágrafo único do Art. 3º e o Art. 4º, da Resolução do Conselho Federal de Psicologia nº 1/99 de 23 de Março de 1999, que estabelece normas de atuação para os psicólogos em relação à questão da orientação sexual.
Art. 3º Este decreto legislativo entra em vigor na data de sua publicação.

Agora, seguem os trechos citados da Resolução do CFP:

Art. 3° – os psicólogos não exercerão qualquer ação que favoreça a patologização de comportamentos ou práticas homoeróticas nem adotarão ação coercitiva tendente a orientar homossexuais para tratamentos não solicitados.
Parágrafo único – Os psicólogos não colaborarão com eventos e serviços que proponham tratamento e cura das homossexualidades.
Art. 4° – Os psicólogos não se pronunciarão, nem participarão de pronunciamentos públicos, nos meios de comunicação de massa, de modo a reforçar os preconceitos sociais existentes em relação aos homossexuais como portadores de qualquer desordem psíquica.

Com algum exercício de leitura e raciocínio, podemos concluir que tal projeto passa longe de ser uma proposta de “cura gay”. Porque a mídia e os militantes o associaram a esse nome ninguém sabe. Mas pegou. Uma procissão de defensores de minorias pulou, gritou, acusou, criticou, xingou, esbravejou, achincalhou, entre outros verbos virulentos, só não fizeram uma coisa: ler a proposta. Os que leram não quiseram entender, ou decidiram continuar no grupo do contra só porque é mais divertido. O texto é claro ao não se opor à primeira parte do parágrafo terceiro, que posiciona os psicólogos contra a ideia de que homossexualidade seja doença. Esse mesmo parágrafo os impede de tratar homoafetivos contra sua vontade. Epa! Isso quer dizer que, caso este procure, por livre e espontânea vontade, tratamento para mudança de conduta sexual o psicólogo pode orientá-lo nesse sentido? Atualmente, não (porque, de acordo com o CFP, não é possível mudar de orientação sexual). E é justamente isso que o projeto de lei pretende permitir.

Ora, e por que alguém que sente atração sexual por pessoas do mesmo gênero procuraria ajuda de um profissional da mente e do comportamento? Por diversos motivos. Ou será que a orientação sexual é algo tão sublime a ponto de todos se sentirem confortáveis e livres de angústia ou insatisfação? Claro que o tema é polêmico e discutível, longe de ser simples. Mas o dia em que qualquer ramo da ciência colocar uma pedra sobre qualquer assunto, tachando o conhecimento sobre ele definitivo, pode-se desconsiderá-la como ciência. Mesmo as ciências exatas, pautadas pelo rigor dos métodos e provas, revê as limitações de seus conceitos. É o caso da geometria plana, que dominou durante séculos o universo matemático, mas se mostrou insuficiente para lidar com espaços curvos, como a forma geoide da Terra, obrigando os matemáticos a desenvolverem geometrias não-euclidianas (não sem reprimendas de alguns). Assim foi também com as leis da mecânica newtoniana, que governaram a descrição dos movimentos dos corpos durante muito tempo, mas sua aplicação no universo das partículas subatômicas não se verificou, daí surgindo a mecânica quântica – e iniciando a busca pela teoria que unificaria essas duas mecânicas. Que seria do mundo se ainda crêssemos que a Terra é chata, ou que ela é o centro do universo?

Ora, se até mesmo a Nutrição, que se parece com uma ciência exata, se mostra frágil em suas conclusões, que dirá da Psicologia, tão recente e com objeto de estudo tão intrincado como a mente humana. Em tão pouco tempo houve diversas escolas com diferentes abordagens. Já foi normal tratar loucos com descargas elétricas. Até mesmo a psicanálise, cultuada por muitos, é constantemente acusada de sua eficácia. A capitulação do CFP perante a pressão dos militantes LGBT não é nada científico. Proibir que mesmo um profissional atenda – ou se dedique ao estudo de – casos de mudança de conduta de homossexualidade não contribui em nada para o conhecimento desse campo (caso alguém ache desnecessário estudar esse fenônemo, então que se posicione também contra o estudo do universo, que parece bem menos útil e dispensa muito mais recursos). Muitos psicólogos afirmam que orientação sexual é inalterável (do ponto de vista terapêutico). Será? Será que o CFP conhece todos os casos do mundo a ponto de fazer tal afirmação? Isso parece mais prepotência anunciada que ciência investigativa.

Ter predileção por fazer sexo com animais é uma orientação natural, um distúrbio ou uma fase da vida? Ter apreço em introduzir vegetais cilíndricos em orifícios do próprio corpo pode ser caso de consultório? Apetite sexual por crianças pode ser anulado? Se não, por que é crime praticar relações com elas? Coprofilia, agalmatofilia, dendrofilia... O que é expressão saudável de sexualidade e o que não é (parafilia)? O que pode e o que não pode ser revertido? Pode-se abraçar cabalmente a teoria da evolução e crer que a homossexualidade é tão boa quanto a heterossexualidade? Quem pode legislar sobre essas questões e como se processa a resposta a elas? Para tratar tais colocações há que se propor testes, analisar casos, investigar cientificamente, e isso não inclui atender a ordens de comando de ativistas de qual causa seja.

Mas o mais impressionante na celeuma em torno da “cura gay” é que pessoas instruídas, que citam filósofos quando se engajam em suas causas, defensores da justiça, que demonstram idoneidade, simplesmente se omitiram no caso, deixando grassar a ignorância e o maniqueísmo dos militantes, que se negam a discutir sobre uma base racional de argumentos (ou pior: juntaram-se ao coro dos revoltosos mesmo sabendo ser extremada suas atitudes). Muitos trocaram o debate saudável e discussão da verdade pelo receio de ver sua imagem associada ao deputado Marco Feliciano, que também é pastor. O autor do projeto, João Campos, também é pastor evangélico. Aquelas pessoas tão ativas politicamente, que viviam a criticar a mídia pela sua manipulação, preferiram deixá-la espalhar livremente a distorção do projeto de lei, aproveitando o clima de hostilidade para com os deputados-pastores – o que torna difícil não pensar em perseguição religiosa (não faz muito tempo um padre foi excomungado da Igreja Católica por aceitar o homossexualismo, mas, estranhamente, não houve qualquer manifestação de repúdio ao fato). Antes mesmo da votação do projeto, sobravam críticas a Marco Feliciano, por declarações suas sobre assuntos polêmicos. O engraçado é que, num país supostamente livre como o nosso, onde teoricamente há liberdade de expressão, é custoso possuir qualquer opinião sobre minorias que vão de encontro ao que pensa a maioria (mesmo Clodovil Hernandes, gay assumido, foi vaiado por militantes apenas porque discordou deles). É fácil acusar alguém sobre o que se queira e negar o direito de defesa dessa pessoa, como fez a mídia brasileira. Mesmo um programa de grande audiência da televisão – que entrevistou o também pastor Silas Malafaia meses antes –, se negou a entrevistar Marco Feliciano. Medo? Do quê? De desmentimento ou de ser associado a uma figura gratuitamente indesejada?

Do fato, fica a conclusão: cada um pense duas vezes antes de falar algo sobre as minorias, mesmo que seja algo neutro. Os ativistas estão à espreita, prontos para atacar qualquer coisa que os cite, acossando até os que têm boas intenções. Além disso, eles têm as massas a seu lado. Como o flautista de Hamelin, atraem os ingênuos com manifestações hostis, levando-os aonde quiserem. Estranho é associar essa intolerância aos recentes manifestos das ruas pelo fim da opressão do povo. Que tal construir essa nova relação social baseada em uma justiça que sirva a todos, sem discriminação e de modo equânime?