Você acha que vai libertar o mundo.
Você se considera o salvador dos pobres. Você pensa que é mais
justo que todos. Você diz que me defende, mas a verdade é que nunca
te vi. Você jamais foi me visitar, jamais pisou onde moro; talvez
nem saiba o caminho para chegar aqui. Para você eu sou apenas um
bibelô, um motivo para você justificar sua luta, com a qual se
diverte, mas para mim não tem significado algum nem me beneficia.
Deixa eu te dizer uma coisa que você ainda não sabe: eu existo de
verdade! Tenho fome, sede, frio, dor, medo. Padeço necessidades.
Também tenho alegrias, orgulho, força, inteligência. É uma pena
você não saber disso.
Você prefere participar de reuniões
com seus amigos para discutir teorias de gente que viveu há muito
tempo atrás, em vez de tentar me entender. Você prefere saber o que
acontece em outros países bem longe, mas não se importa em conhecer
minha vida. Você se revolta porque há pobres no mundo, mas se
recusa a olhar em meus olhos. Você tem orgulho em expor seus pontos
de vista para todos, mas talvez tivesse mais orgulho em me ajudar a
melhorar de vida. Você adora debater com pessoas que considera
inimigas, mas por que não se juntam para de fato ajudar pessoas como
eu? Você nunca vai me compreender à distância; nunca vai saber o
que desejo nem o que preciso. Você traz modelos de soluções de
outros lugares do mundo e quer dizer que são verdadeiros aqui
também, apenas por preguiça em compreender meu universo peculiar –
aliás, acho que você não quer mesmo é ter qualquer tipo de
contato comigo.
No dia em que você decidir usar sua vida para ajudar alguém de verdade, minha gente estará esperando de braços e portas abertas. Não é que gostamos de viver assim, mas não sabemos para onde ir. Se ao menos você usasse seu conhecimento para nos guiar, em vez de se perder em discussões sem sentido... Se ao menos você e seus amigos nos ouvissem, para pensar em propostas adequadas a nossa realidade... Se ao menos houvesse alguém para nos dizer palavras de apoio e incentivo para enfrentar o mundo... Talvez nossa realidade fosse outra.
Ah! Sabe aqueles religiosos que você tanto julga? Que os critica, os humilha e os taxa de inferiores? Eles conhecem minha comunidade. Eles estão por dentro dos problemas que enfrentamos. Eles demonstram que se importam de verdade conosco, e provam isso de diversas maneiras. Em lugares onde não há regras, respeito por nada, nem consideração pelos semelhantes, eles apresentam um sistema moral que ensina a obediência e o amor ao próximo. Nos presídios, onde ninguém quer ir, eles estão lá, instando com degradados seres humanos a abandonarem uma vida de transgressões para abraçar uma vida de novas oportunidades. São as velhas senhoras, com as pernas cheias de varizes e alquebradas pela idade, que tentam convencer jovens delinquentes a retornarem as suas casas a fim de dar um fim às preocupações de suas mães. São eles que alimentam muitos famintos e confortam muitos que choram. É nas igrejas que o homem comum, que passou a vida em branco, tem incentivo para estudar e realizar algo em sua vida vazia. Mas nada disso te interessa, eu sei. Sua cartilha ensina que religiosos são maus, e você tem que obedecê-la sem questionar.
Por mais que você se esforce em um exercício mental, você nunca vai saber como é minha vida de fato. Nem nunca irá saber como é ajudar alguém. Você já teve o orgulho de tirar um jovem viciado das ruas e entregá-lo a sua mãe? Sabe o que é ver nos olhos dessa senhora a expressão de alegria? Alguma vez você já passou horas tentando dissuadir uma adolescente de quatorze anos de perder a virgindade com um cafajeste, correndo o risco de se tornar uma mãe-solteira, e depois recebeu sua gratidão e a viu casando e feliz? Já entrou em uma casa humilde e se sentiu impotente ao se deparar com rostos abatidos pela pobreza e ratos andando à vontade pelos cômodos? Já conversou com alguém que ingeria sal e água para espantar a fome? Conhece algum caso de gente que tinha bichos vivos em uma ferida na cabeça? Já viu crianças selvagens estragarem uma comemoração feita em sua própria homenagem? Sabe qual a sensação de fazer alguém voltar a estudar ou ensiná-la e ver sua alegria em passar em alguma prova? Já se sentiu derrotado ao não poder salvar alguém de ingressar na criminalidade ou no vício? Alguma vez deixou escapar para a delinquência um adolescente brilhante e cheio de vida, com um futuro promissor? Não, você não sabe nada disso, e acho que nunca sentirá essas emoções. Nunca terá um rosto ou um nome para se lembrar. Não mantendo-se à distância de nós.
Mas não lhe culpo. Entendo que é difícil para você deixar sua boa vida para vir aqui me ver. Seria muito difícil constatar que suas teorias não me servem, não se adequam, e você teria perdido tanto tempo estudando... Não lhe culpo por ter nojo de minha casa, de meus modos, de minha rua que fede. Eu mesmo não gosto, mas preciso de ajuda para sair daqui. Ajuda que não vem. Queria que um dia você parasse pra pensar e percebesse que não adianta falar sobre mim, escrever sobre mim, pensar sobre mim, sem conhecer minha realidade. Morrerei, e você nem vai saber. Morremos todos os dias. Alguns saem dessa vida; outros permanecem nela, mas todos mortos. Desculpa te encher com isso, se atrapalhei alguma leitura sua, mas precisava falar. Agradeço a atenção e desculpe mais uma vez.
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