Quanto de preconceito realmente havia na declaração da professora sobre um passageiro de aeroporto que julgou mal vestido?
Há algumas semanas, houve uma celeuma
nas redes sociais devido a um post de uma professora
universitária referindo-se, sem rodeios, ao modo como um passageiro
estava vestido no aeroporto. Bermuda, tênis, camisa regata,
óculos-escuros levantados para o alto da cabeça, uma lata
(cerveja?) à mão. Ela diz que o sujeito parece estar em uma
rodoviária, e não em um aeroporto. Nos comentários, algumas
pessoas – incluindo o reitor da universidade – concordam e alegam
que o glamour de voar já não
existe mais. Outra reclama que se sente incomodada quando alguém
desse porte – porque o passageiro em questão tem medidas um pouco
avantajadas – senta-se a seu lado e fica roçando o braço peludo
nela. Após o furdunço, todos os envolvidos pediram desculpas.
Mas... era para tanto?
A
enxurrada de críticas alegava que a professora criticava os pobres
que agora podiam andar de avião; que não os suportava; que se
tratava de ódio pelas classes menos favorecidas; que era preconceito
social, etc. À primeira vista, o fato realmente gera estranheza
porque parece ser uma falta de decoro. Afinal, figuras universitárias
são tidas como puras, iluminadas, praticamente inumanas (e também
por estarmos vivendo em uma época politicamente correta, onde há
uma lista de coisas que se pode ou não dizer, que nada têm que ver
com o caráter verdadeiro de algo). Mas todo fato pode ser visto sob
vários aspectos e diferentes ângulos. Para a maioria das pessoas, é
difícil deixar as paixões de lado – afinal, são tão mais
comburentes – e fazer uma análise fria dos fatos; mas esse é o
melhor caminho para não gerar injustiças. Se lermos atentamente os
comentários da foto publicada pela professora, notamos facilmente o
seguinte: em nenhum momento foi citada a condição social do rapaz.
O que estava em foco era o modo como estava vestido. Ora, então de
onde surgiram os protestos de ódio social e etc.? Voilà!
Da cabeça dos que protestaram, o que dá a entender que quem tem
preconceito são os próprios (eles afirmarão que o preconceito dela
pelos pobres é implícito).
Tudo
bem, concordo que não é tão simples. Mas façamos um esforço. De
fato, voar já foi um grande evento. Havia almoço, expectativa,
conforto, etc. Ou seja, glamour (eu
mesmo já li isso em uma crônica publicada em revista de grande
circulação, escrita por uma redatora saudosista). São tempos idos.
As empresas tiveram que baixar o padrão de atendimento (tirando o
almoço e o conforto) para poder sobreviver no mercado. Com essa
medida, os preços baixaram e os voos se popularizaram, tornando-se
acessíveis ao público das classes C e D. Por outro lado, a malha
rodoviária interestadual sempre foi – e ainda é – a opção dos
menos abastados. Agora retomemos o personagem da foto. Por que ele
seria passageiro de uma rodoviária e não de um aeroporto? Devido a
sua indumentária. Ponto. Mas o que exatamente isso traduz?
Por
um lado, podemos pensar que a afirmação sustenta que todos os
pobres se vestem de maneira extremamente informal – ou de mau
gosto, dependendo do ponto de vista. Bem, quanto a isso posso falar
com propriedade, dado que nasci e me criei na periferia. A maioria
dos pobres gosta de se arrumar para ir a lugares como bancos, igrejas
(principalmente), escola ou universidade, cerimônias sociais, etc –
afinal, ser pobre e desarrumado já é demais, pensam. De uns tempos
para cá isso está mudando, em parte devido à influência do modo
casual de se vestir da própria classe média – lembro-me que me
espantei quando vi alguém usando sandália de dedo (bem como bonés)
na universidade e em shoppings. Logo, se a frase expressa esse
sentimento, creio ser por desconhecimento de causa.
Por
outro lado, a frase pode ter se baseado em experiência pregressa, e
não em suposição ideológica. Talvez quem relacionou o modo de
vestir do homem com os tipos que se veem em rodoviárias o tenha
feito a partir de suas experiências – poucas, talvez – nesses
lugares. Por que não? Nunca saberemos. Também nunca saberemos a
real intenção da professora (o que sabemos é que a formalidade no
vestir em nossa sociedade está mudando de modo geral – e os mais
velhos não veem isso com bons olhos).
Mas o
certo é que houve, isso sim, uma grande parcela de pessoas que, a
partir da foto do rapaz, automaticamente o julgaram pobre; incapaz de
comprar o que seriam roupas adequadas para se frequentar um
aeroporto. Pelo que entendi, essa foi a maior prova de preconceito no
caso. Jornalistas, cronistas, ativistas, internautas, todos os que
vociferaram contra a professora e seus concordantes parecem ter
imbuído em si o germe do preconceito e da hipocrisia reinantes no
Brasil. O tema do ódio entre as classes sociais – nos sentidos
alto-baixo e baixo-cima – é digno de nota e deve ser tratado com a
atenção que se exige, mas o fato ocorrido descredenciou os
argumentos simplesmente por se basear em suposições
preconceituosas dos próprios “defensores” das classes
desfavorecidas (e eu duvido que haja tanta gente a favor dos pobres
por aqui).
Isso
me lembra um outro fato, ocorrido há poucos anos, também de
auto-denúncia. Um cantor negro nacional, junto com mais dois
participantes igualmente negros e famosos, gravaram um clipe onde
participavam coadjuvantes fantasiados de macaco. Automaticamente o
artista foi acusado de racismo, mesmo sendo negro. Na cabeça dos
críticos, era uma associação clara entre a etnia negra e os
primatas. Mas o fato é que essa associação era clara e direta
apenas em suas cabeças. Nem a música, nem os gestos, nem o fato
gritante da própria cor dos participantes indicava isso. O cantor
teve que dar longas explicações a respeito, apenas para explicar o
óbvio: que não era racista.
Parece-me
que o caso do passageiro do aeroporto é apenas uma nova versão
desse outro, com alguma complexidade adicional. Um comentário
pessoal, de uma visão pessoal, na leitura de quem busca acusar a
todos de sofrer de seus próprios preconceitos, como que para
livrar-se um pouco de sua culpa (uma catarse), pode gerar muito ruído
por nada.
PS: parece que o
passageiro em questão na verdade é dono de um escritório de
advocacia; acabara de desembarcar de um cruzeiro e usava roupas leves
devido aos comentários de que estava quente na cidade onde mora.
Prometeu tomar as medidas legais cabíveis em relação aos
envolvidos.
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