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segunda-feira, 9 de junho de 2014

Abaixo a mulher mulherzinha!

A despeito de todas as conquistas do movimento feminista, esse avanço não tem chegado integralmente a todas as esferas que cercam a vida da mulher. O lado profissional, que é sabido ainda não ser plenamente igualitário*, talvez tenha apresentado, por incrível que pareça, mais avanços que o lado sentimental. Mesmo que haja aqui e ali exemplos de mulheres que seguem suas vidas sem se importar com regras sociais originadas em séculos passados, não são poucas as que ainda as seguem e, pior, as defendem – inclusive muitas bem-sucedidas profissionalmente e de elevado nível cultural. 

Libertar a mulher, hoje, passa necessariamente por afastá-la da ideia do amor romântico como o conhecemos. Quantas não desperdiçam suas vidas em busca de um “príncipe” que trará sentido a suas vidas? Quanta energia e esforço não é perdido perseguindo esse ideal quase utópico? A farsa da idealização de um parceiro serve apenas para encaminhá-las ao sofrimento. De tão convencidas que são por essa ideia, dão mais importância à relação que ao companheiro em si. Elas criam uma máscara e saem em busca de alguém que a use. Dessa forma, ignoram quem essa pessoa realmente é, com suas virtudes e, principalmente, seus defeitos. Quando a euforia inicial do romance passa, e finalmente enxergam quem os parceiros realmente são, se desesperam por terem criado para si uma ilusão que lhes tomou tanto tempo – já que vislumbram os romances como investimento.

Se as mulheres são vistas como inferiores por muitos homens, é simplesmente porque muitas assumem tacitamente esse papel. Condicionam sua felicidade a um relacionamento. Se não estão em um, sentem-se infelizes e fracassadas. Insistem em relações desastrosas porque acham que nunca irão encontrar outra pessoa. Viver um grande amor é o principal objetivo de suas vidas, atrapalhando muitas vezes que foquem em outras questões, como estudos e profissionalização. Realizam sexo ultrajante pela simples obrigação de uma relação infeliz – e preferem isso a uma noite de prazer descompromissado onde há respeito mútuo. Tem-se que destruir a imagem da mulher incompleta, que necessita de um homem a seu lado para ter um sentido na vida, do homem que tem que pagar sua conta e sustentar a casa. Da princesa que precisa ser resgatada porque não consegue fazer nada sozinha. 

É preciso jogar fora o papel da mulher coitada que tem que esperar o homem vir até ela. Da mulher que envia mensagens secretas às nuvens na esperança de que os homens pelos quais se interessa as interpretem. Não à toa os homens de caráter duvidoso se saem bem no quesito número de conquistas. Como não têm escrúpulos, atiram-se à tarefa do galanteio sem considerar quaisquer consequências. E, uma vez que as mulheres estão à espera de que alguém lhes venha falar, consideram que eles são verdadeiros apenas por isso. Iludem-se e voltam a iludir-se, repetidas vezes, criando a partir de experiências ruins ideias deformadas sobre todos os homens. Muitas preferem viver infelizes e frustradas a tomarem uma iniciativa. Preferem permanecer na comodidade de seus lugares, experimentando apenas as oportunidades que lhes chegam, em vez de abandonarem essa posição limitante e ampliar as possibilidades de boas experiências.

Para libertar a mulher, nesse nosso século, temos de quebrar a promessa da certeza do amor eterno a qual todos têm direito – mas pouquíssimos encontram. Temos que explodir a condição da mulher que abre mão de sua vida, se limita, se anula, mente para o parceiro e para si mesma a fim de fazer um relacionamento dar certo. Da mulher que assume todas as tarefas e responsabilidades do lar sem exigir ou consentir que o marido tome parte nelas. Que precisa de um divórcio para compreender que ainda está viva, que não existem contos de fadas e que tem à disposição mais escolhas do que imagina. Abaixo a mulher que se humilha, que se deixa agredir – física ou psicologicamente –, que critica as que tentam quebrar esse paradigma. Fora com a mulher que pecisa de falsas juras de amor para se entregar ao prazer das carícias; que dissemina que sexo só interessa ao homem; que se sente depravada ao fazer sexo casual; que pede desculpas por ser “oferecida”. Desfaça-se a ideia de que amor, paixão e sexo se confundem. Que se ponha um fim no número de mulheres que fazem sexo forçado em relações estáveis mais do que no meretrício. Sem isso, outras conquistas têm sua importância reduzida. Essa mudança deve partir do interior de cada um – homens e mulheres –, senão corre-se o risco de termos uma sociedade onde o avanço das mulheres não passa de teatro. Esses mitos é necessário derrubar. 


*E aqui é necessário fazer um adendo: não conheço bem como essas pesquisas são conduzidas, mas desconfio de que muitas chegam a conclusões sobre diferenças de gênero no âmbito laborativo a partir de confusões estatísticas, seja de amostragem, seja de interpretação de resultados.

sexta-feira, 25 de abril de 2014

Fazer o certo


Uma alegação que se tem feito largamente desde que a psicologia caiu no gosto popular é que adolescentes fazem estripulias porque não conseguem avaliar a consequência de seus atos. Ou seja, não têm discernimento do que é certo ou errado, correto ou impróprio. Em décadas anteriores, jovens nessa idade tinham responsabilidades dentro de casa, e cedo eram classificados como adultos, casando-se ou assumindo atribuições dessa fase da vida. Eles eram cobrados pelo que se esperava deles e arcavam totalmente com as consequências de suas escolhas, que não raro eram tomadas sem qualquer auxílio dos pais ou pessoas mais experientes. Algumas vezes tais decisões eram acertadas, em outras, não. Mas qual das duas gerações tinha melhores noções de certo e errado?

A verdade é que ambas estão em condições de igualdade, talvez com ligeira vantagem de uma ou outra. E isso por um motivo muito simples: as pessoas, não importa em que época, sempre sabem como devem proceder (a ética kantiana se baseia nisso). Cumpre esclarecer que não estamos tratando de decisões projetadas para o futuro, como que profissão escolher ou onde morar. Remetemos aqui a como agir em determinados lugares e frente a determinadas situações. Por exemplo, no trabalho, devemos fazer o serviço bem-feito, não importa a situação; em casa, devemos ajudar nossos pais ou cônjuges; devemos respeitar nossos semelhantes sempre; devemos ser justos a qualquer custo e ajudar a quem quer que precise. Essas são recomendações gerais que todos conhecemos, julgamos corretas, mas nem sempre as pomos em prática. Mas por quê?

Não sei se é possível responder de forma objetiva a essa pergunta, mas há alguns possíveis fatores para tal ocorrência. Talvez um traço de rebeldia latente que reside em todos nós, de ir contra as regras, mesmo as boas e úteis. Talvez um egocentrismo avassalador que nos impede de ver o outro como alguém que nos afeta e que é afetado por nossas ações. Talvez uma carga transcendental que paira sobre fazer o certo, que nos impele ao caminho mais fácil e curto do desvirtuamento. Talvez a inexorável força que nos leva a seguir os passos da maioria, não importa quais sejam. Talvez uma maldade natural encerrada em nossa essência de ser humano. Ou quem sabe simplesmente preguiça de agir quando é mais cômodo ficar estagnado. Seja lá qual for a resposta, o fato é que sempre sabemos como deveríamos agir, mas muitas vezes não o fazemos.

Certa feita ouvi por acaso um discurso moral inspirador vindo de uma fonte muito improvável: um jovem marginalizado, dado a bebedeiras – possivelmente também a drogas ilícitas –, vadiagem e pequenos delitos. Em sua fala, distribuía conselhos e admoestações a todos: que as crianças ajudassem as mães, que as pessoas se entendessem, que os jovens trabalhassem visando a uma vida melhor. Seria comovente, caso ele mesmo não pusesse em prática nenhuma de suas considerações. Mas isso serve para mostrar que mesmo nas piores condições sociais, as pessoas sabem os deveres que se devem praticar.

Isso vem de encontro ao que pensam e proclamam alguns ativistas sociais, pois alegam que criminosos e delinquentes agem sem consciência de seus atos, em revolta cega contra a sociedade. A verdade é que bem poucos (se os há) não sabem que estão agindo errado, embora alguns hajam de fato em tom de inconformidade com sua posição social. Por mais que a um garoto da periferia faltem boas referências de pessoas bem-sucedidas que seguiram por caminhos justos, poucos têm convicção de que enveredar pelo crime é o certo a se fazer. A maioria despreza mesmo uma vida honesta por ser dura e possuir benefícios de longo prazo, talvez sem grandes recompensas materiais.

Quantos de nós já não nos pegamos dando sermão em outrem, aconselhando ou cobrando, mesmo sabendo que não agimos devidamente quando estavámos em situação semelhante? Bom seria se usássemos dessa empatia ao avesso não para lembrar de como deveríamos ter agido, mas para imputarmos a nós mesmos o modo correto de proceder em situações delicadas e específicas. Se o primeiro passo para a mudança ou correção é reconhecer o erro, então o que falta para construirmos uma sociedade melhor, se já conhecemos também as soluções?


quarta-feira, 9 de abril de 2014

Minha idiossincrasia


Passei toda minha adolescência me autodeclarando niilista e iconoclasta. Adorava discordar das unanimidades e escarnecer dos ídolos adorados por todos. Tinha verdadeiro prazer nisso. Nunca recebendo impressões dos outros, sem ter contato com a crítica especializada, sempre tirava minhas próprias conclusões a partir de minhas observações. Não tinha muito acesso a informação, de modo que, ao ouvir um cantor ou banda (invariavelmente sem saber seu nome), realizava uma audição totalmente isenta, livre de qualquer dado que viesse a tendenciar minha opinião crítica. E o que gostava ainda mais era descobrir antes de todo mundo um talento, alguém ou algo que viesse a fazer sucesso ou ser bem conhecido. Isso me enchia de orgulho, pois comprovava meu faro para talentos brutos ou ignorados. Na mesma medida, rejeitava alguém ou algo que estava na boca do povo. Sentia verdadeira aversão, antes mesmo de conhecer o objeto de veneração pública. Só depois de tal coisa cair no esquecimento é que me aproximava e a examinava bem, e, se fosse o caso, dava meu crédito.

Não sou mais adolescente, mas ainda guardo comigo essa característica – um pouco esmaecida, talvez. Absorvendo conhecimento de diversas fontes, passei a admirar certos ídolos baseado no que descobri a respeito deles (ou de experiências que tive) e também abandonei o espírito do niilismo (por julgá-lo uma tentativa pouco prática de solução de problemas). Continuo partidário de minhas descobertas e avaliações, sentindo grande satisfação quando algum crítico reconhecido corrobora minha nota preliminar. Sim, ainda sinto repúdio em relação à celebração massiva de algo. E creio que essa última característica tem gerado uma imagem incongruente de mim mesmo perante os que acompanham meus posicionamentos à certa distância.

Estamos vivendo tempos de ativismo social intenso (ainda que fortemente virtual e não necessariamente sincero, dado que virou algo cult). Jovens idealistas bradam contra as desigualdades do mundo, suas injustiças, seus carrascos desmascarados. Escolhem alvos, bandeiras a serem levantadas bem alto a fim de chamar a atenção para suas causas. É bem verdade que muitos que se dedicam à tal atividade estão apenas gastando a energia dos hormônios juvenis. Quem os encontrar daqui a alguns anos não os reconhecerá, incrustados que estarão na realidade do sistema outrora pérfido. Não simpatizo com seus exageros, nem com seus modos, nem com sua incontinência. O problema é que também sou contra algumas coisas que eles atacam. Por exemplo, tenho verdadeira abominação por pessoas que julgam alguém pela cor de sua pele. Também não concordo que as mulheres não sejam equiparadas aos homens em diversos aspectos. Tenho combatido ferozmente tudo que chega a mim em relação a isso e outros pontos, mas algo me impede de subir num banco e gritar contra isso aos quatro ventos.

Esse empecilho é o barulho que vem de tanta gente eufórica tentando mudar o mundo a qualquer preço, empurrando possíveis aliados e passando por cima de quem para pra pensar um pouco se estão indo na direção certa. Preferia ser eu o primeiro a escancarar os problemas inúmeros desse país, de nossa sociedade. Publicamente defender os que sofrem, acusar os que os maltratam. Fazer conhecidas as pequenas classes desfavorecidas que ninguém se importa em enxergar. Mas antes que minha voz pudesse ser ouvida por muitos eles vieram e tomaram a dianteira. Agora falta-me assunto. Vez em quando vocifero contra eles, como que para vingar-me. Irrita-me saber que muitos não têm real compromisso com a causa. Preocupam-se demasiado com o discurso, mas pouco com as ações. É como um irmão que toma o brinquedo de outro sem o objetivo de se divertir.

É por isso que evito discursar sobre problemas sociais nos meios de difusão. A fim de não me confundirem com um deles. Eu sei, parece mesquinhez, mas é uma força maior do que eu. Quem é de meu convívio próximo sabe pelo que luto, mas quem toma conhecimento de minhas causas pelo que exponho deliberadamente para o mundo pode ter uma ideia equivocada de minhas ideologias. Como todo cidadão oriundo da periferia, detesto a polícia. Detesto patrões inescrupulosos. Detesto as classes abastadas que ridicularizam os trabalhadores pobres. Impreco contra o governo, a justiça, o transporte público, os médicos que nunca trabalham, os professores que nunca dão aulas. Somos iguais, mas diferentes.

É esse sentimento estranho que me faz ser um paradoxo: um iconoclasta conservador (sim, o sistema está falido e eu o repudio, mas isso é culpa de seus preceitos ou das pessoas que o puseram a perder?). Defendo a demolição de figuras e procedimentos arraigados, desde que não seja realizado por uma trupe barulhenta e por vezes supérflua. Enquanto zoam para os holofotes, sigo fazendo minha pequena parte nos bastidores, impossibilitado de elevar minha voz a fim de não me ver no meio deles. Às vezes tenho até vontade de me voltar contra as causas que apoiam, mas aí paro e me conscientizo que as causas nada têm que ver com seus arroubos. Foram apenas tomadas de reféns. Não sei se um dia eles se calarão, mas, se acontecer, estarei pronto para erguer a minha voz.

segunda-feira, 31 de março de 2014

Sugestão de leitura


Título: O Som da Revolução: uma História Cultural do Rock – 1965-1969
Autor: Rodrigo Merheb
Editora: Civilização Brasileira
ISBN: 9-788520-010556







À exceção dos clássicos da literatura, livros brasileiros são invariavelmente mal escritos. E isso nos dois aspectos possíveis: forma e conteúdo. Reflexo de uma cultura de pouca leitura e ódio ao idioma, realizado no minimalismo preconizado por estudantes e alguns professores, o discurso é fraco e as palavras são mal escolhidas. No quesito teor, o desapego a detalhes e a ojeriza a teorias produz um manual técnico com fins práticos muitas vezes inútil; um maço de poucas páginas ou um calhamaço não coeso que quase nada agrega a quem o ler e pouco faz diferença em relação a outras obras do mesmo assunto. Que dirá causar impacto. Por esse motivo é que causa grata surpresa quando nos deparamos com uma obra produzida em solo nacional que prima pela boa escrita, tem uma narrativa envolvente e é pródiga em detalhes que fazem toda a diferença.

O Som da Revolução: uma História Cultural do Rock – 1965-1969, de Rodrigo Merheb, é leitura obrigatória para aficionados, simpatizantes e curiosos do rock, e altamente recomendada para interessados em geral, ignorantes sobre o assunto e inimigos do estilo. A proposta do livro está expressa no segundo subtítulo: a decisão de cobrir um período curto (mas prolífico) da história do rock revela a despretensão do autor em escrever uma malfadada cobertura de todos esses anos do estilo musical, ao mesmo tempo que, dada a extensão de suas quase quinhentas páginas, mostra que esses poucos anos são narrados com riqueza de detalhes. O autor escolheu dois festivais, um para início e outro para encerramento da obra, e um terceiro para o recheio: Newport e Altamont, escoltando o inevitável e mítico Woodstock.

A escolha do festival de Newport como abertura deve-se ao fato de ter sido nele que Bob Dylan, nome de grande expressão do folk americano, tocou pela primeira vez em público sua guitarra elétrica, escandalizando a audiência ali presente. Marcava assim o início da invasão do rock a áreas até então livres de sua influência. Já Altamont foi o palco da desordem que anunciou que a paz e o amor talvez fossem incompatíveis com os ideais de uma geração que clamava por músicas tão agressivas. No meio deles, por sua vez, Woodstock, representação maior da cultura hippie e ponto de parada obrigatória a qualquer história do rock que se preze, pouco teve de coletividade, espontaneidade, organização e, por incrível que pareça, música. Mas, para maiores explicações, é necessário ler o livro.

O autor não se limita a despejar datas, nomes e acontecimentos, mas constroi um panorama da época que contextualiza o leitor no espírito e ânimos daquele tempo, trazendo à tona a motivação dos músicos e consumidores do rock de então. As histórias dos personagens são bem entrelaçadas, de modo que nomes não surgem ou desaparecem do nada. Todos vêm e vão com um propósito, e nunca com uma história própria, desconectada das demais. Uma deficiência de livros de história, sejam propedêuticos, acadêmicos ou de entretenimento, é dar a impressão de que um determinado personagem existiu sozinho durante seu tempo. Merheb não cai nessa armadilha, indicando o entrosamento, as influências, as desavenças e tudo o mais que viveram juntos os protagonistas e coadjuvantes das cenas descritas no livro. É importante destacar que o autor não se deteve aos artistas, mas desenha também o retrato dos empresários e qualquer um que tenha desempenhado alguma influência no meio. Ao retratar muito mais que seus feitos – suas histórias de vida, desventuras e projetos –, traz o personagem para perto do público, que o encara antes como figura humana que histórica.

Mas um dos principais méritos do livro – e que poderia também ser um tiro pela culatra – é emitir ligeiras reflexões sobre o fenômeno rock, principalmente sobre a cultura hippie: seu impacto, sua filosofia e seus membros. O modo como mostra o tão combatido sistema capitalista de braços dados com o movimento que pregava a revolução, e por fim a total posse do novo ritmo pelos empresários que o empacotaram para pôr em prateleiras, desperta no leitor a curiosidade de pensar sobre o caráter dos movimentos de contracultura. Até onde se sustentam? A confissão, anos depois, de ídolos da rebeldia niilista de que estavam arrependidos de seus dias de militância consiste em um grito de alerta para aqueles interessados em mudar o sistema (é impossível implodir o sistema ou de fato seus opositores obrigatoriamente combaterão por um curto período de tempo de suas vidas? O sistema é inexorável ou a motivação de seus inimigos não é sólida?). E o desvencilhamento do rock do caráter de reforma social que o caracterizou no início (tanto um como outro capitaneados por Bob Dylan) levanta o debate sobre o papel político da arte – algo tão forte no Brasil.

Outro ponto forte consiste na reiteração do autor em chamar a atenção para a comum influência do blues sobre os rockeiros sessentistas. Apesar de hoje se perder de vista, o blues foi um dos principais estilos que deu origem ao rock, onde bebiam seus jovens astros. De fato, Eric Clapton e Janis Joplin estão mais para bluseiros deslocados no espaço e tempo (e amaldiçoados pela brancura de suas dermes) do que para astros de rock. Há também no livro uma seção na qual o leitor é agraciado com indicações de quais álbuns ouvir para apreender a produção musical daquela época, de grandes nomes a quase desconhecidos. Registre-se ainda a façanha realizada por Meheb em escrever, com muita propriedade, um livro sobre a história do rock, um estilo que não se firmou muito por aqui – sobrevive em guetos, e o intitulado rock nacional não passa de uma declaração chauvinista de que não conseguimos fazer rock de alta qualidade. Por tudo isso é que Uma História Cultural do Rock desponta como um importante acervo a figurar nas estantes dos que se sentem mais vivos com o pulsar binário do ritmo que atravessou décadas e marca gerações até hoje.



quinta-feira, 20 de março de 2014

Mulher real?

De uns tempos para cá, tem se tornado comum algumas pessoas levantarem bandeiras defendendo a presença de “mulheres reais” nas propagandas. Essas pessoas alegam que as mulheres retratadas nas propagandas são irreais, impossíveis de serem encontradas nas ruas ou por aí. Isso tem surtido algum efeito, de modo que algumas empresas têm se valido de modelos de medidas mais amplas e outras “imperfeições” em cumprimento ao clamor crescente. Mas o que seria uma mulher real, afinal?

Em primeiro lugar, é necessário lembrar que tudo – de comida a lugares, de cores a texturas, passando por pessoas – que é apresentado em propagandas (televisivas ou impressas) soa falso. Isso se deve às técnicas de produção. Objetos falsos (muitas comidas são de plástico ou massa), iluminação, maquiagem, truques cenográficos, tratamento digital, uso de computador, dentre outros, são alguns recursos que conferem a aparência irreal que vimos nos informes publicitários.* Descontado esse fato, resta saber o porquê de as modelos serem irreais. Para isso, precisamos investigar o complicado fenômeno do padrão de beleza (em termos bem superficiais, cumpre avisar, e meramente baseados na concepção deste autor).

Diferentemente do que alguns idealistas possam afirmar, a beleza é um dado concreto na natureza e conta enormemente para a escolha de parceiros (por exemplo, pavões dependem da beleza de suas caudas para atrair fêmeas). Inclusive alguns estudos apontam que a região cerebral ativada pela visualização de algo belo consiste em uma região dita primária, onde também atuam sensações como a fome, a sede e o frio (qualquer homem tem certeza disso). Os seres humanos usualmente fazem distinção entre o que é agradável a seus olhos e o que não é. Alguns cientistas creditam a percepção ou ocorrência de beleza ao grau de simetria presente no assunto observado, recorrendo inclusive à razão áurea desenvolvida pelos gregos a fim de medir a quantidade de beleza presente em algo (de acordo com essa teoria, as mulheres seriam mais belas que os homens por possuírem mais traços simétricos e devidamente proporcionais – nem era necessário realizar estudos para chegar a essa constatação). Apesar disso, muitos de nossa espécie escolhem seus parceiros por outros fatores, embora não deixem de se sentir atraídos por algo que considerem bonito. E o impressionante é que o conceito do que é belo varia em relação a tempo e lugar.
O que um árabe considera uma mulher bonita pode não ser o mesmo para um europeu. O que um nativo de alguma selva africana acha agradável pode diferir do que pensa um esquimó. Mas isso não significa um cartesianismo do quesito gosto. Muito provavelmente um representante da beleza de um determinado povo seja também apreciado em outra cultura (ainda que inexista ali). E se tomarmos um indivíduo de seu local de origem para viver em outro ambiente diferente do seu, é provável que se adapte e também mude o que considera bonito. Mesmo dentro de um país, como o Brasil, nos adaptamos quando nos movemos de uma região a outra. Logo, percebe-se que não há um padrão fixo de beleza, mas adaptativo (qualquer garoto do colegial sabe disso, pois, ao final do ano, as colegas de classe que achava feias no início do período letivo parecem mais agradáveis). Bem, mas isso no que se refere às pessoas enquanto detentoras de gostos individuais, idiossincráticos. Mas há outro padrão vigente, que é o da mídia, ou, como dizem, da indústria da beleza, panfletado em revistas, propagandas e desfiles de moda.
Mas esse padrão também é variável. Na década de oitenta, até o início da década seguinte, modelos de passarela não eram magras nem altas. Eram apenas esbeltas. Cindy Crawford foi uma excelente representante do gênero – talvez a maior de sua geração. Se ela tentasse ingressar no mundo da moda hoje, seria rejeitada peremptoriamente. Isso porque o padrão aceito por esse universo mudou. Hoje, mulheres magérrimas são consideradas bonitas, exemplos a serem seguidos, deixando como legado uma legião de jovens adolescentes bulímicas e anoréxicas. Qual padrão imperará nos próximos anos não se sabe, mas decerto o atual cadulcará, como ocorre em todas as áreas do conhecimento e artes. Mas há um fator a se levar em conta: esses dois padrões de beleza (o dos indivíduos e o da indústria) não coincidem. No máximo possuem alguns pontos de interseção.
Posso afirmar, como homem, que não somos influenciados pelos padrões “ditados” por empresários do mundo da moda – ou somos muito pouco, o que se daria em um contexto global da sociedade, e não diretamente através da mídia (por exemplo, Gisele Bündchen nunca será uma musa para nós). O problema reside no fato de as mulheres darem mais importância ao que a indústria diz do que ao que os homens falam. Conheço mulheres que cansam de ouvir que são lindas, mas se sentem inseguras porque não estão em concordância com os ditames de empresários da moda que nunca conhecerão e que amanhã abraçarão outro padrão de beleza arbitrário. Muitas mulheres se ressentem por não serem magras o suficiente, ou não terem cabelos lisos e compridos, ou olhos claros, ou ainda a pele alva. Mas a boa notícia é: para o público que realmente importa (os homens que se relacionarão com elas), não faz diferença. Não será uma propaganda que irá mudar ou moldar o que achamos de uma mulher. E mais: há homens com todos os tipos de gostos. Há preferências por muito magras, magras, muito gordas, apenas gordas, atléticas, roliças, baixas, altas, loiras, morenas, negras, ruivas, asiáticas, anãs, até mesmo grávidas e deficientes1. É difícil encontrar uma mulher sequer que nunca tenha sido galanteada – e é fácil supor que para cada pretendente que expressa sua admiração há no mínimo um que não o faz, o que nos leva a deduzir que o número de admiradores é no mínimo o dobro do que ela supõe.
Mas há uma verdade inconveniente que precisa ser dita: as “mulheres reais” das propagandas politicamente corretas não são consideradas muito atraentes pela maioria dos homens – preferimos as fornidas. E isso não é resultado de efeito propagandístico. É que há tantas mulheres incríveis circulando por aí que não há porque considerarmos nem as magras dos anúncios nem as cheias “normais” como as mais desejáveis. Qualquer passeio em um shopping, uma visita a uma praia, uma hora sentado em um banco de praça, um passeio pelo centro da cidade, uma ida a uma boate revela que não há razão para afirmar que não haja mulheres reais lindas. Embora não sejam a maioria, o número está longe de ser ínfimo, embora varie de região a região. Há lugares mais generosos e outros menos. Mas também há homens mais criteriosos e outros menos – alguns, para a felicidade de muitas, bem menos. E, lembrando que o padrão individual de beleza é adaptativo, restam poucos motivos para bradar contra tais propagandas.
O que não faz sentido é acusar os homens de preconceito quando não achamos uma determinada mulher bonita. Não há uma sala de controle em nosso cérebro onde acionamos botões e alteramos nossas preferências. O que hoje achamos belo é resultado de anos de experiências e sensações, portanto, está muito longe de ser voluntário – como também não o é a orientação sexual. Talvez com bastante exercício mental seja possível lidar em algum grau de controle com esse mecanismo, assim como monges budistas podem atear fogo a seus corpos e não sentirem dor. A questão é: até onde se pretende ir com isso? O benefício esperado compensa o esforço?
Reitero minha posição: se as mulheres ouvissem mais os homens do que a mídia, não teriam tantos problemas. Ao contrário do que se imagina, os homens não mentem nesse quesito – no máximo, exageram. Eles nunca elogiarão uma mulher que de fato não considerem atraentes2 (salvo em jogos fúteis de conquistas entre eles). Mas, como elas mesmas confessam, as mulheres se arrumam para a avaliação das outras mulheres, e não de seus companheiros – que invariavelmente as acharão muito bem produzidas, não importa o que usem. Outro agravante é que não têm consenso quanto ao conceito de magreza. Uma mulher perfeitamente em forma, visivelmente frequentadora de academia, com IMC dentro da faixa normal, é considerada magra. Enquanto para elas há apenas duas classificações quanto ao índice de tecido adiposo (gorda ou magra), para os homens há uma gradação de pelo menos dez níveis, onde a preferência deles é distribuída ao longo de todos esses segmentos.
Não vale o esforço de destruir a mídia –  ela sempre existirá. Cabe ouvi-la menos. A felicidade está mais perto do que se imagina.

* Vou contar um caso pessoal para ilustrar o fato. Quando estava no ensino médio, um grupo de meninas fez uma gravação em estúdio simulando um noticiário, como trabalho de uma disciplina. Todos os garotos ficaram surpresos em perceber como a maquiagem melhorou a aparência de uma das componentes – que nunca foi assunto em nossos comentários. Vale ressaltar que isso se deu em um estúdio de segunda classe de uma cidade pequena; que dirá do resultado obtido em  grandes estúdios.

1Em um episódio do seriado Dr. House, o médico protagonista convence uma paciente a encarar com naturalidade a cicatriz de uma cirurgia, alegando que será fácil encontrar homens que se interessem por tal característica.

2O que pode acontecer é o contrário: devido a fatores externos, alguns homens podem mentir, dizendo que não acham uma determinada mulher bonita (por exemplo, por ela ser empregada doméstica). Mas mesmo isso é raro.

segunda-feira, 17 de março de 2014

A mulher-prêmio

“– Tem que me merecer!”

Sempre achei essa frase estranha. E eu sei que você já ouviu alguém (muito provavelmente uma mulher) falando isso. Ela dá a entender que existem algumas condições prévias às quais um  homem deve se encaixar a fim de que a mulher aceite ter um relacionamento com ele. Creio que há duas situações possíveis que se encaixam na sentença. Uma delas diz respeito às vezes em que o homem precisa dar provas de que verdadeiramente tem interesse em manter uma relação séria com uma mulher. Isso se resume basicamente em respeitá-la, o que inclui: não traí-la (se isso é uma condição compartilhada pelo casal), cumprir acordos, respeitar sua família, não lhe esconder segredos que afetam a ambos, etc. Isso é o justo e óbvio fundamento de qualquer relação (e ocorre nos dois sentidos). Já a outra situação envolve prescrições menos afetivas. Mas que tipo de condições seriam essas? Pode haver algum risco oculto nisso?

No cenário atual da sociedade, a relação entre homens e mulheres não é muito difícil de descrever: eles vivem a correr atrás delas, e elas constantemente têm que decidir quais afastará e quais deixará chegar perto. Isso vale para relações amorosas ou não, mas aqui nos interessa apenas o primeiro caso. A decisão delas se baseia em dois fatores: algo que eles são e algo que eles fazem. No primeiro grupo há questões como se ele é bonito, se é de uma determinada etnia (negros parecem ser preferenciais), se é de fora (algumas se interessam muitissimamente por isso), etc. Já o segundo tem a ver com se ele é engraçado, se é músico (acredite, algo que conta muito), se é simpático (na acepção original da palavra, e não como eufemismo masculino para bonito), se é desordeiro (por incrível que pareça, estes fazem bastante sucesso), entre outros. Os homens que fazem mais sucesso são simplesmente aqueles que conseguem identificar o que mais agrada às mulheres e agem de acordo com esses critérios. Um momento! Isso quer dizer que eles podem agir falsamente, mostrando alguém que de fato não são? Resposta: sim!

Antes de prosseguirmos com a constatação acima, façamos uma análise de como uma mulher, hoje em dia, enxerga uma relação.

Herdada de tempos antigos, ainda está em voga a tradição de a mulher se colocar como o centro da relação. Seus pretendentes devem duelar entre si, cumprir uma lista de exigências, seguir procedimentos ditados por elas (uma espécie de cartilha comum elaborada pelas mesmas), dar-lhe atenção (e razão) sempre, etc. Para elas, a energia em escolher um dentre vários e permiti-lo fazer parte de sua vida e intimidade dispende tanta energia que deve ser vista com bastante cautela – um investimento. Uma vez em um relacionamento, usa de todas as suas forças para mantê-lo, para os olhos dos outros e para fazer jus ao trabalho de seleção do parceiro. Muitas até mesmo consideram estar sozinha uma falha inadmissível, uma falta grave. Outras sentem-se culpadas quando têm diversos parceiros casuais ou se consideram “rápidas” demais na escolha e nos avanços de intimidade em uma relação. Elas têm muito medo de escolher alguém “errado” (e não são poucos os casos de depressão e suicídio decorrentes de decepção amorosa quando se sustenta essa visão idealista). Os tempos estão mudando, mas esse ainda é o retrato de como a maioria das mulheres enxerga um romance (inclusive muitas mulheres supostamente modernas e independentes).

Esse comportamento, de tão comum, é recorrente no cinema. No filme A Rede Social, baseado em fatos reais (embora não se saiba se o fato a seguir é ou não ficcional), há uma cena na qual uma  garota tem uma noite de sexo casual com um desconhecido. No outro dia, ela julga que ele tem que lembrar seu nome, embora ela nem sequer tenha perguntado o dele – que a própria reconhece como mundialmente famoso ao ouvi-lo. Já em RED – Aposentados e Perigosos, há uma cena onde um homem deixa uma mulher em casa após o jantar, esperando que ela o convide para entrar. Como ela não o faz, ele protesta, alegando que pagou a conta e por isso deveria poder subir. Esse é um resultado possível quando se estabelece critérios como “pagar a conta” para avaliar pretendentes. Quem não quer ser tratado como mercadoria que não se ponha à venda.

É inegável que nós, os homens, achamos as mulheres incríveis. Adoramos não apenas sua beleza, mas sua feminilidade, que suaviza um mundo bruto onde existe mal. Sentimo-nos bem quando as temos por perto, não importa em que tipo de relação. Elas têm nossa atenção sem qualquer esforço, e de bom grado atendemos seus pedidos. Não é necessário esforço algum para que as tratemos assim. Gastamos grande parte de nossa energia (e, para alguns, de seus dias também) para atrair sua atenção. O fato é que, para nós, elas já estão em um pedestal, não sendo necessário que se elevem ainda mais. E é aqui que reside o problema.

Ao se imputarem o título de alcançáveis para poucos (os “escolhidos”, os que “as merecem”), elas descem os homens ao nível de um adereço, uma peça que se mostra boa o suficiente para acompanhá-las. É como não levar em conta o conjunto de qualidades individuais de cada um, valendo apenas se eles cumpriram ou não as tarefas pretendidas. Se são adequados ao rito que ditaram. E é esse o motivo de tantos homens serem falsos, como observamos no início. Já que não importa sua real conduta e caráter – basta que sigam as normas da cartilha, que façam aquilo de que gostam –, se apresentam como elas os esperam, ocultando quem realmente são, apenas para cumprir seu objetivo. Por outro lado, outra consequência é as mulheres decidirem por um homem que atende aos requisitos impostos (um “bom homem”, um homem “decente”, “de bem”), mas que não possui qualquer afinidade com a parceira. Em ambos os casos, o resultado para elas é a decepção ao constatarem que, apesar de terem dedicado tempo e energia em escolher o companheiro, fizeram uma má escolha.

Não se pode colocar homens e mulheres em planos diferentes, pois ambos são seres humanos. O que vale para um, vale para o outro: respeito, atenção, companheirismo, atração. Relações onde o homem tem que se desdobrar das mais diversas formas para agradar à companheira, sem receber atos recíprocos, são injustos e desiguais. Talvez até infelizes. Naturalmente os homens farão de tudo para mostrar a suas companheiras que as admiram, mas não faz mal que elas retribuam na mesma medida, ou quase. Mulheres não são objetos, tampouco homens o são. Os papéis dentro de uma relação podem até variar, mas são duas pessoas acima de tudo, com seus valores e particularidades. Um não é melhor que o outro. Uma mulher não é algo que se mereça, e um homem não é alguém que deva ser aprovado em testes. Suas índoles é que devem ser levadas em conta, a fim de que ambos se conheçam como realmente são e nisso baseiem suas escolhas. E é o amor que se deve buscar, e não o campeão de uma olimpíada romântica.

segunda-feira, 10 de março de 2014

Menos hipocrisia, por favor!

Quanto de preconceito realmente havia na declaração da professora sobre um passageiro de aeroporto que julgou mal vestido? 


Há algumas semanas, houve uma celeuma nas redes sociais devido a um post de uma professora universitária referindo-se, sem rodeios, ao modo como um passageiro estava vestido no aeroporto. Bermuda, tênis, camisa regata, óculos-escuros levantados para o alto da cabeça, uma lata (cerveja?) à mão. Ela diz que o sujeito parece estar em uma rodoviária, e não em um aeroporto. Nos comentários, algumas pessoas – incluindo o reitor da universidade – concordam e alegam que o glamour de voar já não existe mais. Outra reclama que se sente incomodada quando alguém desse porte – porque o passageiro em questão tem medidas um pouco avantajadas – senta-se a seu lado e fica roçando o braço peludo nela. Após o furdunço, todos os envolvidos pediram desculpas. Mas... era para tanto?

A enxurrada de críticas alegava que a professora criticava os pobres que agora podiam andar de avião; que não os suportava; que se tratava de ódio pelas classes menos favorecidas; que era preconceito social, etc. À primeira vista, o fato realmente gera estranheza porque parece ser uma falta de decoro. Afinal, figuras universitárias são tidas como puras, iluminadas, praticamente inumanas (e também por estarmos vivendo em uma época politicamente correta, onde há uma lista de coisas que se pode ou não dizer, que nada têm que ver com o caráter verdadeiro de algo). Mas todo fato pode ser visto sob vários aspectos e diferentes ângulos. Para a maioria das pessoas, é difícil deixar as paixões de lado – afinal, são tão mais comburentes – e fazer uma análise fria dos fatos; mas esse é o melhor caminho para não gerar injustiças. Se lermos atentamente os comentários da foto publicada pela professora, notamos facilmente o seguinte: em nenhum momento foi citada a condição social do rapaz. O que estava em foco era o modo como estava vestido. Ora, então de onde surgiram os protestos de ódio social e etc.? Voilà! Da cabeça dos que protestaram, o que dá a entender que quem tem preconceito são os próprios (eles afirmarão que o preconceito dela pelos pobres é implícito).

Tudo bem, concordo que não é tão simples. Mas façamos um esforço. De fato, voar já foi um grande evento. Havia almoço, expectativa, conforto, etc. Ou seja, glamour (eu mesmo já li isso em uma crônica publicada em revista de grande circulação, escrita por uma redatora saudosista). São tempos idos. As empresas tiveram que baixar o padrão de atendimento (tirando o almoço e o conforto) para poder sobreviver no mercado. Com essa medida, os preços baixaram e os voos se popularizaram, tornando-se acessíveis ao público das classes C e D. Por outro lado, a malha rodoviária interestadual sempre foi – e ainda é – a opção dos menos abastados. Agora retomemos o personagem da foto. Por que ele seria passageiro de uma rodoviária e não de um aeroporto? Devido a sua indumentária. Ponto. Mas o que exatamente isso traduz?

Por um lado, podemos pensar que a afirmação sustenta que todos os pobres se vestem de maneira extremamente informal – ou de mau gosto, dependendo do ponto de vista. Bem, quanto a isso posso falar com propriedade, dado que nasci e me criei na periferia. A maioria dos pobres gosta de se arrumar para ir a lugares como bancos, igrejas (principalmente), escola ou universidade, cerimônias sociais, etc – afinal, ser pobre e desarrumado já é demais, pensam. De uns tempos para cá isso está mudando, em parte devido à influência do modo casual de se vestir da própria classe média – lembro-me que me espantei quando vi alguém usando sandália de dedo (bem como bonés) na universidade e em shoppings. Logo, se a frase expressa esse sentimento, creio ser por desconhecimento de causa.

Por outro lado, a frase pode ter se baseado em experiência pregressa, e não em suposição ideológica. Talvez quem relacionou o modo de vestir do homem com os tipos que se veem em rodoviárias o tenha feito a partir de suas experiências – poucas, talvez – nesses lugares. Por que não? Nunca saberemos. Também nunca saberemos a real intenção da professora (o que sabemos é que a formalidade no vestir em nossa sociedade está mudando de modo geral – e os mais velhos não veem isso com bons olhos).

Mas o certo é que houve, isso sim, uma grande parcela de pessoas que, a partir da foto do rapaz, automaticamente o julgaram pobre; incapaz de comprar o que seriam roupas adequadas para se frequentar um aeroporto. Pelo que entendi, essa foi a maior prova de preconceito no caso. Jornalistas, cronistas, ativistas, internautas, todos os que vociferaram contra a professora e seus concordantes parecem ter imbuído em si o germe do preconceito e da hipocrisia reinantes no Brasil. O tema do ódio entre as classes sociais – nos sentidos alto-baixo e baixo-cima – é digno de nota e deve ser tratado com a atenção que se exige, mas o fato ocorrido descredenciou os argumentos simplesmente por se basear em suposições preconceituosas dos próprios “defensores” das classes desfavorecidas (e eu duvido que haja tanta gente a favor dos pobres por aqui).

Isso me lembra um outro fato, ocorrido há poucos anos, também de auto-denúncia. Um cantor negro nacional, junto com mais dois participantes igualmente negros e famosos, gravaram um clipe onde participavam coadjuvantes fantasiados de macaco. Automaticamente o artista foi acusado de racismo, mesmo sendo negro. Na cabeça dos críticos, era uma associação clara entre a etnia negra e os primatas. Mas o fato é que essa associação era clara e direta apenas em suas cabeças. Nem a música, nem os gestos, nem o fato gritante da própria cor dos participantes indicava isso. O cantor teve que dar longas explicações a respeito, apenas para explicar o óbvio: que não era racista.

Parece-me que o caso do passageiro do aeroporto é apenas uma nova versão desse outro, com alguma complexidade adicional. Um comentário pessoal, de uma visão pessoal, na leitura de quem busca acusar a todos de sofrer de seus próprios preconceitos, como que para livrar-se um pouco de sua culpa (uma catarse), pode gerar muito ruído por nada.


PS: parece que o passageiro em questão na verdade é dono de um escritório de advocacia; acabara de desembarcar de um cruzeiro e usava roupas leves devido aos comentários de que estava quente na cidade onde mora. Prometeu tomar as medidas legais cabíveis em relação aos envolvidos.