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domingo, 30 de setembro de 2012

Consciência Negra*

O homem-branco olha a pela alva, os olhos claros, os lisos cabelos, e declara: “Sou belo!”. Mira o negro, escuro, nariz largo, lábios intumescidos, cabelos desgrenhados, e sentencia: “És feio e bruto. Sereis meu escravo!”, como se o ato de assenhorear-se de seus semelhantes não fosse em si uma abominação vergonhosa que coloca o dominador em posição desprezível, mostrando sua vileza frente à fragilidade do escravizado, demonstrando que a beleza apenas oculta uma face monstruosa do civilizador.

Vem aqui um navio – primeiro de muitos – e despeja na terra seres estranhos: sujeitos sem família, sem vontade, sem sonhos ou esperança. Pessoas sem vida, com suas sentenças de morte assinadas por quem não tinha autoridade. O futuro incerto encontra resposta na certeza do fim trágico, abreviado pela maldade do branco dominador. Um instante e estão espalhados pelos cantos da nova terra, fazendo o serviço do branco preguiçoso e arrogante. Dor misturada com sangue produzem um grito louco de agonia e revolta pelo sofrimento sem sentido. Dia e noite chora o preto porque não consegue – e nem poderia, pois não existe – a resposta para tudo aquilo, para aquela pergunta: por quê?

Em mais uma demonstração de mau-caratismo, eis que o branco, sucumbindo ao instinto animalesco que traz consigo, toma para si as negras mulheres, e têm com elas negros filhos, enegrecendo sua raça e o futuro dos pequenos. O povo vilipendiado afinal fere o agressor: macula sua linhagem, num enxerto não sem dor, mas que os lembra serem a mesma espécie, e não outro tipo de bicho.

Um homem tenta, bravamene, resistir contra o senso comum. Liberta muitos dos seus e cria um exército, um mundo africano na colônia portuguesa. Crime de morte ser livre. Insiste o branco até conseguir vencê-lo. E mais uma vez, como um animal – que julga ser o outro –, usa de toda sua brutalidade para afirmar-se senhor, temendo ser novamente desafiado.

Surgem aos poucos medidas para mitigar o absurdo da escravidão, mas são frios, movidos por motivos outros que não o compadecimento da raça oprimida. Alguns, de bom alvitre, contribuem em nada para amainar o que sentem os negros, pois dando, não dão, por não criarem meios para tal. A libertação vira tema romântico, cantada em verso, em prosa, apenas na alta sociedade, mas a realidade é outra.

Surge então uma princesa, uma lei e um problema: milhares de seres transmutados automaticamente de bichos em homens. Mutação imperfeita: homens-bicho, bichos-homem, agora sem ter e sem saber aonde ir. Expatriados de sua terra-natal, foi-lhes negada nova pátria. Largados a esmo, à sorte do destino. Trocados por outro tipo de gente. A liberdade debalde não fez mais que os desassistir por completo e empurrá-los à margem do futuro.

Assim banidos, tornaram-se o estrato mais baixo da sociedade, nesse que é um país de casta nas entrelinhas. Foi-lhes destinado o pior de tudo – saúde, instrução, cidadania. Ocuparam as posições invisíveis da sociedade: abrem ao mesmo tempo que ocultam-se atrás das portas para que outros passem, limpam agachados o chão, de modo a não serem encarados por ninguém, levantam as habitações alheias para ao final recolherem-se a seus casebres.

Mas um povo, uma raça, não se destroi assim. A gana de sobrevivência levou-os a fossilizarem-se na sociedade. A massa desprezada pelos brancos revidou. Imiscuíram-se em todas as esferas possíveis. Descobre-se de repente num nariz, numa cabeleira, na comida cotidiana, nas palavras das conversas, nas músicas que se ouvem, traços negros. Grupo que se avolumou com a chegada de muitos brancos, tornados pretos de pobreza. No entanto, o país da diversidade não é o da tolerância. Em todos os estamentos existem ainda indivíduos sedentos por opressão, mas confundidos por ser o alvo agora difuso, não sabendo direito a quem atacar, o que todavia não os impede de fazê-lo.

Nesse meio, vem um grupo de justiceiros para pôr em evidência ninguém sabe o quê: falam-se em cotas, usam-se de eufemismos, impõem-se determinações, criam-se distinções dispensáveis e dolorosas. Na verdade, apenas buscam às cegas tornar proeminente o que foi nivelado pelo tempo, errando o alvo do que poderia ser chamado compensação ou justiça.

Assim, vive (ou sobrevive?) não o negro, mas o legado deste no Brasil, como uma entidade incorpórea onipresente, observando de plantão a sociedade, esperando um dia descansar tendo visto o dia da tão sonhada igualdade racial, existente (sem se saber) apenas quando viviam as tribos isoladas no continente África.


* À época que esse texto foi escrito, faltavam ao autor informações históricas relevantes acerca da escravidão, por isso o leitor que possui esse conhecimento discorde de alguns pontos apresentados. No entanto, cabe ao menos a reflexão a respeito da situação do negro no Brasil.

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