O homem-branco olha a pela alva, os olhos claros, os lisos cabelos, e
declara: “Sou belo!”. Mira o negro, escuro, nariz largo, lábios
intumescidos, cabelos desgrenhados, e sentencia: “És feio e bruto.
Sereis meu escravo!”, como se o ato de assenhorear-se de seus
semelhantes não fosse em si uma abominação vergonhosa que coloca o
dominador em posição desprezível, mostrando sua vileza frente à
fragilidade do escravizado, demonstrando que a beleza apenas oculta
uma face monstruosa do civilizador.
Vem
aqui um navio – primeiro de muitos – e despeja na terra seres
estranhos: sujeitos sem família, sem vontade, sem sonhos ou
esperança. Pessoas sem vida, com suas sentenças de morte assinadas
por quem não tinha autoridade. O futuro incerto encontra resposta na
certeza do fim trágico, abreviado pela maldade do branco dominador.
Um instante e estão espalhados pelos cantos da nova terra, fazendo o
serviço do branco preguiçoso e arrogante. Dor misturada com sangue
produzem um grito louco de agonia e revolta pelo sofrimento sem
sentido. Dia e noite chora o preto porque não consegue – e nem
poderia, pois não existe – a resposta para tudo aquilo, para
aquela pergunta: por quê?
Em
mais uma demonstração de mau-caratismo, eis que o branco,
sucumbindo ao instinto animalesco que traz consigo, toma para si as
negras mulheres, e têm com elas negros filhos, enegrecendo sua raça
e o futuro dos pequenos. O povo vilipendiado afinal fere o agressor:
macula sua linhagem, num enxerto não sem dor, mas que os lembra
serem a mesma espécie, e não outro tipo de bicho.
Um
homem tenta, bravamene, resistir contra o senso comum. Liberta muitos
dos seus e cria um exército, um mundo africano na colônia
portuguesa. Crime de morte ser livre. Insiste o branco até conseguir
vencê-lo. E mais uma vez, como um animal – que julga ser o outro
–, usa de toda sua brutalidade para afirmar-se senhor, temendo ser
novamente desafiado.
Surgem
aos poucos medidas para mitigar o absurdo da escravidão, mas são
frios, movidos por motivos outros que não o compadecimento da raça
oprimida. Alguns, de bom alvitre, contribuem em nada para amainar o
que sentem os negros, pois dando, não dão, por não criarem meios
para tal. A libertação vira tema romântico, cantada em verso, em
prosa, apenas na alta sociedade, mas a realidade é outra.
Surge
então uma princesa, uma lei e um problema: milhares de seres
transmutados automaticamente de bichos em homens. Mutação
imperfeita: homens-bicho, bichos-homem, agora sem ter e sem saber
aonde ir. Expatriados de sua terra-natal, foi-lhes negada nova
pátria. Largados a esmo, à sorte do destino. Trocados por outro
tipo de gente. A liberdade debalde não fez mais que os desassistir
por completo e empurrá-los à margem do futuro.
Assim
banidos, tornaram-se o estrato mais baixo da sociedade, nesse que é
um país de casta nas entrelinhas. Foi-lhes destinado o pior de tudo
– saúde, instrução, cidadania. Ocuparam as posições invisíveis
da sociedade: abrem ao mesmo tempo que ocultam-se atrás das portas
para que outros passem, limpam agachados o chão, de modo a não
serem encarados por ninguém, levantam as habitações alheias para
ao final recolherem-se a seus casebres.
Mas
um povo, uma raça, não se destroi assim. A gana de sobrevivência
levou-os a fossilizarem-se na sociedade. A massa desprezada pelos
brancos revidou. Imiscuíram-se em todas as esferas possíveis.
Descobre-se de repente num nariz, numa cabeleira, na comida
cotidiana, nas palavras das conversas, nas músicas que se ouvem,
traços negros. Grupo que se avolumou com a chegada de muitos
brancos, tornados pretos de pobreza. No entanto, o país da
diversidade não é o da tolerância. Em todos os estamentos existem
ainda indivíduos sedentos por opressão, mas confundidos por ser o
alvo agora difuso, não sabendo direito a quem atacar, o que todavia
não os impede de fazê-lo.
Nesse
meio, vem um grupo de justiceiros para pôr em evidência ninguém
sabe o quê: falam-se em cotas, usam-se de eufemismos, impõem-se
determinações, criam-se distinções dispensáveis e dolorosas. Na
verdade, apenas buscam às cegas tornar proeminente o que foi
nivelado pelo tempo, errando o alvo do que poderia ser chamado
compensação ou justiça.
Assim,
vive (ou sobrevive?) não o negro, mas o legado deste no Brasil, como
uma entidade incorpórea onipresente, observando de plantão a
sociedade, esperando um dia descansar tendo visto o dia da tão
sonhada igualdade racial, existente (sem se saber) apenas quando
viviam as tribos isoladas no continente África.
* À época que esse texto foi escrito, faltavam ao autor informações históricas relevantes acerca da escravidão, por isso o leitor que possui esse conhecimento discorde de alguns pontos apresentados. No entanto, cabe ao menos a reflexão a respeito da situação do negro no Brasil.
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