Título: A Língua de Eulália
Autor: Marcos Bagno
Editora: Editora Contexto
ISBN: 978-85-7244-397-5
– Para dizer a verdade – prossegue Irene –, a Eulália é um poço sem fundo de conhecimento e sabedoria. Todo dia aprendo uma coisa nova com ela. Só de remédios caseiros, feitos com ervas medicinais, dava para encher uma enciclopédia. E como conselheira para momentos de angústia e depressão não conheço melhor psicólogo do que ela.
– Pode até ser – comenta Emília enquanto as quatro se sentam num grande banco de madeira sob um caramanchão. – Mas ela fala tudo errado. Isso para mim estraga qualquer sabedoria.
– Eu tive de me segurar para nao rir quando ela disse aquelas coisas na mesa – acrescenta Sílvia.
– Que coisas? – quer saber Vera.
– Ah, sei lá... agora não me lembro – responde Sílvia.
– Eu me lembro – adianta-se Emília. – Ela disse “os probrema”, “os fósfro”, “môio ingrês”...
– É mesmo – confirma Sílvia –, e a mais engraçada foi: “percurá os hôme”...
Sílvia ri, e Emília a imita.
Irene fica séria por alguns instantes. De repente, vira-se para as duas moças e diz:
– Or tu chi se', che vuoi sedere a scranna / Per giudicar da lungi mille miglia, / com la veduta corta d' una spanna?
Sílvia, Emília e Vera, tomadas de surpresa, ficam mudas.
– E então? Não querem rir também do que eu disse, como riram das coisas que a Eulália falou?
– Mas você falou em italiano – diz Vera.
– Se era italiano, por que devíamos rir? Eu não posso achar graça naquilo que não entendo – diz Emília.
– E o que é que você fala? – continua Irene.
– Eu falo português – diz Emília, já intrigada.
– E o que é o italiano para alguém que fala português? – quer saber Irene.
As moças param um instante para pensar. É Sílvia quem responde:
– É outra língua.
– Uma língua diferente – completa Vera.
– Muito bem – diz Irene. – Vocês não entenderam o verso de Dante que eu citei há pouco porque era italiano. Mas e se eu disser assim: “No mundo non me sei parelha, mentre me for' como me vay, ca já moiro por vos – e ay!”?
– Esse quase dá para entender, afinal é espanhol – diz Sílvia.
– Não senhora – corrige irene. – É português.
– Português?! – espanta-se Emília.
– Português, sim, só que do século XII, Idade Média – explica Irene. E que tal alguma coisa assim: “Estou-me nas tintas se não te apetece uma bola de Berlim”?
– Vai me dizer que isso também é português? – duvida Sílvia.
– Claro que é, é português falado em Portugal. Significa: “Estou pouco ligando se você não gosta de comer sonho”.
Vera impacienta-se:
– Tia, aonde é que você quer chegar?
– Vocês não entenderam o Dante porque o italiano é diferente do português. Vocês não entenderam o português do século XII porque ele é diferente do português de hoje. E não entenderam o português de Portugal porque é diferente do português do Brasil.
– E o que tem isso a ver com a fala errada da Eulália? – pergunta Emília.
– A fala da Eulália não é errada: é diferente. É o português de uma classe social diferente da nossa, só isso – explica Irene.
– Para mim é errado – diz Emília.
– É errado dentro das regras da gramática que se aplicam ao português que você fala – diz Irene. – Mas na variedade não-padrão falada pela Eulália essas regras não funcionam.
(…)
– Antes eu quero saber o que foi aquilo que você disse em italiano...
Irene sorri:
– São uns versos da Divina Comédia, de Dante. A tradução é difícil, mas significam alguma coisa como: “quem você, tão presunçoso, pensa que é para julgar de coisas tão elevadas com a curta visão de que dispõe?”
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