E depois?
Passados os
acontecimentos, a constatação mais pungente não se refere ao [bem]
que se foi, mas ao que ficou. Ou melhor, nasceu, brotou, surgiu, em
meio ao medo, dor, frustração, ódio, revolta. Sentimentos
inexpugnáveis. Sensações que imiscuem-se em nossa natureza para
produzir uma nova personalidade, defeituosa, atribulada. Jamais a
confiança em desconhecidos será restabelecida. O caminhar será
sempre sinuoso, ora evitando o local desaconselhável, ora
afastando-se de alguém que se aproxima. O instinto lutar-fugir,
adormecido há gerações, é convocado à ativa. Suor, batidas
aceleradas do coração, reflexo instantâneo. Sinais que emergem ao
menor sinal de ameaça. É arriscado andar com algo de valor. Um novo
assalto parece iminente. Caminha-se prestando muita atenção a tudo:
pessoas que vêm, que vão; para onde correr em caso de abordagem
súbita. Vai-se pelo meio da rua, não pelos flancos, e a curva é
sempre aberta. A raiz do preconceito aflora. Não impelida por
convicções interiores. Brota devido à hostilidade do ambiente.
Quanto mais traços denunciadores de periculosidade uma pessoa
possuir, mais discriminada ela será. Cor da pele, “estilo” do
cabelo, roupas, maneiras, olhos, semblante. Todos são suspeitos até
prova em contrário. O humilde pai de família é tomado por
marginal; o jovem que se alegra na moda é considerado igualmente.
Procura-se nos outros indícios de inofensividade: uniformes,
acessórios, companhia de crianças, modos, conversas. A todo
momento, a sensação de uma abordagem violenta onde arrebatarão
nossos haveres se nos ocorre. É a vida depois de um assalto.
Além do medo e da
desconfiança, vem também o desamparo. Não temos a quem recorrer
para reclamar proteção. Nossa polícia é mais que ineficiente. É
conivente. Muito provavelmente toma parte nos despojos das ações
criminosas. Se antes temíamos os bandidos, foras-da-lei, agora
devemos também fugir à polícia, amparada pela justiça. Se, ao
menos fragilmente, podíamos combater os primeiros, de forma alguma
devemos afrontar os últimos. É a realidade que nos salta aos olhos.
Eu x ele
Ao fim de tudo, cabe
ainda uma ponderação: avaliar as diferenças existentes entre eu e
meu agressor, e o tratamento que o Estado nos dispensa.
Eu, filho de pai
analfabeto e mãe semi-analfabeta. Um encanador e uma cozinheira. Meu
pai, trabalhando desde as primeiras lembranças que tem, traz o corpo
alquebrado por anos de trabalho árduo. Minha mãe, trabalhando desde
que o pai faleceu (contava então onze anos), rememora ainda os
tempos em que passou sem residência própria. Ambos trabalharam
muito, com dignidade e honestidade para conseguir um pouco do que a
vida não lhes deu de graça. Projetaram nos filhos a esperança de
uma vida melhor, o sonho de uma formatura que lhes foi impossível.
Nós, os filhos, lutando contra o destino, conseguimos escapar à
mediocridade que nos cercou a infância.
Ele, possivelmente com
pais não muito melhores que os meus, tem a origem incerta. A julgar
por sua aparência, também provém das camadas mais baixas da
sociedade. Talvez um pouco melhor, quem sabe um tanto pior. Seus
pais, não sei se estão vivos. Não faço idéia de seu nível de
educação, mas certamente é irrisório. Se algum dia passou fome
nunca irei saber. No entanto, a despeito de minhas especulações,
sei que, ao contrário de muitas pessoas que lutam para alcançar
honestamente um futuro melhor, ele preferiu o caminho mais curto e
mais fácil para sobreviver na inóspita realidade: o caminho do
crime.
Pesados eu e ele na
balança do Estado, o prato dele desce ferozmente, enquanto o meu é
elevado com violência. Não é ao Estado de direito que me refiro,
mas ao Estado de facto. O cidadão que escolheu ser justo e
contribuir para o bem da sociedade terá vários obstáculos à
frente. Sua vida será posta em risco caso tente enfrentar seus
agressores, pois a Justiça dispõe de várias artimanhas para
atrapalhar-lhe a ação, deixando-o totalmente vulnerável à sanha
daqueles que tentou denunciar. Já o criminoso, esse é amparado pela
Lei, pela polícia. A única coisa que teme são seus próprios
colegas, esses sim capazes de detê-lo. Quando menores de idade, têm
o aval da Lei para agirem como bem entenderem. Ninguém pode lhes
fazer frente. A vida tem seu valor anulado com a bênção do Estado.
E o pobre que tenta ser
honesto assim vive. Como se não bastassem as investidas dos
marginais que compartilham com ele o mesmo espaço, vê-se oprimido
também pelos que o deveriam defender. Não há esperança nas leis,
na segurança, no Estado, enfim, e vamos vivendo como nossos
malfeitores nos permitem.