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domingo, 7 de abril de 2013

Relato de um assalto (partes IV e V)


E depois?

Passados os acontecimentos, a constatação mais pungente não se refere ao [bem] que se foi, mas ao que ficou. Ou melhor, nasceu, brotou, surgiu, em meio ao medo, dor, frustração, ódio, revolta. Sentimentos inexpugnáveis. Sensações que imiscuem-se em nossa natureza para produzir uma nova personalidade, defeituosa, atribulada. Jamais a confiança em desconhecidos será restabelecida. O caminhar será sempre sinuoso, ora evitando o local desaconselhável, ora afastando-se de alguém que se aproxima. O instinto lutar-fugir, adormecido há gerações, é convocado à ativa. Suor, batidas aceleradas do coração, reflexo instantâneo. Sinais que emergem ao menor sinal de ameaça. É arriscado andar com algo de valor. Um novo assalto parece iminente. Caminha-se prestando muita atenção a tudo: pessoas que vêm, que vão; para onde correr em caso de abordagem súbita. Vai-se pelo meio da rua, não pelos flancos, e a curva é sempre aberta. A raiz do preconceito aflora. Não impelida por convicções interiores. Brota devido à hostilidade do ambiente. Quanto mais traços denunciadores de periculosidade uma pessoa possuir, mais discriminada ela será. Cor da pele, “estilo” do cabelo, roupas, maneiras, olhos, semblante. Todos são suspeitos até prova em contrário. O humilde pai de família é tomado por marginal; o jovem que se alegra na moda é considerado igualmente. Procura-se nos outros indícios de inofensividade: uniformes, acessórios, companhia de crianças, modos, conversas. A todo momento, a sensação de uma abordagem violenta onde arrebatarão nossos haveres se nos ocorre. É a vida depois de um assalto.

Além do medo e da desconfiança, vem também o desamparo. Não temos a quem recorrer para reclamar proteção. Nossa polícia é mais que ineficiente. É conivente. Muito provavelmente toma parte nos despojos das ações criminosas. Se antes temíamos os bandidos, foras-da-lei, agora devemos também fugir à polícia, amparada pela justiça. Se, ao menos fragilmente, podíamos combater os primeiros, de forma alguma devemos afrontar os últimos. É a realidade que nos salta aos olhos.


Eu x ele

Ao fim de tudo, cabe ainda uma ponderação: avaliar as diferenças existentes entre eu e meu agressor, e o tratamento que o Estado nos dispensa.

Eu, filho de pai analfabeto e mãe semi-analfabeta. Um encanador e uma cozinheira. Meu pai, trabalhando desde as primeiras lembranças que tem, traz o corpo alquebrado por anos de trabalho árduo. Minha mãe, trabalhando desde que o pai faleceu (contava então onze anos), rememora ainda os tempos em que passou sem residência própria. Ambos trabalharam muito, com dignidade e honestidade para conseguir um pouco do que a vida não lhes deu de graça. Projetaram nos filhos a esperança de uma vida melhor, o sonho de uma formatura que lhes foi impossível. Nós, os filhos, lutando contra o destino, conseguimos escapar à mediocridade que nos cercou a infância.

Ele, possivelmente com pais não muito melhores que os meus, tem a origem incerta. A julgar por sua aparência, também provém das camadas mais baixas da sociedade. Talvez um pouco melhor, quem sabe um tanto pior. Seus pais, não sei se estão vivos. Não faço idéia de seu nível de educação, mas certamente é irrisório. Se algum dia passou fome nunca irei saber. No entanto, a despeito de minhas especulações, sei que, ao contrário de muitas pessoas que lutam para alcançar honestamente um futuro melhor, ele preferiu o caminho mais curto e mais fácil para sobreviver na inóspita realidade: o caminho do crime.

Pesados eu e ele na balança do Estado, o prato dele desce ferozmente, enquanto o meu é elevado com violência. Não é ao Estado de direito que me refiro, mas ao Estado de facto. O cidadão que escolheu ser justo e contribuir para o bem da sociedade terá vários obstáculos à frente. Sua vida será posta em risco caso tente enfrentar seus agressores, pois a Justiça dispõe de várias artimanhas para atrapalhar-lhe a ação, deixando-o totalmente vulnerável à sanha daqueles que tentou denunciar. Já o criminoso, esse é amparado pela Lei, pela polícia. A única coisa que teme são seus próprios colegas, esses sim capazes de detê-lo. Quando menores de idade, têm o aval da Lei para agirem como bem entenderem. Ninguém pode lhes fazer frente. A vida tem seu valor anulado com a bênção do Estado.

E o pobre que tenta ser honesto assim vive. Como se não bastassem as investidas dos marginais que compartilham com ele o mesmo espaço, vê-se oprimido também pelos que o deveriam defender. Não há esperança nas leis, na segurança, no Estado, enfim, e vamos vivendo como nossos malfeitores nos permitem.

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