A queixa
Por fim, resolvo seguir
os trâmites legais. Vou em casa pegar os documentos necessários
para proceder à queixa. Durante o caminho, tomo o cuidado de notar
se avisto o marginal em algum lugar. Contudo, não quero dar de cara
com ele. Não o vejo em canto algum e finalmente estou de volta à
delegacia. Anuncio novamente que desejo prestar uma queixa. Após as
perguntas básicas (“de quê?”, “quando foi?”, “onde foi?”)
– já era outro atendente no balcão –, o homem vai lá dentro
verificar se há alguém para me atender. Retorna e diz para
segui-lo. Conduz-me por um corredor estreito, com bifurcações
fugidias. Indica-me uma sala com o número quatro na porta, fechada.
Parado ali, não sei o que me aguarda lá dentro. Nunca havia
prestado queixa e não dispunha de informações de como seria.
Bato à porta e entro.
Três mulheres. Três mulheres conversam ruidosamente, cada qual em
um computador, sentadas lado a lado. Duas delas têm aproximadamente
a mesma idade – por volta dos quarenta e cinco anos. Uma delas não
é hostil, mas não chega a ser simpática. A outra é carrancuda,
mal-encarada, provavelmente contaminada pelos anos de serviço
público. A terceira é jovem, pouco mais de vinte anos. Um
desavisado diria que não trabalhava ali, devido a não demonstrar
tanta intimidade com o ambiente – que comumente é dominado por
pessoas acima dos trinta anos. Lembro a sabedoria milenar chinesa,
incrustada em sua escrita: o ideograma que representa confusão é
denotado por três mulheres juntas. Nenhuma delas parece notar minha
presença – ou antes, importar-se com ela. Levanto minha voz acima
das suas para confirmar se entrei na sala certa. Uma delas – a
primeira descrita –, voltando-se a mim, reponde-me afirmativamente
e principia o procedimento de praxe. Tomo a liberdade de sentar-me na
cadeira postada defronte a ela, imaginando que não me convidariam a
fazê-lo.
O trabalho é feito
entrecortado por conversas paralelas: casa, amigos, fulanos, fulanas.
Do relatório constam perguntas extremamente vitais para a questão:
“você é casado?”. O processo segue lentamente; penso estarem
zombando de mim. Estou visivelmente aborrecido. Cruzo os braços e
solto muxoxos. A mulher pergunta: “Ele estava armado?”. Respondo
(mais uma vez) que ele afirmou estar, mas não exibiu a arma. Em
dúvida, ela pergunta à outra: “É ‘outras’, né?”,
referindo-se à modalidade do assalto. “É!”, responde a mulher,
a mal-encarada, “Se ele não viu...”. Retruco: “Da próxima vez
peço pra ele mostrar!”.
Entra um senhor na sala,
ostentando pouco mais de cinqüenta anos. Não dou muita importância,
preocupado demais com minha revolta. O homem caminha com o auxílio
de muletas e senta com dificuldades, a meu lado. A outra mulher – a
ranzinza – vai registrar sua queixa, exasperando-se a uma média de
duas perguntas. Nesse intervalo, a que está a me atender sai da
sala. Vai ligar para a filha. Fico lá, esperando, sentindo a
ineficiência do Estado. Percebo que a [mulher] mais nova me observa
de forma intermitente. Talvez por compadecimento de minha apreensão
diante da fragilidade do combate ao crime, talvez pela surpresa em
deparar-se com alguém que realmente esperava ação por parte da
polícia – quando é sabida sua inércia.
A mulher volta do
telefonema, faz as considerações finais – agora acompanhada da
mais jovem – e entrega-me uma folha impressa, que a custo é que se
consegue ler. Volta-se para um dos homens à espera – agora há uns
três – e pergunta:
– O senhor é o quê?
Eu, com a folha na mão,
esperava alguma conclusão do procedimento. Pergunto à mais jovem se
é só isso. Ela afirma que sim. E o papel? O que fazer? Guardar? Ela
dá de ombros, dizendo para fazer dele o que achar melhor.
Insatisfeito, coloco-o dentro da bolsa e saio. Na recepção, olhares
indiferentes. Tenciono perguntar a alguém como proceder depois da
queixa. Desisto. Do lado de fora, sinto-me ultrajado; o primeiro
contato com nossa força policial reforçou a desconfiança que lhe
reservava. O que fazer agora? Ir para casa e esperar que me liguem?
Improvável. Melhor prosseguir meu caminho. Pergunto as horas a uma
mulher sentada ali perto. Quase duas. Concluo que foi um capítulo
terminado no curso dos acontecimentos daquele dia. Saio dali e tomo o
ônibus. As últimas lembranças me perseguem. Termino por
afastá-las. Esquecer o ocorrido, assim como o Estado esquece-se de
cuidar dos seus. Ponho-me a ler o noticiário semanal, tomando o
cuidado de saltar as páginas sobre Brasil.
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