O número de homens que cozinham vem aumentando. Será que isso tem relação com as bandeiras feministas?
Tenho conhecido recentemente alguns
casais jovens e não deixei de observar um traço comum entre eles:
em grande parte, quem cozinha é o homem. E não falo apenas do arroz
com feijão: pratos requintados (em maior ou menor grau, isso vai
depender da comida ordinária) inclusive. E mais: eles não o fazem
por obrigação, mas por prazer. Antes que alguém se levante para
consultar estatísticas que contestem minha suposição, quero
registrar que tal mudança parece ser mais comum nos casais de maior
instrução – onde, historicamente, se processam a maioria das
mudanças, para depois serem replicadas hierarquia social abaixo. Que
reviravolta será essa que está ocorrendo?
Cozinheiros sempre houve. Na Idade
Média, nas cortes, nos recrutamentos, era comum – se não regra –
um homem assumir as funções na cozinha. Até aos dias de hoje, as
estrelas do guia Michelin são em sua maioria homens. Esse fato
contrasta com o dado de que, nos lares e cozinhas livres de qualquer
pretensão gastronômica (como hospitais, por exemplo), as
cozinheiras reinaram absoluta. No entanto, é fácil entender essa
aparente discrepância ao lembramos que, durante boas centenas de
anos, às mulheres era negado qualquer exercício de função fora do
âmbito familiar, o que incluía ser cozinheira profissional. E como
alguns aspectos são difíceis de alterar culturalmente, o posto de
cozinheiro-mor ocupado por um homem permanece até nosso tempo.
Mas o outro posto, o de
cozinheira-padrão assumido pelas mulheres, parece estar em declínio
– ou, para usar um termo mais brando, em ruptura. De repente,
vários homens invadiram o espaço antes dominado pelas mulheres e o
estão dividindo igualmente ou, em certos lares, com vantagem. Mas
qual a explicação para isso? Talvez já haja algum estudo
antropológico sério a respeito desse fenômeno, mas aqui quero
apenas expor algumas suposições minhas baseadas em observação e
raciocínio.
É pouco provável que você já tenha
presenciado um menino aprendendo a cozinhar em casa. Culturalmente,
isso não nos é ensinado. Mas com o passar dos anos, dois motivos em
especial levam os homens a se dedicar ao ofício. O primeiro – e
aqui os cito sem qualquer ordem prestabelecida, uma vez que é
difícil precisar qual deles seria o mais motivante – é que
cozinhar pode ser um aliado importantíssimo na “dança do
acasalamento”. Sabe-se lá por qual motivo, muitas (ou todas?)
mulheres acham excitante um parceiro com boa desenvoltura culinária.
E como encantar uma mulher é uma das maiores prioridades do gênero
masculino, vale mais a pena quebrar tabus que se arriscar a perder
uma valiosa vantagem competitiva de galanteio.
A outra razão que pode explicar a
ascenção do homem na cozinha doméstica é o fato de eles, mais que
as mulheres, passarem algum período de suas vidas morando sozinhos
ou em repúblicas, em quartos compartilhados. A vantagem na economia
dos rendimentos é um forte argumento para se aventurarem em meio a
molhos, panelas, verduras e outros condimentos. A independência traz
responsabilidades, obrigando-os a arcar com elas, mesmo que seja algo
que ninguém os ensinou antes. Talvez um terceiro motivo seja o
desejo de dividir as responsabilidades domésticas com a companheira,
dado o alvoroço em torno das jornadas de trabalho femininas – e
esse compadecimento é mais comumente encontrado, como dito no
início, nos casais mais instruídos, onde o homem tem conhecimento
dos anseios femininos.
Como dito antes (e o leitor atento se
recordará), os homens estão passando a cozinhar, enquanto as
mulheres estão fazendo o movimento inverso. Ora, se vale uma análise
do porquê de os homens estarem agindo assim, cabe também especular
os motivos de as mulheres os deixarem tão à vontade nessa função.
Historicamente, as mulheres sofreram
diversos tipos de repressão: não escolhiam com quem se casar, não
tinham direitos (políticos ou qualquer outro), não podiam
trabalhar, entre uma infinidade de outras coisas. O movimento
feminista plantou a semente da liberdade para elas, que hoje já
podem se refestelar à sombra da árvore que dela brotou*. Como todo
movimento de contestação, era necessário que os primeiros passos
do feminismo fossem ir de encontro a tudo que representasse o sistema
de opressão: roupas, obrigações, cerceamento. Mas hoje, décadas
após seu estabelecimento definitivo (sim, pois houve movimentos
pró-mulheres já à época da Revolução Francesa, mas não
vingados), é necessário constatar que a maior conquista do
movimento foi a liberdade de escolha, seja de conduta, de profissão
ou de atividades domésticas. O que muitas mulheres não entenderam é
que não é mais necessário negar antigos ícones do machismo. Se a
mulher prefere a vida doméstica a lançar-se no cruel mercado de
trabalho, que mal há? Se elas de fato preferem ciências humanas ou
biológicas, que se há de fazer? Mas como é preferível fazer algo
pela própria vontade que por obrigação, o hábito de cozinhar,
antes dever inalienável, agora passa a ser visto como símbolo de
agressão contra sua vontade, por isso o abominam. Ficar em casa
cuidando dos filhos? Não, isso é para mulherzinhas.
Muitas feministas ainda enxergam
barreiras em tudo – e essa é minha maior crítica a elas. Por
exemplo, pergunte a qualquer aluna de engenharia sobre as
dificuldades de sua escolha pelo curso. Provavelmente todas serão
referentes às dúvidas quanto ao futuro da profissão ou aptidão
para a área – dificuldades compartilhadas por todos os alunos em
qualquer curso e área. Duvido que tenha encontrado faixas com
dizeres perniciosos e turbas revoltadas por uma mulher ter escolhido
um curso onde a maioria dos alunos são do sexo masculino. Esse tipo
de pressão não existe – pelo contrário, é mais provável que
haja faixas de boas vindas da parte dos alunos masculinos. O que pode
ter ocorrido é ela ter ouvido uma ou outra pessoa (provavelmente da
família) referir-se ao curso como “de homem”, e nada mais. Se
isso é considerado perseguição de gênero, então é impossível
viver nesse mundo. Ouvimos muitas coisas diariamente. Dizem que não
podemos fazer algo ou estar em determinado lugar porque somos feios,
pobres, inteligentes, tolos, altos, baixos, gordos, magros, carecas,
cabeludos, tatuados, destatuados, índios, negros, brancos, amarelos,
ébrios, abstêmios, homens ou mulheres. Deixar-se atingir por
argumentos tão pouco convincentes é prova de que não somos capazes
de sobreviver nesse mundo e melhor seria desistir dele.
Existe sim um tabu de que homem não
cozinha, mas muitos jovens rapazes decidiram arriscar-se na tarefa, e
perceberam que o tabu nem é tão tabu assim. É isso que falta a
muitas feministas: enxergar que muitas barreiras não mais existem,
portanto, podem parar de lutar contra moinhos de vento. O que falta,
isso sim, é as mães – enquanto representantes do gênero e classe
– educarem seus filhos do modo mais igualitário possível, o que
significa ensiná-los habilidades que lhes serão úteis,
independentemente do sexo – se virar sozinhos. Muitas mulheres
também moram em repúblicas, mas muitas contam com a total
assistência materna para cozinhar e lavar roupas, enquanto os homens
são deixados a seus próprios cuidados. O que muitas feministas não
compreendem é que estamos no momento de ensinar as mulheres a
seguirem os caminhos que quiserem, e não manterem-se na caverna
apenas porque sempre estiveram lá.
Enquanto as feministas permanecem
quixotescas e as mulheres ensaiam voos mais altos, os homens seguem
ocupando espaços outrora unicamente delas, acumulando também duplas
jornadas, sem contudo serem impelidos a isso, sem reclamar e sem
fazer caso. Apenas divertem-se.
* Não estou dizendo que não há mais
conquistas a serem feitas; o que quero dizer é que já há frutos
(muitos) a serem colhidos.
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