Corpo franzino. Tamanho reduzido. Cor
escura. Carapinha. Olhos sujos do sono. Trazia sandálias nos pés.
Levava os cadernos à mão. A camisa o queria engolir inteiro. A
calça lhe queria fugir pelas pernas. Era a denúncia da fraqueza, da
desassistência, da pobreza. Um quase abandono. Era segredo seu a
idade que tinha. Sua estatura desmentia-lhe no adiantado da vida. Seu
semblante amarfanhado o contrariava no desconto dos anos. Alheio de
sua própria miséria – ou ciente demais dela –, ele sorria e se
deixava estar com os outros estudantes. Nunca se soube se era feliz.
A menina com nome de cantora não
cansava de desafinar. Insistia nisso, sem qualquer compadecimento dos
colegas de turma. Os dentes muito brancos desdenhavam da pele muito
negra. Não lhe molestava o cabelo rebelde, e gostava dos lábios
vermelho-vivo. Tinha saúde e era forte. Namorava muito e reservava
tempo desproporcional às disciplinas. As palavras eram-lhe
abundantes e tinha mais amigos do que sua cabeça podia contar.
Elenílson e Elis Regina estudavam
juntos, e pouco mais havia em comum entre eles além do par de letras
iniciais de seus nomes e da pobreza que compartilhavam – mas por
ser esta a sina inexorável de todos os discentes ali, fica revogado
seu destaque. Todos os dias Elenílson emergia da grota, onde várias
casas se depositavam no declive da depressão, das quais uma delas
era a sua. Elis vinha de muito longe, trazida pela condução velha,
barulhenta, ofegante e pública. Encontravam-se na escola, que era o
ponto de interseção de suas vidas. A instituição, em verdade, era
uma paródia da academia grega. Tal qual o vegetal carnívoro que
ilude suas vítimas para os devorar, os alunos eram ali atraídos
pelo alvitre de se tornarem pessoas esclarecidas. Livres da rua,
seriam doutrinados na cidadania ordeira. Mas a verdade é que lá
dentro estava o ensino de tudo o que corrói a sociedade, de modo que
a rua ou a escola, para fins de estragos em um caráter, eram
indiferentes. Ao menos o estabelecimento não os discriminava.
Metia-os igualmente sob o julgo do falso ensino e do desperdício de
tempo. E ali mesmo os consumia.
Eram poucos os dias em que forneciam
refeições durante o intervalo das aulas. Tal acontecimento era,
pela frequência e pelo sentimento despertado em seus beneficiários,
semelhante à chuva que cai nos lugares muito quentes e secos. Nesses
casos, o termo refeição trata-se de eufemismo, devido à
inexistência de termo que expresse o que era servido ali: qualquer
coisa que se pudesse ingerir, desde que o comensal se desfizesse da
maioria dos princípios de restrição alimentícia e higiênica. Os
bocados, servidos em utensílios de plástico ordinário, eram a
sobra da despensa saqueada pelos funcionários, feitos na imundície
da cantina escura, preparados por pessoas ranzinzas e descrentes de
sua utilidade. Bolacha e leite, macarrão com sardinha (às vezes
substituída por almôndegas), achocolatado com pão... O pão, esse
onipresente personagem histórico, foi o segundo ponto de interseção
na história de Elenílson e Elis.
No intervalo, os alunos estavam
dispersos das mais diferentes maneiras. Uns se detiveram nas salas,
colados às carteiras – os tímidos – ou esticando as pernas na
proteção do cômodo. Outros ganharam os corredores e testavam a
toda velocidade a capacidade de locomoção de suas pernas.
Ajuntamentos os mais diversos: meninas, meninos, ambos. Nesse dia de
merenda, uns comiam sozinhos, outros, em bandos. Elenílson
enfrentava a fila para obter sua porção e retornava à sala para
consumi-la, como presumia, em segurança. Como não se satisfizesse
com uma única porção, sua insaciedade o fez retornar à fila. Já
estava próximo à carteira quando Elis o avistou e, lembrando-se que
era a segunda vez que assim fazia, decidiu que lhe cabia aplicar-lhe
uma lição, em tom de chiste. Aproximando-se lepidamente do
rapazola, bradou-lhe algumas palavras que remetiam àqueles que
mendigam por comida e aplicou-lhe um pontapé na altura do rim
esquerdo. O corpo de Elenílson, pequeno e fraco, rendeu-se à força
do chute. O contato com o chão foi evitado por uma cadeira
interposta entre ambos, a qual o feriu do lado oposto ao golpe. O
pedaço de pão, já mordido, escapou-lhe da mão e rolou para longe,
como que assustado pela agressão sem sentido.
Pequeno e fraco, Elenílson não
suportou as dores e sucumbiu às lágrimas. Elis, estática,
surpreendeu-se com o resultado da brincadeira. As dores de Elenílson
eram muitas. Doía-lhe a matéria e doía-lhe o espírito. A
consciência de Elis também principiava a doer. Elenílson, porque
pequeno e fraco, não suportou o opróbrio que se avolumava com a
quantidade de olhares que se dirigiam a ele – tão sólidos que ele
os sentia mesmo sem os fitar. Antes que a assistência se
multiplicasse em demasia, decidiu que não queria mais estar ali. Em
sua pequenez e fraqueza, juntou o pouco que havia trazido e, evitando
a todos, fugiu para sua casa, provavelmente também pequena e
igualmente fraca.
Por mais que se esforçasse, Elenílson
não conseguia entender o que houve nesse dia. Talvez ele estivesse
em jejum até o momento de servir o lanche. Talvez contasse com ele
para amainar o vazio do estômago que carregava consigo. Por que o
impediram? Aliás, quem o impediu? Foi Elis ou o destino? O mais
forte ou a sociedade? Estavam todos ali na agressão que sofreu? E
por que o fizeram? Era errado aplacar a fome? Era injusto repetir a
porção? O mundo era gratuitamente mau ou aplicou-lhe um capricho
aleatório? Elenílson não sabia, mas, sim, o problema era ele:
pequeno, fraco, destituído de graça física, livre de posses. A
vida, Elenílson não sabia, odiava-o. E haveria de demonstrar isso
outras vezes, de outros modos, todos cruéis. Elenílson fugiu do
local da humilhação, mas a vida o seguiu, acossando-o
impiedosamente.
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