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segunda-feira, 26 de agosto de 2013

Elenílson

Corpo franzino. Tamanho reduzido. Cor escura. Carapinha. Olhos sujos do sono. Trazia sandálias nos pés. Levava os cadernos à mão. A camisa o queria engolir inteiro. A calça lhe queria fugir pelas pernas. Era a denúncia da fraqueza, da desassistência, da pobreza. Um quase abandono. Era segredo seu a idade que tinha. Sua estatura desmentia-lhe no adiantado da vida. Seu semblante amarfanhado o contrariava no desconto dos anos. Alheio de sua própria miséria – ou ciente demais dela –, ele sorria e se deixava estar com os outros estudantes. Nunca se soube se era feliz.

A menina com nome de cantora não cansava de desafinar. Insistia nisso, sem qualquer compadecimento dos colegas de turma. Os dentes muito brancos desdenhavam da pele muito negra. Não lhe molestava o cabelo rebelde, e gostava dos lábios vermelho-vivo. Tinha saúde e era forte. Namorava muito e reservava tempo desproporcional às disciplinas. As palavras eram-lhe abundantes e tinha mais amigos do que sua cabeça podia contar.

Elenílson e Elis Regina estudavam juntos, e pouco mais havia em comum entre eles além do par de letras iniciais de seus nomes e da pobreza que compartilhavam – mas por ser esta a sina inexorável de todos os discentes ali, fica revogado seu destaque. Todos os dias Elenílson emergia da grota, onde várias casas se depositavam no declive da depressão, das quais uma delas era a sua. Elis vinha de muito longe, trazida pela condução velha, barulhenta, ofegante e pública. Encontravam-se na escola, que era o ponto de interseção de suas vidas. A instituição, em verdade, era uma paródia da academia grega. Tal qual o vegetal carnívoro que ilude suas vítimas para os devorar, os alunos eram ali atraídos pelo alvitre de se tornarem pessoas esclarecidas. Livres da rua, seriam doutrinados na cidadania ordeira. Mas a verdade é que lá dentro estava o ensino de tudo o que corrói a sociedade, de modo que a rua ou a escola, para fins de estragos em um caráter, eram indiferentes. Ao menos o estabelecimento não os discriminava. Metia-os igualmente sob o julgo do falso ensino e do desperdício de tempo. E ali mesmo os consumia.

Eram poucos os dias em que forneciam refeições durante o intervalo das aulas. Tal acontecimento era, pela frequência e pelo sentimento despertado em seus beneficiários, semelhante à chuva que cai nos lugares muito quentes e secos. Nesses casos, o termo refeição trata-se de eufemismo, devido à inexistência de termo que expresse o que era servido ali: qualquer coisa que se pudesse ingerir, desde que o comensal se desfizesse da maioria dos princípios de restrição alimentícia e higiênica. Os bocados, servidos em utensílios de plástico ordinário, eram a sobra da despensa saqueada pelos funcionários, feitos na imundície da cantina escura, preparados por pessoas ranzinzas e descrentes de sua utilidade. Bolacha e leite, macarrão com sardinha (às vezes substituída por almôndegas), achocolatado com pão... O pão, esse onipresente personagem histórico, foi o segundo ponto de interseção na história de Elenílson e Elis.

No intervalo, os alunos estavam dispersos das mais diferentes maneiras. Uns se detiveram nas salas, colados às carteiras – os tímidos – ou esticando as pernas na proteção do cômodo. Outros ganharam os corredores e testavam a toda velocidade a capacidade de locomoção de suas pernas. Ajuntamentos os mais diversos: meninas, meninos, ambos. Nesse dia de merenda, uns comiam sozinhos, outros, em bandos. Elenílson enfrentava a fila para obter sua porção e retornava à sala para consumi-la, como presumia, em segurança. Como não se satisfizesse com uma única porção, sua insaciedade o fez retornar à fila. Já estava próximo à carteira quando Elis o avistou e, lembrando-se que era a segunda vez que assim fazia, decidiu que lhe cabia aplicar-lhe uma lição, em tom de chiste. Aproximando-se lepidamente do rapazola, bradou-lhe algumas palavras que remetiam àqueles que mendigam por comida e aplicou-lhe um pontapé na altura do rim esquerdo. O corpo de Elenílson, pequeno e fraco, rendeu-se à força do chute. O contato com o chão foi evitado por uma cadeira interposta entre ambos, a qual o feriu do lado oposto ao golpe. O pedaço de pão, já mordido, escapou-lhe da mão e rolou para longe, como que assustado pela agressão sem sentido.

Pequeno e fraco, Elenílson não suportou as dores e sucumbiu às lágrimas. Elis, estática, surpreendeu-se com o resultado da brincadeira. As dores de Elenílson eram muitas. Doía-lhe a matéria e doía-lhe o espírito. A consciência de Elis também principiava a doer. Elenílson, porque pequeno e fraco, não suportou o opróbrio que se avolumava com a quantidade de olhares que se dirigiam a ele – tão sólidos que ele os sentia mesmo sem os fitar. Antes que a assistência se multiplicasse em demasia, decidiu que não queria mais estar ali. Em sua pequenez e fraqueza, juntou o pouco que havia trazido e, evitando a todos, fugiu para sua casa, provavelmente também pequena e igualmente fraca.

Por mais que se esforçasse, Elenílson não conseguia entender o que houve nesse dia. Talvez ele estivesse em jejum até o momento de servir o lanche. Talvez contasse com ele para amainar o vazio do estômago que carregava consigo. Por que o impediram? Aliás, quem o impediu? Foi Elis ou o destino? O mais forte ou a sociedade? Estavam todos ali na agressão que sofreu? E por que o fizeram? Era errado aplacar a fome? Era injusto repetir a porção? O mundo era gratuitamente mau ou aplicou-lhe um capricho aleatório? Elenílson não sabia, mas, sim, o problema era ele: pequeno, fraco, destituído de graça física, livre de posses. A vida, Elenílson não sabia, odiava-o. E haveria de demonstrar isso outras vezes, de outros modos, todos cruéis. Elenílson fugiu do local da humilhação, mas a vida o seguiu, acossando-o impiedosamente.

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