Como um problema automecânico me fez refletir sobre nossas condutas na sociedade
Recentemente fui surpreendido pelo fato de as setas de meu carro terem parado de funcionar (um problema, como vim a saber depois, com uma peça chamada chave de seta). Isso significa que fiquei impossibilitado de sinalizar para os demais motoristas minhas intenções de conversão e mudança de faixa – na verdade, ainda era possível fazer as setas funcionarem, mas de uma forma bastante incômoda e um tanto insegura. Para quem gosta de seguir as regras – as de segurança, ao menos –, essa não foi uma experiência agradável, pois gerei riscos para mim e para as outras pessoas.
No entanto, a pior sensação não foi
o risco proporcionado à nossa integridade física. O que mais me
incomodou foi o sentimento de estar sendo injusto com os outros
condutores, pois às vezes me senti um “espertinho” realizando
ações não comunicadas. Ora, os dispositivos de sinalização
servem para informar aos outros as manobras que você pretende
realizar, dando-lhes a chance de atuarem de acordo com elas: reduzir,
mudar de faixa, ingressar na via, etc. Uma vez que você os deixa de
utilizar, cada atitude sua é recebida com surpresa pelos demais,
exigindo deles reflexos rápidos e inesperados, ou não permitindo
que realizem suas manobras. O trânsito não é feito de nem para uma
só pessoa, mas serve e é composto para e por uma comunidade. Cada
vez que se infringe uma das regras que servem para controlá-lo,
contribui-se para a falência de sua fluidez.
A noção de coletividade é o que
garante o sucesso de uma comunidade. As pessoas procuram viver em
grupos a fim de facilitar as atividades que garantem sua
sobrevivência, como alimentação e segurança. Para que a
convivência seja possível, são criadas regras que regulamentam
direitos e deveres e determinam o espaço de cada um. Por isso, quem
quebra essas regras está claramente se colocando acima dos demais,
julgando que suas necessidades estão acima das dos outros. Esse é o
motivo de a maioria das comunidades possuir um conselho de justiça
para reger a ordem e zelar pela manutenção de sua unidade.
Talvez muitas pessoas considerem que
não sinalizar no trânsito é um caso menor, até desprezível,
livre de qualquer interpretação. Mas é aqui que reitera-se a
questão dos detalhes que importam. Pequenos atos notadamente
denunciam traços de conduta. Claro que isso não é uma regra, mas a
frase bíblica “se não és fiel no pouco, não serás no muito”
é digna de nota. Muitos de nós questionamos os atos de ilicitude de
nossos políticos ou magnatas dos negócios, mas esquecemos de ser
solícitos com nosso próximo que dirige ao nosso lado. O que garante
que também seríamos íntegros em se tratando de uma situação em
que estivéssemos investidos de poder? Se, estando no mesmo nível,
desprezamos as implicações de nossos atos para com os outros, por
que crer que, em um nível bem mais elevado, nos preocuparíamos com
a base da pirâmide? É cômodo acreditar que os políticos e os
poderosos são uma classe diferente da nossa, mas a verdade é que,
guardadas as proporções, somos tão corruptos quanto eles. A
diferença é que o desastre promovido por eles se dá em uma escala
muito maior que a nossa, mas o ponto em comum é que, em ambos os
casos, uns se beneficiam à revelia de outros.
Não basta admirarmos os países onde
as pessoas têm internalizado o sentimento de justiça: é necessário
partirmos em busca desse mesmo sentimento. Não é suficiente fazer
alarde quando alguém pratica uma atitude honesta: há que se
praticar a ética sempre. Não temos que nos limitar a lembrar e
admirar os vultos do passado: precisamos criar contemporâneos
nossos. A questão é que para isso vir
à tona não é necessário um novo big bang.
Basta
começar
do modo mais simples: ligue a
seta, deixe os outros a par
de suas intenções
e exerça
seu apreço
pela coletividade.