Socorro e decepção
Sigo no sentido oposto
ao dele, a princípio, em direção a meu destino original; mas,
alguns passos adiante, olhando para o infame – que segue como se
nada tivesse acontecido –, tomo o caminho da delegacia. A
indignação apodera-se de mim. E o que posso fazer? Praguejar.
Praguejar contra aquele infeliz; o miserável que afrontou minha
dignidade; o marginal que feriu meu bem-estar. Praguejar com todas as
palavras que brotam em torrente de minha boca. Proferir imprecações
funciona como um lenitivo para o homem, quando deparado com a
impossibilidade de reação ou um inimigo intangível – o destino,
o tempo. E era só o que eu dispunha no momento para revidar o
acontecido.
Ensaio uma corrida rumo
à delegacia mais próxima – que dista duas centenas de metros, no
máximo, de onde fui abordado –, tomando o cuidado de observar o
marginal de longe. Com a inquietude provocada em minha mente, não
noto o carro de polícia que passa por mim, devagar. Não percebo
imediatamente, mas com um pequeno retardo. Volto, aceno, chamo. Ele
para, meio que em dúvida de fazer isso. Vou ao encontro do
motorista e declaro ter sido assaltado. O polícia, calmo, imbuído
do “proteger e servir”, finge olhar pra mim detrás dos óculos
escuros. Pergunta:
– Onde foi?
Aponto o local, tão
perto que se via sem esforço algum.
– Quando foi?
Repito que foi naquele
exato instante, apenas o tempo de caminhar cem metros.
– Ele estava armado?
Afirmo que não vi, mas
ele disse que estava.
– Ele levou o quê?
Digo o que me levaram.
Então
o policial, ponderando tudo aquilo, diz-me para ir à delegacia
prestar queixa e depois voltar para “ver se a gente (ainda)
encontra ele”.
Mais
uma indignação. Talvez eu não tenha sido convincente o suficiente
para passar-me por vítima de assalto. Talvez devesse ter chorado,
gritado, esperneado. Fazê-lo crer que não o estava enganando,
tomando seu precioso tempo (com o qual cuida de seus interesses). Ou
ainda melhor. Deveria ter-lhe dado a pecúnia que havia em minha
carteira. Sim, aí quem sabe ele não se animasse a cumprir com suas
obrigações e fazer seu trabalho; vencer os duzentos metros que nos
separavam do agressor, prendê-lo e reaver-me o bem roubado. Sim,
deveria tê-lo pago para fazer o que é direito: a autoridade
subjugar a desordem, a justiça cercear o crime. Infelizmente, é
assim que funciona o aparato público em nosso país. O suborno é
uma constante, a despeito dos casos estrelados nos noticiários. Não
é exceção, é regra. Paga-se para conseguir qualquer coisa. E eu?
Valeria-me de propina? Claro! Deveria ter usado o dinheiro dessa
maneira. Não seria isso que contaminaria a candura da instituição.
Afinal, como diz o boçal ditado (com o perdão da palavra): “o que
é um peido para quem está cagado?”.*
Em
minha ingenuidade, vou até a delegacia, pensando tratar-se de algo
rápido (afinal, o camarada do carro disse para voltar depois de
prestar queixa). Em lá chegando, informo que quero prestar uma
queixa. O policial quer saber do quê. Ao ficar sabendo que é de um
aparelho celular, pergunta:
-
Você está com a nota fiscal?
Ah,
claro! A nota fiscal! Como podia ter esquecido? Sempre ando com as
notas fiscais de tudo que possuo. Ninguém sabe quando será
assaltado perto de uma delegacia. Se todos procedessem dessa forma
nossa polícia seria mais eficiente, pegaria mais bandidos, uma vez
que daria tempo para o lesado prestar queixa e os policiais irem em
busca do criminoso. Mas, que azar o meu, aquele dia eu havia deixado
todas as minhas notas fiscais em casa. Estava até me sentindo mais
leve!
Não
estava acreditando no que se passava. Bandidos e policiais unidos
contra o cidadão indefeso. Os primeiros agindo ativamente – botam
a arma em cima de você, gritam, roubam, agridem –, e os últimos
de forma passiva, permitindo aos marginais fugirem despreocupados,
enquanto zombam da cara do cidadão que tentou buscar auxílio. Todos
somos bombardeados com notícias de corrupção na máquina defensiva
do governo: ladrões dentro da instituição, conivência com crimes,
assassinatos a esmo. Porém, no momento do desespero, desconsideramos
tais fatos e recorremos ao órgão como se fosse o mantenedor da paz
urbana, a representação da justiça, o braço da ordem. É o medo,
o susto, a carência de apoio que nos leva a recorrer à polícia
quando da ocorrência de um crime. Não a lógica.
Deixo
a delegacia algo entre atônito e iracundo. Adianta prestar queixa? A
exigência do documento comprobatório de que o que é meu é meu é
ratificada pelo polícia como necessária ao registro da queixa. A
essa altura o marginal vai longe, certo da impunidade que grassa no
país. Ainda avisto o carro da ronda; tento ir atrás dele, mas o
motorista, agora com um colega seu no veículo, dá partida,
deixando-me para trás, desamparado. Talvez fossem almoçar; talvez
fazer coisas mais urgentes... Ou apenas tenham ido atrás das
raparigas do bairro, abundantes.
Desgraçados!
* Cumpre lembrar que esse texto foi escrito anos atrás. Hoje não pensaria em tal hipótese.
Nenhum comentário:
Postar um comentário