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segunda-feira, 7 de outubro de 2013

The Voice (do Brasil)

O Brasil, mesmo sendo um país (eternamente) emergente, é dado a costumes que o destituem de sua capacidade criativa. Um deles é o ato de importar programas televisivos idealizados em outros países, formatados para um público específico, com características e perfil próprios, e tentar aplicá-los por aqui. Embora alguns de fato vinguem (os que apelam para nossos instintos primitivos, que, a propósito, grassam entre nossa gente), outros constituem objeto de estranheza e curioso constraste. É o caso do atual programa de calouros do maior canal de TV aberta do país – imitação da versão americana, que, por sua vez, é baseada no original holandês.

O corpo de jurados é composto por artistas do mercado da música, de vertentes variadas, que fizeram sucesso em algum momento da história musical do país. Eles se mantêm de costas enquanto os candidatos se apresentam – para que se concentrem na performance vocal (que é a proposta nuclear do programa), e não se estão dando cambalhotas ou plantando bananeira no palco, como sói acontecer em programas do tipo. Eles podem decidir “adotar” algum participante (treiná-los para as próximas fases do programa), o que é indicado pelo ato de virar de frente para o mesmo. Caso mais de um o faça, o calouro pode escolher de qual deles se tornará pupilo. A fórmula é simples, mas esbarra em um fato cultural brasileiro: nosso povo não gosta de Música.

Parece um paradoxo, afinal, é comum ver as pessoas com (infernais) fones de ouvido o tempo inteiro, temos eventos musicais em todas as épocas do ano, o país é destino obrigatório para grandes nomes do mercado da música internacional, temos inúmeros artistas. No entanto... Nossa relação com a música é usurpadora, negligente, inconsequente, irresponsável, promíscua, parasitária, poluta, conspurcada, deficiente, desrespeitosa, deforme. Isso porque nos valemos apenas dos benefícios da música; a utilizamos apenas para “dar um clima”, nada tendo a ver com a arte da Música em si, a ciência de combinar os sons. O mais perto que se chega disso é aprender violão – e até isso é com fins escusos –, o que, para muitos, é a própria e única essência da música. Quando se vê alguém com uma partitura ou algo do tipo, a única pergunta possível é: “ah, você está aprendendo violão?”. Santa ignorância...

Mas aí pipocam shows de calouros onde a maioria dos que vão lá fazem apresentações espantosas, com grandes interpretações, pleno domínio vocal e técnicas que só vemos lá. A plateia se levanta, bate palmas, grita “vivas” e “hurras”, as pessoas em casa vibram e choram em frente à televisão, comentam no dia seguinte, acessam vídeos na Internet, escolhem um candidato e torcem com ele até o fim. E para quê? Para largá-los ao desprezo dali a algumas semanas, esperando por uma nova temporada do programa, a fim de repetir tudo outra vez. Pobres calouros...

A audiência e os telespectadores realmente ficam boquiabertos diante da qualidade vocal e interpretação apresentadas nesses programas, afinal, não é o que vemos ao vasculhar o repertório nacional. A propósito, por que não? Por onde andam esses cantores de vozes incríveis que nunca chegam ao sucesso? O Brasil tem histórico de cantores fracos, e por um motivo muito simples: só se dá importância às letras das músicas, neglicenciando completamente o talento vocal do intérprete. É difícil combinar um compositor e um bom cantor em uma mesma pessoa, então por aqui os autores das canções preferem eles mesmos as cantarem, ainda que sejam péssimos nisso. E como os ouvintes não têm o menor rastro de conhecimento musical para fazer qualquer tipo de crítica que não seja sentimental, o modelo se propaga, trazendo descontentamento para os que apreciam bons cantores e condenando para sempre ao desconhecimento talentos do porte de Whitney Houston e Michael Jackson, ferindo de morte o mundo da música.

Mas o mais curioso é que muitos desses que se apresentam como calouros aprenderam a cantar no meio evangélico (a propósito, coisa mais comum nos Estados Unidos), que, felizmente, ainda é um reduto onde a música é levada a sério, mas, ao mesmo tempo, sofre críticas de pessoas que acham que entendem muito de música. Até mesmo Ed Mota – músico condenado ao ostracimo por procurar caminhos musicais mais nobres – reconheceu a qualidade musical gospel, convidando alguns artistas desse segmento para cantarem junto com ele. O engraçado é que o que se diz dos cantores de igreja é que gritam em vez de cantar, mas durante os programas televisivos sobram aplausos justamente pela expressividade nos improvisos de suas apresentações. Vai entender...

O objetivo desses programas é procurar artistas rentáveis, pura e simplesmente. Engana-se quem pensa que eles têm a ver com seriedade musical. Mas com um rápido exercício de memória e um simples cálculo estatístico chegamos à conclusão de que têm sido um fracasso. Desde a re-estreia desse tipo de programa na televisão (após décadas de ausência) não há sequer um ganhador que tenha se mantido na mídia – alguns eliminados ainda conseguiram algo, o que deu margem ao mote ácido de que não se deve vencer caso se queira ter uma carreira artística. Por mais que os jurados e a direção desses programas se esforcem para descobrir uma fórmula do sucesso, não é tão simples. O irônico é que os festivais de antigamente, que buscavam artistas de interpretação original, pura e autêntica obtiveram sucesso incrivelmente maior, descobrindo talentos que até hoje estão entre nós.

Essa nulidade de resultados passa também pela visível decadência da qualidade musical do país, tanto no palco como embaixo dele. Nada que seja diferente de um ritmo ensurdecedor e enjoado aliado a letras pejorativas e de baixo calão – defendidas por muitos como livre expressão, mas que na verdade não passam do reflexo de sua mediocridade cultural, intelectual e de caráter – tem chance de sucesso. São músicas feitas para serem consumidas em orgias onde tudo é permitido, onde são estimulados os instintos mais baixos, que compartilhamos com os bichos. Tudo bem esse tipo de música existir (ao menos em uma sociedade como a nossa, marcada pela brutalidade de costumes), o problema é que seus simpatizantes (ou escravos?) as querem escutar no carro, no trabalho, em praça pública, como se fossem grandes pérolas da genialidade humana. E ninguém pode discordar deles.

E é por isso que esse tipo de programa importado, enlatado, não é condizente com nossa gente. Em outros países, como os Estados Unidos, aprende-se música na escola. O público tem maturidade suficiente para não deixar florescer músicas animalescas constituídas de apenas um verso que ainda por cima é onomatopeico. Embora a qualidade musical no mundo esteja em declínio (espera-se que seja apenas um ciclo, dado que a história é repleta deles), ainda há lugar para músicos de verdade lá, e não apenas farçantes. Embora o pop fácil de hoje em dia esteja assumindo o controle, há certa qualidade vocal na maioria dos representantes do gênero, diferentemente do que se vê por aqui, onde não se sabe nem o que é uma segunda voz. 

Esses programas são, por fim, cruéis. Iludem os aspirantes a estrela, prometem-lhes o mundo, mas ao final dão-lhes um tapinha nas costas e mandam-nos de volta à obscuridade. De volta a seus guetos, conseguem alguns poucos fãs que os abordam na rua, alguns espaços para se apresentarem e só. Um ou outro consegue o objetivo inicial. Desse modo, fazem as vezes de animais em zoológicos, onde todo mundo os acha bonitos, mas no fundo quer que eles fiquem lá, bichos estranhos, sem qualquer tipo de envolvimento, visitando-os quando der na telha. O público está de costas para a música e esses calouros são soldados de uma batalha inglória, impossível de vencer. São detentores de um dom que nunca vão conseguir usar. A frustração por não conseguirem fazer valer o talento que a Natureza lhes concedeu deve ser a maior das dores. Enquanto isso, pessoas sem talento algum ganham prêmios e mais prêmios de música, sem possuírem a menor afinidade com ela. Sem conhecerem nada dela. E o público brasileiro é o principal responsável por essa inversão de valores. Carrascos!

Pobres calouros...

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