Quem de fato são (ou deveriam ser) os beneficiários dos direitos humanos?
A matemática pode ser vista como uma das ciências mais belas e consistentes que existe. Ela tem sido usada largamente em vários campos do conhecimento e permitiu o desenvolvimento de diversas tecnologias e invenções, além de contribuir para a resolução de diversos problemas nas mais variadas situações. Apesar disso, trata-se de “um modelo perfeito para representar um mundo imperfeito”, ou seja, há um descompasso entre a teoria matemática e a realidade de nosso mundo físico (há uma extensa discussão sobre isso no meio acadêmico: trata-se do platonismo da matemática). Por exemplo, a reta real é uma representação do continuum numérico dos números reais. Desse modo, se você traça uma linha no chão, temos ali uma reta real, com os infinitos números em toda sua extensão. Matematicamente, você não seria capaz de, andando por sobre ela, dado que os passos são contínuos, e não discretos, sair do lugar, uma vez que entre dois números reais há infinitos outros números reais. Mas – surpreendentemente – você consegue! Esse é um caso bobo da não-correlação total entre uma ciência e a realidade que ela modela. Mas não é apenas a matemática que sofre desse mal. Outras ciências (e disciplinas não tão científicas assim) também esbarram por vezes na teimosia da realidade em obedecer a suas prescrições. (vamos deixar esse pensamento marinando para retomá-lo mais à frente)
Há alguns dias um vídeo gravado aqui no Brasil ganhou o mundo e repercutiu em toda a imprensa, nacional e estrangeira. Trata-se de um assalto ocorrido em pleno dia, em uma avenida da cidade de São Paulo. Uma dupla de bandidos, em uma moto, aborda um rapaz que está fazendo uma conversão, também em uma moto, e, de arma em punho, obriga-o a entregar o veículo. Terminada a ação rápida, um deles foge na primeira moto, mas o outro, que montava a moto furtada, é alvejado a tiros por um policial que estava próximo ao local do crime. O rapaz dono da moto agradece ao policial e tripudia do criminoso extendido no chão, já desinvestido da autoridade que julgava possuir e se achando a vítima (ele não vem a óbito, para a insatisfação do jovem assaltado e dos internautas que comentaram o caso nas redes sociais). Tudo foi gravado pela câmera acoplada no capacete do rapaz que quase teve a moto levada.
Esse vídeo foi reproduzido e divulgado fartamente na Internet, e logo surgiram comentários, artigos e posts a respeito. Num deles, dizia-se que a ministra dos Direitos Humanos ficou chocada pela violência do policial e do país como um todo, tomando partido pelo meliante. Outro afirmava que o polícia foi afastado do exercício da função devido a sua conduta. Um terceiro desmentia a suposta declaração da ministra. Agora sabe-se que foi uma postagem de um blog irônico, mas que foi compartilhada como sendo séria devido ao desconhecimento dos leitores. A ministra se pronunciou e ordenou a remoção do artigo do blog, ameaçando inclusive acionar a polícia federal. A informação era falsa, ambas: a da ministra – que em realidade legitimou a abordagem – e a da punição do policial, que na verdade foi condecorado com o mais alto grau de honraria da corporação. Embora ela de fato não tenha feito tal pronunciamento, todos acreditaram sem qualquer estranhamento. Por quê? (desconsidere a parvoíce de nosso povo de cada dia que lê tudo acriticamente – pelo menos só até o fim desse post)
As atuações dos representantes dos direitos humanos (ou pelo menos as visíveis), na minha opinião (e na de diversas pessoas, como pôde-se perceber do caso acima), deixam muito a desejar. Nasci e cresci em uma cidade bastante violenta, onde assaltos eram tão comuns quanto vendedores de pipoca em parques (talvez mais até). Pessoas inocentes e indefesas sofriam e morriam de acordo com a vontade dos agressores, sem poder fazer nada. O máximo que podiam fazer era se sentirem vingadas quando um desses marginais era morto por seus comparsas – ou pela polícia, o que era mais raro. O sentimento geral era de pânico e impotência. Pequenos comerciantes acordavam todos os dias para o calvário do balcão, esperando ser assaltados a qualquer momento. O medo de acordar com bandidos dentro de casa era recorrente. Uma mulher andando sozinha tarde da noite era uma fonte de preocupação para a família. Pobres velhos tinham seus salários – ou a renda conseguida pelo trabalho duro do dia vendendo algum tipo de comida num carrinho de mão empurrado rua acima, rua abaixo – tomados à força por facínoras. Em algumas localidades, os bandidos estabeleciam toque de recolher, aterrorizando os moradores e cerceando sua liberdade. Não se podia ostentar nada de valor, nem almejar ter um padrão de vida melhor, fosse trabalhando ou estudando, sob a custa de sofrer reprimendas. Dado esse panorama de agressão e terrorismo social, era de se esperar uma ação enérgica das forças responsáveis pela segurança pública, nem que fosse uma nota de compadecimento por parte dos representantes dos direitos humanos. Mas era o contrário que ocorria: quando algum criminoso era ferido ou morto ou ameaçado pela turba revoltada, logo surgiam um, dois, um caminhão de representantes dos direitos humanos para garantir seus “direitos” de – pasmem – cidadão e ser humano. O cidadão que porventura assassinasse um bandido sofria na pele as mais severas penalidades da “justiça”.
Não posso dizer que tais representantes eram queridos pela população de minha terra. E, ao que parece, eles não são bem vistos em outros lugares também. E por um motivo muito simples: eles apenas surgem para defender os fora-da-lei, enquanto a população em geral é abandonada à mercê de criminosos, sem ninguém que se condoa de suas agruras. Foi por esse motivo que tantas pessoas nem sequer pararam para pensar se a ministra de fato seria a autora da fala que lhe atribuíram. O discurso é uma colcha de retalhos de frases normalmente ditas por pessoas afetadamente avessas à realidade social: que foi a sociedade que colocou a arma na mão do criminoso, que ele não tem culpa, que é produto do capitalismo, entre outras pérolas. Esse é o ponto em que retomo a colocação do início do texto para misturar a esse fato e produzir minha posição sobre o tema.
As ciências sociais possuem muitas teorias sobre a sociedade. Verdadeiras teses, colossais, monumentais. É de dar dor de cabeça e vertigem em qualquer um. Mas tenho sérias dúvidas quanto à praticidade (ou aplicabilidade) delas. Creio que minha sensação isso se dá pelo fato de que os intelectuais sociais aparentam gastar seus dias pensando em como as pessoas vivem e limitam-se a isso: apenas pensam, sem conferir como as coisas se dão de fato. O próprio [Karl] Marx passou a vida praticamente sem trabalhar. Não sei se de fato ele conhecia as entrelinhas do trabalho desenvolvido pelos assalariados, com todo o seu microuniverso. Há uma divergência muito grande entre o que pregam os estudiosos da sociedade e o modo como ela opera. O fato é que o povo necessita de ações práticas, e não de teses de doutorado que não resolvem problema algum. O homem é um produto do meio? Sim! Não! Talvez. Depende... Isso é um assunto muito bom para se discutir em uma mesa redonda, mas para o trabalhador que se vê com uma arma apontada violenta e covardemente por um marginal que quer levar sua moto recém-comprada, qual o valor desse questionamento? O problema dele é outro, situado em outra esfera. Viver ou morrer, o instinto básico premente do ser humano. Jogar a culpa na sociedade, buscar as raízes históricas, a vida pregressa do marginal a essa altura do campeonato não tem importância alguma, muito menos resultado prático.
Concordo que uma sociedade que preza pelos direitos de todos tenha a preocupação social com seus criminosos. Mas essa preocupação tem que perpassar por toda a cadeia de risco de potenciais criminosos – ao menos dos casos mais óbvios. Deve-se acompanhar as comunidades das quais a maior parte deles se origina, cuidar da educação pública, criar oportunidades de emprego, punir exemplarmente (e dignamente) os infratores. Não apenas se deparar com o pior cenário possível consumado e querer fazer o resgate histórico dos ocorridos que culminaram naquilo, como que para justificá-lo e, assim, banalizá-lo. É fato que o ambiente influencia o desenvolvimento de um ser humano, mas devemos atribuir a ele toda e qualquer ação nossa? Algumas pessoas são mais sucestíveis a influências que outras, isso também é notório. Mas como realizar cada tratamento individualmente? Deve-se nivelar por baixo, considerando todos inocentes, ou culpar os transgressores pelo mau uso de seu livre-arbítrio?
Estamos em uma situação em que não podemos esperar todos os problemas de base serem resolvidos para agir. Por exemplo, o maior programa de assistência social e distribuição de renda do governo é uma situação paliativa (assim como a política das cotas nas universidades públicas). Ele é muito criticado porque atenua um problema que existe apenas porque questões básicas como saúde e educação não funcionam. Esse é um caso típico em que duas soluções são trabalhadas ao mesmo tempo (estou desconsiderando o fato de que não se está trabalhando para resolver os problemas centenários de educação e geração de riqueza). Às vezes isso é de fato necessário. Então, por que raios alguns intelectuais sociais se preocupam apenas com a origem dos problemas, sem atentar que é necessário uma solução para agora? Chega um momento em que se tem que colocar na balança o justo e o injusto. É imoral dispensar-lhes o mesmo tratamento, como se não houvesse mérito na justiça, ou como se ser injusto fosse louvável.
Concordo que matar um bandido não irá resolver o problema, mas tampouco deixá-lo livre para oprimir a sociedade o fará. Nesse caso, por que condenar quem lhe tira a vida? Lógico que não é a decisão mais acertada, mas qual seria então? Qual a mais útil e prática? O que é impossível concordar é destinar grande quantidade de recursos públicos para garantir direitos a meliantes enquanto a população permanece na penúria. Lembro de vezes em que até helicópteros foram utilizados para transportar criminosos da delegacia até o hospital. Quando um cidadão de bem terá essa regalia? Isso recrudesce a sensação de que não vale a pena ser justo e de que o governo é leniente com os transgressores da lei. Havia um desenho que assistia quando criança em que o personagem do bem sempre dizia, quando alguém sugeria que exterminassem os capangas do mal: “se fizermos isso, seremos piores que ele”. Será? Era um desenho americano. Depois vi que nas produções japonesas (um país com criminalidade baixíssima) todos os praticantes do mal eram exterminados. O que será que isso quer dizer? Talvez o Japão não seja um país civilizado, afinal. Mas o Brasil com certeza é.
Não faço apologia da pena de morte ou algo do tipo, mas não me conformo em tratar uma pessoa de bem igual a um facínora apenas porque, em um momento de fúria e desamparo do estado, pôs ele mesmo um fim a quem o infligia tanto sofrimento. Acaso ele, devido a isso, deixa de ser humano ao ponto de não ter defesa dos direitos humanos? Há muita coisa a ser acertada nesse país, e uma delas, a mais urgente, é tratar cidadãos de bem como cidadãos de bem e infratores como infratores.
Clique aqui para assistir ao vídeo do flagrante.
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