A reposta humilde e chocante (?) de um jovem talento da música.
Há uns dias encontrei um vídeo na
Internet de uma criança (ou pré-adolescente, pois tinha doze anos)
se apresentando como calouro em um canal da TV aberta brasileira.
Devo dizer que foi uma das apresentações mais marcantes e
sensacionais que já vi. Impressionado com tamanho talento, busquei
mais vídeos do menino. Encontrei outros tão incríveis quanto o
primeiro e outros nem tanto. Em meio a esses últimos, um em particular me chamou a atenção. Foi uma participação dele no
programa Esquenta da Rede Globo, comandado por Regina Casé –
trata-se de um programa que tenta glorificar todo tipo de cultura que
existe Brasil afora, tentando mostrar os valores de nosso povo tão
diverso. Perguntado se era fã de Michael Jackson, a resposta do
convidado foi: “(...) com certeza. Todo mundo é fã do Michael
Jackson”.
Após essa declaração, nota-se um silêncio de milésimos de segundos – como se fossem todos pegos de surpresa –, após os quais alguns músicos ali presentes ensaiam uma salva de palmas e uma interjeição de simpatia à declaração – para a frase não ficar sem resposta –, seguidos timidamente pela plateia. A apresentadora também sai pela tangente, dizendo-se igualmente fã do artista falecido. Tudo é muito rápido, mas o fato merece uma reflexão.
O garoto em questão atende pelo nome artístico de Jotta A. Surgiu no cenário televisivo no Programa Raul Gil, da TV Record, em 2011. Em sua primeira apresentação, cantou uma canção cristã conhecida em todo o mundo (ele é evangélico), intitulada Agnus Dei, composta por um dos mais conhecidos músicos do meio, o americano Michael W. Smith. Quando terminou a música, a plateia o aplaudia de pé, em êxtase (o que se tornou uma constante durante suas participações). Os componentes do júri estavam boquiabertos. Uns diziam ser perfeito, outros o aplaudiram de pé, outros choraram durante toda a apresentação. Durante o concurso, ele realizou uma dezena de apresentações fantásticas. Quando interpretou outro sucesso mundial, Oh Happy Day, até os músicos instrumentistas do programa, contratados para acompanhar os participantes, o aplaudiram. Seus vídeos correram o mundo, somando mais de trinta milhões de acessos no Youtube. É possível ver comentários dos mais diversos países, em inglês, espanhol e idiomas menos conhecidos. Internautas relataram ir às lágrimas ao ouvirem-no cantar. Pessoas do exterior chamaram-no para se apresentar em seus países, enquanto outros vieram ao Brasil para conhecê-lo. Produtores de artistas mundialmente famosos quiseram assinar contrato com ele. Ele foi o vencedor do concurso, e o CD gravado logo após o mesmo rapidamente atingiu a marca de oitenta mil cópias vendidas, garantindo-lhe disco de platina. Diversos vídeos gravados antes do sucesso surgiram, gravados em igrejas, casas, escolinha, e até mesmo num carro. Recebeu prêmios em eventos gospel. Foi elogiado por veteranos. Cantou e gravou com outros tantos. O garoto de voz aguda e capacidade de improviso que poucos adultos têm, que conseguia produzir sons gulturais, que começou a cantar com três anos e gravou o primeiro trabalho aos seis, ganhou o mundo. A comparação foi inevitável: “niño brasileño con una voz como la de Michael Jackson”, diz o título de seu vídeo mais visto mundo afora.
Com o enorme sucesso, o menino poderia subir em um pedestal e olhar os outros lá de cima. Poderia preparar uma cama de orgulho e se deitar nela (e provavelmente seria o maior erro de sua vida, e talvez ele soubesse disso). Mas, diante da pergunta simples, o menino que impressionou o mundo cantando e que entende como poucos a linguagem da música, deu uma resposta simples, que julgou ser a mais apropriada e óbvia (com a humildade que apresentou durante suas apresentações como calouro): “todo mundo é fã de Michael Jackson”.
Provavelmente o público não entendeu suas palavras. Afinal, para a maioria dos presentes, o artista conhecido como Rei do Pop não passava de uma figura esquisita de hábitos estranhos e que morreu de forma inglória. Para muitos, um criminoso, acusado que foi de pedofilia – embora nada se tenha provado até hoje. Os mais antigos ali presentes ainda poderiam saber um pouco mais sobre o astro, mas os mais novos ignoram sua carreira. Não sei o quanto o garoto Jotta A sabe da vida de Michael Jackson, mas sua resposta, além de humilde, é bastante sóbria. Não se trata de gostar de sua música, mas de reconhecer e reverenciar seus feitos artísticos.
Michael Jackson foi um menino prodígio e um fenômeno da música e do show business. Ele não foi um cantor, nem um compositor, ou um dançarino. Ele congregava o superlativo de todas essas habilidades, o que o tornava um artista completo – embora não seja certo que pudesse tocar algum instrumento, produzia com a boca os arranjos para suas músicas (a propósito, era dono de um beatbox – percussão vocal – impressionante). Como cantor, iniciou aos oito anos com seus irmãos no grupo The Jackson 5, logo assumindo o destaque do grupo, com sua voz aguda e interpretação marcante. Ao longo da carreira, desenvolveu um estilo único de cantar, inconfundível e praticamente inimitável. Como compositor, criou dezenas de canções inesquecíveis e que fizeram sucesso no mundo todo, até os dias atuais. Quando compunha, não escrevia as músicas. Utilizava um gravador para registrá-las, já que as idealizava com parte dos arranjos, como algumas bases, percussão e linha de baixo. Quando o fazia, entrava em um estado de êxtase que o impelia a terminar a composição rapidamente (ao criar Billie Jean, não percebeu que o carro que dirigia estava pegando fogo). Como dançarino, apresentava domínio corporal pleno, realizando passos de difícil execução, como quando imitava um robô. Mas sem dúvida sua marca registrada foi a divulgação do moonwalk (efeito visual em que o dançarino dá passos para frente, mas se move para trás), o passo de dança mais famoso do mundo.
Não se pode dizer que o fenômeno Michael foi tão somente um ponto de ruptura no meio musical. Ele foi antes uma intersecção entre ritmos e escolas. Alguns de seus álbuns foram produzidos por Quincy Jones, um trompetista da velha-guarda do jazz que tocou com nomes como Count Basie, Duke Ellington, Gene Krupa e Ray Charles. Paul Jackson Jr, outro jazzista (guitarra), mas da nova geração, também participou de gravações suas. Alguns grandes guitarristas do rock também tocaram com ele, como Slash (Guns'n'Roses) e Eddie Van Halen (Van Halen) – um dos dez melhores guitarristas de todos os tempos. Michael cantou pop, R&B, soul, rock, funk, disco. O impacto de sua música foi tão grande que alterou a filosofia da MTV (na época, um canal recente) de rock para pop, ajudando-a a entrar em evidência. Seus videoclipes são marcos do gênero, revolucionando o que se tinha produzido até então (alguns inclusive foram dirigidos por roteiristas consagrados no cinema, como Martin Scorsese). Ele também foi responsável por abrir as portas do show business para artistas negros. Sua influência sobre os artistas posteriores a ele é praticamente impossível de calcular, de tão presente que é.
O número de premiações e recordes obtidos por Michael impressiona – principalmente porque é o artista que detém o maior número de troféus e títulos. É o artista que mais vendeu em toda a história da música, e Thriller é o álbum mais vendido de todos os tempos (há artistas que nem em décadas de carreira conseguem vender tantas cópias quanto apenas esse disco). Ele tem seu nome registrado duas vezes na Rock and Roll Hall of Fame (feito que apenas cerca de uma dezena de artistas conseguiu), é o único dançarino pop que figura na Dance Hall of Fame, além de figurar na Songwriters Hall of Fame. Recebeu homenagem de dois presidentes americanos. Foi denominado artista da década de oitenta, do século XX, do milênio e lenda da música. Também mantém o recorde de downloads na Internet. Seu perfeccionismo era tanto que até os engenheiros de som de seus discos eram premiados. Quando morreu, a quantidade de tráfego gerado na web congestionou diversos servidores, inclusive fazendo o Google suspender por meia hora a busca por seu nome, pensando tratar-se de um ataque. Um tráfego que dificilmente irá se repetir.
Retomando nosso garoto do início do texto, não sei se ele conhece todos esses fatos relacionados a seu ídolo – e tantos outros que há, mas nos falta espaço aqui para citá-los. O que creio ser mais provável é que sua conclusão (“todo mundo é fã do Michael Jackson”) foi baseada no reconhecimento musical por parte de outra pessoa também agraciada com o dom da música. Os brasileiros são bons em enterrar grandes artistas nas areias do tempo e dar mais importância a fatos escandalosos que ao talento genuíno. Mas que bom que existem pessoas, mesmo muito jovens, que possuem a humildade de dar honra a quem tem honra, escolhendo seus ídolos a partir de suas próprias conclusões, e não guiando-se por recomendações suspeitas de quem pouco entende do assunto.
Apresentações do Jotta A no Programa Raul Gil
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