Será a recente onda de ativismo pelas minorias um movimento sólido ou apenas um modismo?
Protestos sempre existiram na
sociedade moderna – direitos dos negros, direitos das mulheres,
direitos dos trabalhadores. Cada grupo defendia suas causas e muitos
foram os benefícios alcançados através dessas manifestações.
Hoje em dia podemos contemplar um novo levante de insatisfeitos
erguendo bandeiras, mas, em geral, divergem em um ponto em relação
aos protestos de outrora: esses manifestantes defendem outras classes
que não a sua*. Ou seja, não pertencem ao grupo pelo qual lutam.
São idealistas de uma causa, movidos, à primeira vista, pelo
altruísmo e empatia. Será mesmo?
Acredito que, antes de sermos seres
sociais, somos seres biológicos, com uma constituição
pré-concebida do que viremos a ser durante o curso da vida. Esta
talvez seja a razão de existirem perfis psicológicos que se repetem
nas mais diversas sociedades, compondo um padrão mais ou menos
definido (a quantidade de padrões diverge entre as correntes
psicológicas: algumas afirmam serem quatro, ou nove, enquanto outras
atestam que são onze ou treze, e outras mais). Entre esses grupos,
parece haver (e isso é, advirto, percepção minha) um tipo
contestador e rebelde, que defende sua ideologia acima de tudo, não
importando que para isso tenha que afrontar a outros. Ao que me
parece, o atual modo ativista se presta bem a esse papel
comportamental. Tendo a causa como mero pretexto, a ênfase está no
método adotado.
Não faz muito tempo, houve um dia
oficial de paralisações sindicais país afora. Como fui impedido de
acessar as instalações da empresa onde trabalho, decidi visitar
minha família, que mora a poucas centenas de quilômetros. Qual não
foi minha surpresa (aqui, eufemismo para indignação) ao ser
informado que a estrada (de administração federal) estava bloqueada
devido aos protestos. Após mais de uma hora de trânsito lento,
consigo sair da cidade por uma rota alternativa – que, soube
depois, só não foi também interditada devido à falta de pessoal
suficiente. Essa é uma característica desses novos movimentos:
acreditar que suas causas estão acima de tudo, e que todos devem
concordar com eles e aceitar participar direta ou indiretamente de
suas reivindicações, uma vez que acreditam buscar o bem de todos –
embora elejam algumas minorias em especial.
É louvável defender uma causa,
principalmente quando não se pertence à classe em questão, mas é
importante não subverter as regras sociais básicas com o intuito de
levá-la adiante – a menos que o objetivo seja de fato substituir
regras sociais elementares. Impedir o direito de ir e vir, por
exemplo, não me parece um bom método para angariar simpatizantes,
além de ser uma boa demonstração de que desrespeitar as leis e os
cidadãos não envolvidos no caso é algo que se deseja promover –
e não estamos falando de desobediência civil, embora muitos deles
declarem agir de acordo com esse conceito. Não se trata de uma
condenação do ato de protestar, mas de uma crítica ao protesto
vazio e sem objetivos, sem alvos, que banaliza o direito cívico de
promover manifestações legítimas.
Um agravante para esse novo movimento
é o fato de que, por ter se tornado politicamente correto – até
mesmo cult – defender
causas sociais (ou ambientais), o
coro tem engrossado com vozes tão-somente
situacionais, ou seja, pessoas não engajadas de fato, mas que
acreditam ser moralmente recomendável
defender alguma causa –
querem aparecer. À
primeira vista, isso parece ser bom, mas
esses membros pouco envolvidos parecem contribuir mais com
trapalhadas do
que com atitudes sérias. Confundindo ideias e vislumbrando situações
que não existem, terminam por propagar antipatia ao movimento do
qual fazem parte. Mas não
apenas eles. Alguns dos militantes mais aguerridos também
enxergam um mundo que precisa
ser salvo, reduzindo-o tão
somente a sua visão
partidarista, maniqueísta, autoproclamando-se salvadores da
humanidade.
Nisso
incorrem
em uma de suas maiores fraquezas: a incoerência. Não
raro se valem de argumentos
fracos e atitudes que
reprovam nos outros, mas que
empregam largamente, como que
justificadas pela grandeza de suas atitudes. Afirmam
estudar e saber mais que qualquer outro sobre os assuntos de seu
interesse (embora limitem-se
a uma visão unilateral do mundo, lendo apenas pensadores que
sustentam seus princípios),
tentando com isso minar um debate que poderia ser proveitoso. Não
admitem opinião contrária as suas, alegando que tudo já foi
discutido e deliberado por eles, não sendo mais necessário
argumentar a respeito – assumindo
o papel de donos da verdade.
Quando em debate, exasperam-se, vociferam
e realizam ataques pessoais. Desaprovam
qualquer ideologia contrária, meneando a cabeça em
sinal de desprezo, sem querer
ouvir ou se
esforçar em rebater os
argumentos alheios,
julgando seus adeptos como
intelectualmente inferiores. Ou
seja, são tão intolerantes
quanto o pior conservador,
diferenciando-se deste
apenas por estar do outro
lado no
campo das ideias.
É comum também aderirem a uma causa
sem sequer conhecê-la. São doutrinados por militantes antigos e
passam a vomitar suas palavras de ordem, sem checar o contexto dos
fatos e se importar de fato com os indivíduos que supostamente
defendem. Lembro muito bem de um caso que se passou na universidade
de minha segunda graduação, quando uma funcionária do restaurante
universitário foi morta pelo ex-marido em seu local de trabalho. Em
um grupo de uma rede social da universidade, um aluno filiado a uma
frente nacional estudantil postou uma mensagem-clichê convocando os
demais estudantes a realizarem um evento em protesto ao ocorrido –
sem objetivos claros ou mesmo definidos, se é que os havia. Na
mensagem, ele afirmava que a mulher morta era negra e pobre e que
esses seriam os motivos de ela ter sido assassinada, e não a falta
de segurança generalizada da universidade, onde carros já foram
roubados, alunas estupradas e pessoas assaltadas. Não tardou para
surgirem comentários contrários à convocação. Em um deles, um
aluno desmentiu o fato de a vítima ser negra: estava com uma foto da
mesma. Outra aluna levantou uma questão pertinente: será que haviam
visitado a família da vítima, ido ao velório, ou apenas
aproveitavam o momento para se autopromover? A questão é que, na
primeira colocação, a cartilha do movimento ensina que todo pobre é
automaticamente negro, e, no segundo caso, não faz menção alguma a
conhecer as vítimas de perto: apenas a causa importa; os eventuais
personagens não passam de estatísticas frias, sem rostos ou nomes.
Ou seja, muitos deles não pasam de
alienados, tão alienados quanto os capitulantes inertes do sistema.
Longe de pensarem sobre suas bandeiras, enxergam apenas o que querem,
filtrando tudo que lhes chega e compondo mesmo situações que não
existem. Embora admitam lutar contra uma espécie de tirania, algumas
de suas causas não passam de busca por impor suas convicções a
todos, constituindo-se apenas em substituição de uma repressão por
outra. A despeito de se denominarem paladinos da justiça, a verdade
é que não são. São tão comuns como qualquer outro grupo, apenas
divergem dos que estão no poder. Se residissem na Arábia Saudita ou
Afeganistão, talvez fossem jihadistas ou xiitas, tentando converter
o mundo e condenando os contrários a sua fé. É necessário
analisar com bastante cautela quais de suas reivindicações são
realmente válidas e quais não passam de romantismo libertário;
arroubos ressentidos de pessoas que gostariam de ter participado de
fatos políticos importantes ocorridos décadas atrás, mas não eram
nascidas.
Muitos são apenas revoltados, e
seriam revoltados sob quaisquer circunstâncias. Pessoas desse grupo
social-psicológico muitas vezes vestem-se de modo a chocar e
provocar, ouvir músicas que os distingam dos demais, transformar a
aparência em algo que se possa chamar de bizarro. Outras também
tornam-se ativistas. Basicamente, buscam chamar a atenção através
da diferença, uma vez que não se enquadram nos padrões seguidos
pela sociedade, onde dificilmente seriam notados – e muitos deles
abandonam seus ideais ao atingirem certa idade, vencidos que são
pelo sistema. Acercam-se de seus semelhantes, leem e discutem apenas
livros e ideias relacionadas a sua doutrina, abandonando assim uma
ideia plural do mundo, mas pensam que conhecem a realidade, não
enxergando que apenas conhecem o universo que construíram para si
mesmos. Apesar de constar em suas cartilhas que devem atacar
fervorosamente religiões, não se diferenciam em nada de muitos
fieis a quem criticam. O discurso repleto de lugares-comuns é um bom
exemplo dessa padronização, produto de doutrinação ideológica. E
é essa ideologia que pretendem fazer adotada por todos, sem saber se
de fato é o que as pessoas almejam e não raras vezes
desconsiderando fatores básicos da índole humana e focando em
teorias fugidias sem projeto prático de resultados. Concentram seus
esforços apenas nos problemas, sem investigar suas causas, baldando
seus esforços em resolvê-los de verdade. Em situações extremas,
terminam por fomentar problemas de seu interesse, ao patrocinar
liberdades individuais que resultam em desastres sociais.
A questão não é pensar ou agir
diferente. Muito menos se importar com desfavorecidos. O ponto é ter
objetivos claros e coerentes. Construir mudança social através dos
instrumentos sociais. Respeitar a liberdade de expressão de
opositores e valer-se de argumentos sólidos, e não apenas de
vontade e querer. Analisar o mundo de facto
livre de pré-julgamentos e juízos de valor a fim de compreendê-lo
em sua integralidade. Estão de parabéns os que lutam de acordo com
esses princípios.
* Os movimentos antigos citados
contavam com simpatizantes de fora da classe reclamante, mas eram
muito poucos em comparação com o corpo total.
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