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segunda-feira, 17 de fevereiro de 2014

Militantes

Será a recente onda de ativismo pelas minorias um movimento sólido ou apenas um modismo?


Protestos sempre existiram na sociedade moderna – direitos dos negros, direitos das mulheres, direitos dos trabalhadores. Cada grupo defendia suas causas e muitos foram os benefícios alcançados através dessas manifestações. Hoje em dia podemos contemplar um novo levante de insatisfeitos erguendo bandeiras, mas, em geral, divergem em um ponto em relação aos protestos de outrora: esses manifestantes defendem outras classes que não a sua*. Ou seja, não pertencem ao grupo pelo qual lutam. São idealistas de uma causa, movidos, à primeira vista, pelo altruísmo e empatia. Será mesmo?

Acredito que, antes de sermos seres sociais, somos seres biológicos, com uma constituição pré-concebida do que viremos a ser durante o curso da vida. Esta talvez seja a razão de existirem perfis psicológicos que se repetem nas mais diversas sociedades, compondo um padrão mais ou menos definido (a quantidade de padrões diverge entre as correntes psicológicas: algumas afirmam serem quatro, ou nove, enquanto outras atestam que são onze ou treze, e outras mais). Entre esses grupos, parece haver (e isso é, advirto, percepção minha) um tipo contestador e rebelde, que defende sua ideologia acima de tudo, não importando que para isso tenha que afrontar a outros. Ao que me parece, o atual modo ativista se presta bem a esse papel comportamental. Tendo a causa como mero pretexto, a ênfase está no método adotado.

Não faz muito tempo, houve um dia oficial de paralisações sindicais país afora. Como fui impedido de acessar as instalações da empresa onde trabalho, decidi visitar minha família, que mora a poucas centenas de quilômetros. Qual não foi minha surpresa (aqui, eufemismo para indignação) ao ser informado que a estrada (de administração federal) estava bloqueada devido aos protestos. Após mais de uma hora de trânsito lento, consigo sair da cidade por uma rota alternativa – que, soube depois, só não foi também interditada devido à falta de pessoal suficiente. Essa é uma característica desses novos movimentos: acreditar que suas causas estão acima de tudo, e que todos devem concordar com eles e aceitar participar direta ou indiretamente de suas reivindicações, uma vez que acreditam buscar o bem de todos – embora elejam algumas minorias em especial.

É louvável defender uma causa, principalmente quando não se pertence à classe em questão, mas é importante não subverter as regras sociais básicas com o intuito de levá-la adiante – a menos que o objetivo seja de fato substituir regras sociais elementares. Impedir o direito de ir e vir, por exemplo, não me parece um bom método para angariar simpatizantes, além de ser uma boa demonstração de que desrespeitar as leis e os cidadãos não envolvidos no caso é algo que se deseja promover – e não estamos falando de desobediência civil, embora muitos deles declarem agir de acordo com esse conceito. Não se trata de uma condenação do ato de protestar, mas de uma crítica ao protesto vazio e sem objetivos, sem alvos, que banaliza o direito cívico de promover manifestações legítimas.

Um agravante para esse novo movimento é o fato de que, por ter se tornado politicamente correto – até mesmo cultdefender causas sociais (ou ambientais), o coro tem engrossado com vozes tão-somente situacionais, ou seja, pessoas não engajadas de fato, mas que acreditam ser moralmente recomendável defender alguma causa – querem aparecer. À primeira vista, isso parece ser bom, mas esses membros pouco envolvidos parecem contribuir mais com trapalhadas do que com atitudes sérias. Confundindo ideias e vislumbrando situações que não existem, terminam por propagar antipatia ao movimento do qual fazem parte. Mas não apenas eles. Alguns dos militantes mais aguerridos também enxergam um mundo que precisa ser salvo, reduzindo-o tão somente a sua visão partidarista, maniqueísta, autoproclamando-se salvadores da humanidade.

Nisso incorrem em uma de suas maiores fraquezas: a incoerência. Não raro se valem de argumentos fracos e atitudes que reprovam nos outros, mas que empregam largamente, como que justificadas pela grandeza de suas atitudes. Afirmam estudar e saber mais que qualquer outro sobre os assuntos de seu interesse (embora limitem-se a uma visão unilateral do mundo, lendo apenas pensadores que sustentam seus princípios), tentando com isso minar um debate que poderia ser proveitoso. Não admitem opinião contrária as suas, alegando que tudo já foi discutido e deliberado por eles, não sendo mais necessário argumentar a respeito – assumindo o papel de donos da verdade. Quando em debate, exasperam-se, vociferam e realizam ataques pessoais. Desaprovam qualquer ideologia contrária, meneando a cabeça em sinal de desprezo, sem querer ouvir ou se esforçar em rebater os argumentos alheios, julgando seus adeptos como intelectualmente inferiores. Ou seja, são tão intolerantes quanto o pior conservador, diferenciando-se deste apenas por estar do outro lado no campo das ideias.

É comum também aderirem a uma causa sem sequer conhecê-la. São doutrinados por militantes antigos e passam a vomitar suas palavras de ordem, sem checar o contexto dos fatos e se importar de fato com os indivíduos que supostamente defendem. Lembro muito bem de um caso que se passou na universidade de minha segunda graduação, quando uma funcionária do restaurante universitário foi morta pelo ex-marido em seu local de trabalho. Em um grupo de uma rede social da universidade, um aluno filiado a uma frente nacional estudantil postou uma mensagem-clichê convocando os demais estudantes a realizarem um evento em protesto ao ocorrido – sem objetivos claros ou mesmo definidos, se é que os havia. Na mensagem, ele afirmava que a mulher morta era negra e pobre e que esses seriam os motivos de ela ter sido assassinada, e não a falta de segurança generalizada da universidade, onde carros já foram roubados, alunas estupradas e pessoas assaltadas. Não tardou para surgirem comentários contrários à convocação. Em um deles, um aluno desmentiu o fato de a vítima ser negra: estava com uma foto da mesma. Outra aluna levantou uma questão pertinente: será que haviam visitado a família da vítima, ido ao velório, ou apenas aproveitavam o momento para se autopromover? A questão é que, na primeira colocação, a cartilha do movimento ensina que todo pobre é automaticamente negro, e, no segundo caso, não faz menção alguma a conhecer as vítimas de perto: apenas a causa importa; os eventuais personagens não passam de estatísticas frias, sem rostos ou nomes.

Ou seja, muitos deles não pasam de alienados, tão alienados quanto os capitulantes inertes do sistema. Longe de pensarem sobre suas bandeiras, enxergam apenas o que querem, filtrando tudo que lhes chega e compondo mesmo situações que não existem. Embora admitam lutar contra uma espécie de tirania, algumas de suas causas não passam de busca por impor suas convicções a todos, constituindo-se apenas em substituição de uma repressão por outra. A despeito de se denominarem paladinos da justiça, a verdade é que não são. São tão comuns como qualquer outro grupo, apenas divergem dos que estão no poder. Se residissem na Arábia Saudita ou Afeganistão, talvez fossem jihadistas ou xiitas, tentando converter o mundo e condenando os contrários a sua fé. É necessário analisar com bastante cautela quais de suas reivindicações são realmente válidas e quais não passam de romantismo libertário; arroubos ressentidos de pessoas que gostariam de ter participado de fatos políticos importantes ocorridos décadas atrás, mas não eram nascidas.

Muitos são apenas revoltados, e seriam revoltados sob quaisquer circunstâncias. Pessoas desse grupo social-psicológico muitas vezes vestem-se de modo a chocar e provocar, ouvir músicas que os distingam dos demais, transformar a aparência em algo que se possa chamar de bizarro. Outras também tornam-se ativistas. Basicamente, buscam chamar a atenção através da diferença, uma vez que não se enquadram nos padrões seguidos pela sociedade, onde dificilmente seriam notados – e muitos deles abandonam seus ideais ao atingirem certa idade, vencidos que são pelo sistema. Acercam-se de seus semelhantes, leem e discutem apenas livros e ideias relacionadas a sua doutrina, abandonando assim uma ideia plural do mundo, mas pensam que conhecem a realidade, não enxergando que apenas conhecem o universo que construíram para si mesmos. Apesar de constar em suas cartilhas que devem atacar fervorosamente religiões, não se diferenciam em nada de muitos fieis a quem criticam. O discurso repleto de lugares-comuns é um bom exemplo dessa padronização, produto de doutrinação ideológica. E é essa ideologia que pretendem fazer adotada por todos, sem saber se de fato é o que as pessoas almejam e não raras vezes desconsiderando fatores básicos da índole humana e focando em teorias fugidias sem projeto prático de resultados. Concentram seus esforços apenas nos problemas, sem investigar suas causas, baldando seus esforços em resolvê-los de verdade. Em situações extremas, terminam por fomentar problemas de seu interesse, ao patrocinar liberdades individuais que resultam em desastres sociais.

A questão não é pensar ou agir diferente. Muito menos se importar com desfavorecidos. O ponto é ter objetivos claros e coerentes. Construir mudança social através dos instrumentos sociais. Respeitar a liberdade de expressão de opositores e valer-se de argumentos sólidos, e não apenas de vontade e querer. Analisar o mundo de facto livre de pré-julgamentos e juízos de valor a fim de compreendê-lo em sua integralidade. Estão de parabéns os que lutam de acordo com esses princípios.


* Os movimentos antigos citados contavam com simpatizantes de fora da classe reclamante, mas eram muito poucos em comparação com o corpo total.

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