Os lutadores de uma causa devem antes preocupar-se em conscientizar as pessoas que há visões alternativas de mundo, mas nunca devem arrogar-se o título de detentores da verdade absoluta.
The Matrix (1999), filme
dos irmãos Wachowski, foi um grande sucesso sob vários aspectos.
Criou escola com seus efeitos especiais, lançou tendências,
influenciou segmentos. Suas intrincadas referências (filosóficas,
religiosas, tecnológicas, literárias, etc.) geraram calorosas
discussões por parte dos fãs e diversos livros para dissecar os
elementos presentes no filme. A obra pode ser analisada (e vista) sob
diversos aspectos: apenas recreação, filosoficamente, etc.
De modo resumido, o filme narra uma
distopia em um futuro onde as máquinas dominaram os seres humanos e
passam a cultivá-los, controlando sua reprodução, mantendo-os em
estado de dormência permanente e fazendo-os sonhar todo o tempo,
alimentando-se da energia gerada por seus cérebros durante esse
processo. Esses sonhos seriam a realidade que vivemos hoje, simulada
pelas máquinas. Daí advém o nome do filme: Matrix é o nome do
mundo virtual onde os humanos pensam que realmente vivem. No entanto,
há um grupo que, de alguma maneira, consegue despertar e sair da
Matrix, conhecendo assim o mundo real – um ambiente caótico em uma
Terra destruída e escura. Esse pequeno exército entra e sai da
Matrix clandestinamente a fim de libertar outras pessoas – motivo
pelo qual é perseguido por agentes das máquinas infiltrados na
Matrix. Mostra-lhes a verdade: que vivem uma ilusão e que têm a
escolha de permanecer desse modo ou despertar para a realidade.
Esse paralelo tem sido utilizado
largamente em nosso meio. Diversos grupos alertam que vivemos em uma
matrix, iludidos pelo governo, pela mídia, pelo senso comum, pela
cultura de massa, pelas convenções sociais, etc. De fato, muitos
não se apercebem que no mundo há muito mais do que nos é
apresentado. Há opções ocultas, há informações escondidas
convenientemente, há histórias e dados forjados, mentiras
descaradas, verdades desconhecidas. O acesso a informações nem
sempre é fácil, o que contribui para que muitos sigam suas vidas
alheios de tudo o que está além da mera visão cotidiana.
Mas a trama do filme traz um fato
digno de observação: uma das pessoas retiradas da Matrix se
arrepende. Mesmo sabendo da verdade, ela prefere voltar para lá,
onde a vida pode ser mais confortável, mesmo sabendo que não passa
de um sonho. Para retornar à antiga vida, trai seus companheiros,
mas acaba morto. Esse é um caso aparentemente pouco ou nada
explorado, mas que pode ser esclarecedor.
Recentemente, os partidários de
algumas causas sociais antigas e outras novas, como o feminismo, por
exemplo, buscam despertar as pessoas para suas lutas, mais ou menos
como os personagens do filme. De acordo com eles, estão libertando
as pessoas da matrix do mundo real, tornando-as cientes de que são
enganadas, de que não enxergam o que não está patente ou de que
não vivem a verdade plena como deveria ser. Conclamam-nas a se
juntarem à luta. E, como os bravos do filme que libertam os humanos
dormentes, consideram que os libertos têm a obrigação de
segui-los. Se não o fazem, ou se não os ouvem, muitas vezes são
insultados e julgados de diversas maneiras. Embora seja louvável
querer romper com o tradicional, principalmente se pernicioso, há
uma questão a se considerar.
Mostrar que há outras realidades além
da ordinária não significa que elas sejam mais desejáveis que a
que se conhece, ou mesmo melhores. Por isso a motivação da luta não
deve ser por converter alguém ou recrutar colaboradores, mas sim de
dar-lhes o poder da escolha. Escolhas só podem ser feitas quando há
opções, para o que deve-se ir além do que está aparente, e para
isso os movimentos se prestam. Mas isso não significa que sua visão
do mundo real esteja sempre correta, absolutamente. Ela pode ser
apenas mais uma realidade paralela, não-intencionalmente enganosa.
Por que não admitir que algumas pessoas, conhecendo as supostas
ilusões do mundo atual, prefiram as coisas do jeito que estão?
Talvez elas nem sejam ilusões afinal. Ou sejam só um pouco, de modo
que não se justifique uma mudança radical que não proporcione
grandes benefícios.
Afinal, quem sabe se não há de fato
diferenças no comportamento de homens e mulheres? Quem pode dizer
que o “padrão de beleza” é realmente superficial? Pode ser que
as pessoas gostem mais de viver em um mundo consumista que
compartilhar tudo com todos. Deve haver os que prefiram mesmo aceitar
todos os dogmas de uma religião, seita ou partido. O imprescindível,
e essa deve ser a luta, é ter à disposição opções que tornem as
escolhas uma decisão pessoal. Qualquer tentativa de premer quem quer
que seja a escolher um determinado caminho invalida a luta pela
verdade. A liberdade de escolha é o bem maior que justifica essa
luta.
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