Milena contava dez anos,
mas em nada se assemelhava a uma criança de uma década. Não pelo
tamanho. Sua estatura a denunciava, salvo se comparada aos casos das
pessoas acometidas de pequena altitude perpétua. Embora não
atingisse ainda a altura das mulheres comuns, era por assim dizer uma
mulher em miniatura. Gostava do cabelo negro e brilhante, levemente
ondulado, espraiando-se pelos ombros, com o qual brincava,
prendendo-o em vão por detrás das pequenas orelhas. O corpo era
esguio, mas a magreza era de tal graça que denunciava um princípio
de corpo feminino, do qual se gabava muito. Mas era um orgulho
inocente, brejeiro, desses que nos fazem rir. Inventava desfiles e
trejeitos apenas para fazer inveja e arrancar elogios às
coleguinhas. Movia-se rápido e sempre, como que para gastar a grande
energia que guardava dentro de si. Gostava dos lábios bem vermelhos,
o rosa natural sobrepujado por um vermelho de batom vivo. Era a
moldura de um sorriso de dentes pequenos e alinhados. Longe de usar
as roupas reservadas a sua faixa etária, preferia as da moda, das
mulheres jovens e vivazes, desprezando sapatos mimosos e fofos laços.
Tinha uns olhos negros e redondos, que pareciam movidos a motor, de
tão inquietos que eram. Seu único defeito era o leve estrabismo,
que só os muito observadores notavam. No entanto, isso não
contribuía para comprometer a harmonia da pequena. Era de todo
bonita.
Mas o que mais
impressionava nela era seu gênio. Era daquelas pessoas da qual todos
se agradam. Tanto os fechados e ranzinzas como os alegres e festivos.
Milena, ainda que com sua pouca idade, conseguia encontrar o rumo
certo da prosa para cada tipo de pessoa. Bastante esperta, árdua
tarefa era enganá-la. Verbosa e de uma curiosidade instigante,
perguntava coisas aos outros, demonstrava interesse por histórias,
prestava atenção aos modos das pessoas. Nisso destoava da irmão
mais velha, que, apesar de gentil, parecia andar sempre sonolenta.
Também não se assemelhava em nada àqueles interlocutores que se
prestam a papel de ouvintes apenas. Contava casos, ilustrava, dava
conselhos, contestava. Era de uma vivacidade que impressionava. Em
poucos instantes fazia do desconhecido um amigo de anos. Produzia
nesse uma confiança que o fazia contar até os segredos mais
ocultos. Era bastante prestativa, principalmente com os mais velhos,
que logo a cobriam de elogios e galanteios, que adorava. Só não
aceitava infligirem-lhe ideias sem lógica, leis infundadas, regras
sem propósito. Todas essas coisas a aborreciam, e lutava até onde
podia com as autoridades caprichosas.
Certa vez viajava
sozinha, voltando de férias em casa de parentes. Moravam distante,
em um lugar de costumes diferentes e pessoas estranhas. Essa
estranheza durou apenas uma semana, ao cabo da qual tudo e todos já
lhe eram familiares, de modo que entristeceu um pouco por ter que
voltar a casa. Embarcaram-na e iria sozinha encontrar sua mãe que a
buscaria quando chegasse. Não estava nervosa nem apreensiva, pois já
viajara sozinha antes. Viagens menos longas, mas para ela não havia
diferença, certa que estava de que todas as viagens são iguais: a
partida, um trajeto variável e a chegada. Sentou-se ao lado de um
jovem senhor, aparentando uns trinta anos. Jovem senhor era um
tratamento adequado a alguém com três vezes sua idade, embora as
demais pessoas o considerassem praticamente um rapaz. Achou-o bonito.
Havia outra pessoa ao lado do jovem senhor. Parecia ser uma senhora,
mas por ser daqueles seres que passam despercebidos pela existência,
não fez muito caso dela.
Logo iniciou contato com
o homem. Falaram do dispositivo que oferece segurança e que alguém
achou por bem designá-lo segundo o nome de uma peça de vestuário;
dos bancos que poderiam ser mais confortáveis, da quantidade de
pessoas a bordo e do clima lá fora. Em pouco tempo, sabia de onde
vinha e para onde ia o jovem senhor, assim como anunciou, mesmo sem
ele perguntar, sua origem e destino. O homem parecia não ser dado a
longas conversas, embora demonstrasse boa vontade em conversar com
ela. Após pequena pausa, ele pergunta:
– Você gosta de ler?
– Prefiro sair, mas
quando não posso, gosto sim.
O homem então levanta,
pega uma de suas bagagens, vasculha um instante e retira dela um
pequeno livro, mas não tão fino como se seria de supor.
Entrega-lhe.
Milena toma o livro,
curiosa. Analisa a capa – gosta das coloridas – e se agrada dele.
Começa a folhear. Encontra um título e principia a ler. Vencida a
primeira página, descobre do que trata o livro. É um desses livros
dedicados inteiramente a crianças, com histórias de reinos e
princesas, feitiços e animais que falam. Já havia visto desenhos
desse tipo quando cuidava de sua irmã mais nova. Devia ser um livro
importante, já que o homem estava com ele. Talvez levasse para seus
filhos, embora pela conversa preliminar entendeu que não os tinha.
Talvez fosse especial para o jovem senhor; talvez o tivesse
acompanhado na infância, apesar de não estar tão velho o livro. Na
verdade, era praticamente novo. Depois veio a saber que fora escrito
por uns homens de longe. Uns alemães, há muito tempo atrás.
Essas estórias nunca
lhe agradaram, pois pareciam assaz distantes da realidade. Por isso
preferia conversar com as pessoas, sair e ver como as coisas são
mundo afora. Fechou o livro e olhou para o jovem senhor com uma
expressão de insatisfação, atenuada por um esboço de sorriso. O
homem compreendeu e sorriu.
– Não gostou, não
é? Tudo bem.
Ela sorriu dizendo que
sim, e ele guardou o volume. Pensou em como as crianças estavam
mudadas e tinham interesses tão diferentes dos de sua época. Era um
pensamento apenas, sem julgamento ou condenação. Apenas pensava nas
mudanças trazidas pelos anos, que só percebemos quando postos
defronte de um fato como esse: representantes de eras diferentes
confrontando-se.
Continuaram conversando
– o homem, que desde o início tentava ler, afinal desistiu,
repondo o marcador entre as páginas e deitando o livro ao colo.
Falaram de suas ocupações e preferências. Contaram seus familiares
próximos e falaram dos distantes. Confidenciaram amizades e apenas
ele falou de amores.
Chegaram enfim ao
destino. Ela estava feliz por ter gostado da companhia. Recordava de
outra viagem em que teve por companhia uma velha resmungona e
enfezada. Ele estava animado por saber como a nova geração é mais
próxima da realidade, alheia a decrépitos contos de fadas e duendes
que, pensando bem, faziam por bem aposentarem-se. Despediram-se e
aguardavam a liberação para saírem. Ela volta-se para ele,
indagando:
– Posso fazer uma
coisa?
Ele, ligeiramente
confuso, não sabia o que poderia ser. Titubeando, encorajado pela
figura nada ameaçadora dela, afirmou que sim. Recebeu um beijo na
bochecha, ficando ali a denúncia daquela boca pequena. Ela,
sorrindo, segurou a mão da funcionária da empresa de transporte e
partiu alegremente, conduzida pela mulher ao encontro de sua mãe.
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