Pesquisar este blog

domingo, 11 de novembro de 2012

Milena


Milena contava dez anos, mas em nada se assemelhava a uma criança de uma década. Não pelo tamanho. Sua estatura a denunciava, salvo se comparada aos casos das pessoas acometidas de pequena altitude perpétua. Embora não atingisse ainda a altura das mulheres comuns, era por assim dizer uma mulher em miniatura. Gostava do cabelo negro e brilhante, levemente ondulado, espraiando-se pelos ombros, com o qual brincava, prendendo-o em vão por detrás das pequenas orelhas. O corpo era esguio, mas a magreza era de tal graça que denunciava um princípio de corpo feminino, do qual se gabava muito. Mas era um orgulho inocente, brejeiro, desses que nos fazem rir. Inventava desfiles e trejeitos apenas para fazer inveja e arrancar elogios às coleguinhas. Movia-se rápido e sempre, como que para gastar a grande energia que guardava dentro de si. Gostava dos lábios bem vermelhos, o rosa natural sobrepujado por um vermelho de batom vivo. Era a moldura de um sorriso de dentes pequenos e alinhados. Longe de usar as roupas reservadas a sua faixa etária, preferia as da moda, das mulheres jovens e vivazes, desprezando sapatos mimosos e fofos laços. Tinha uns olhos negros e redondos, que pareciam movidos a motor, de tão inquietos que eram. Seu único defeito era o leve estrabismo, que só os muito observadores notavam. No entanto, isso não contribuía para comprometer a harmonia da pequena. Era de todo bonita.

Mas o que mais impressionava nela era seu gênio. Era daquelas pessoas da qual todos se agradam. Tanto os fechados e ranzinzas como os alegres e festivos. Milena, ainda que com sua pouca idade, conseguia encontrar o rumo certo da prosa para cada tipo de pessoa. Bastante esperta, árdua tarefa era enganá-la. Verbosa e de uma curiosidade instigante, perguntava coisas aos outros, demonstrava interesse por histórias, prestava atenção aos modos das pessoas. Nisso destoava da irmão mais velha, que, apesar de gentil, parecia andar sempre sonolenta. Também não se assemelhava em nada àqueles interlocutores que se prestam a papel de ouvintes apenas. Contava casos, ilustrava, dava conselhos, contestava. Era de uma vivacidade que impressionava. Em poucos instantes fazia do desconhecido um amigo de anos. Produzia nesse uma confiança que o fazia contar até os segredos mais ocultos. Era bastante prestativa, principalmente com os mais velhos, que logo a cobriam de elogios e galanteios, que adorava. Só não aceitava infligirem-lhe ideias sem lógica, leis infundadas, regras sem propósito. Todas essas coisas a aborreciam, e lutava até onde podia com as autoridades caprichosas.

Certa vez viajava sozinha, voltando de férias em casa de parentes. Moravam distante, em um lugar de costumes diferentes e pessoas estranhas. Essa estranheza durou apenas uma semana, ao cabo da qual tudo e todos já lhe eram familiares, de modo que entristeceu um pouco por ter que voltar a casa. Embarcaram-na e iria sozinha encontrar sua mãe que a buscaria quando chegasse. Não estava nervosa nem apreensiva, pois já viajara sozinha antes. Viagens menos longas, mas para ela não havia diferença, certa que estava de que todas as viagens são iguais: a partida, um trajeto variável e a chegada. Sentou-se ao lado de um jovem senhor, aparentando uns trinta anos. Jovem senhor era um tratamento adequado a alguém com três vezes sua idade, embora as demais pessoas o considerassem praticamente um rapaz. Achou-o bonito. Havia outra pessoa ao lado do jovem senhor. Parecia ser uma senhora, mas por ser daqueles seres que passam despercebidos pela existência, não fez muito caso dela.

Logo iniciou contato com o homem. Falaram do dispositivo que oferece segurança e que alguém achou por bem designá-lo segundo o nome de uma peça de vestuário; dos bancos que poderiam ser mais confortáveis, da quantidade de pessoas a bordo e do clima lá fora. Em pouco tempo, sabia de onde vinha e para onde ia o jovem senhor, assim como anunciou, mesmo sem ele perguntar, sua origem e destino. O homem parecia não ser dado a longas conversas, embora demonstrasse boa vontade em conversar com ela. Após pequena pausa, ele pergunta:

– Você gosta de ler?
– Prefiro sair, mas quando não posso, gosto sim.

O homem então levanta, pega uma de suas bagagens, vasculha um instante e retira dela um pequeno livro, mas não tão fino como se seria de supor. Entrega-lhe.

Milena toma o livro, curiosa. Analisa a capa – gosta das coloridas – e se agrada dele. Começa a folhear. Encontra um título e principia a ler. Vencida a primeira página, descobre do que trata o livro. É um desses livros dedicados inteiramente a crianças, com histórias de reinos e princesas, feitiços e animais que falam. Já havia visto desenhos desse tipo quando cuidava de sua irmã mais nova. Devia ser um livro importante, já que o homem estava com ele. Talvez levasse para seus filhos, embora pela conversa preliminar entendeu que não os tinha. Talvez fosse especial para o jovem senhor; talvez o tivesse acompanhado na infância, apesar de não estar tão velho o livro. Na verdade, era praticamente novo. Depois veio a saber que fora escrito por uns homens de longe. Uns alemães, há muito tempo atrás.

Essas estórias nunca lhe agradaram, pois pareciam assaz distantes da realidade. Por isso preferia conversar com as pessoas, sair e ver como as coisas são mundo afora. Fechou o livro e olhou para o jovem senhor com uma expressão de insatisfação, atenuada por um esboço de sorriso. O homem compreendeu e sorriu.

– Não gostou, não é? Tudo bem.

Ela sorriu dizendo que sim, e ele guardou o volume. Pensou em como as crianças estavam mudadas e tinham interesses tão diferentes dos de sua época. Era um pensamento apenas, sem julgamento ou condenação. Apenas pensava nas mudanças trazidas pelos anos, que só percebemos quando postos defronte de um fato como esse: representantes de eras diferentes confrontando-se.

Continuaram conversando – o homem, que desde o início tentava ler, afinal desistiu, repondo o marcador entre as páginas e deitando o livro ao colo. Falaram de suas ocupações e preferências. Contaram seus familiares próximos e falaram dos distantes. Confidenciaram amizades e apenas ele falou de amores.
Chegaram enfim ao destino. Ela estava feliz por ter gostado da companhia. Recordava de outra viagem em que teve por companhia uma velha resmungona e enfezada. Ele estava animado por saber como a nova geração é mais próxima da realidade, alheia a decrépitos contos de fadas e duendes que, pensando bem, faziam por bem aposentarem-se. Despediram-se e aguardavam a liberação para saírem. Ela volta-se para ele, indagando:

– Posso fazer uma coisa?

Ele, ligeiramente confuso, não sabia o que poderia ser. Titubeando, encorajado pela figura nada ameaçadora dela, afirmou que sim. Recebeu um beijo na bochecha, ficando ali a denúncia daquela boca pequena. Ela, sorrindo, segurou a mão da funcionária da empresa de transporte e partiu alegremente, conduzida pela mulher ao encontro de sua mãe.

Nenhum comentário:

Postar um comentário