Muitas pessoas hoje em dia preferem a docilidade incondicional de seus animais a lidar com seres humanos, às vezes desprezando-os totalmente. Será esse um comportamento sadio?
Gosto de natureza. Passear no campo,
embrenhar-me na mata, estar junto às aguas. Ser biólogo ou algo do
gênero seria uma opção
possível para mim. Quando criança,
sempre lia livros que falavam de animais. A propósito, sempre gostei
mais dos bichos que das plantas. Era-me difícil reconhecer e
entender as classificações
das espécies vegetais, enquanto era muito mais divertido estudar os
bichos. Apesar disso, o
apego exagerado a animais domésticos que
a sociedade moderna
desenvolveu é algo que não
vejo com bons olhos. Parece-me
ser indício de algum distúrbio.
Não
sou contra ter animais domésticos, afinal, o homem os criou
(cruzando espécies mais dóceis até chegar às que conhecemos) e é
justo que tome
conta deles. São bastante
úteis, como para proteção,
guia de deficientes, caça,
etc. Ou mesmo apenas para companhia. Há muitas pessoas que moram só,
por vezes
idosas, sem família e sem laços
com outras pessoas, que encontram bastante satisfação
dividindo sua casa com bichos de estimação.
No entanto, não são poucas
as pessoas que elevam
o status
desses bichos, indo de animal
a gente. Mesmo famílias que
(aparentemente) passam longe de necessidade afetiva parecem curvar-se
ao animal, dando-o total autoridade dentro de casa.
Se você é
daqueles que tem grande estima por seu bichinho, mas sem exageros,
fique tranquilo, essa crítica não se dirige a você. É natural que
nos apeguemos a um animal que cuidamos desde seu nascimento, que
esteve conosco por muito tempo, que dá demonstrações de afeto.
Deve-se apenas, nesses casos, levar em conta que muita coisa de seu
comportamento é instinto. Por mais humano e nobre que possa parecer
seu comportamento em determinadas situações, ele ainda é um
animal.
Hoje podemos ver
uma total descaracterização da condição de animal por parte dos
donos. São spas, academias, tratamentos de beleza, iguarias, dentre
outros. Embora esses animais tenham perdido algo de sua origem
selvagem, muitas dessas modernidades são estranhas a eles, como
cheiros fortes que os desnorteiam – uma vez que seu principal
contato com o mundo se dá através do olfato – ou alteração
radical de seus pelos. Animais soltos entendem que o mundo tem
limites, com presas e predadores, mas muitos animais domésticos
entendem que são donos do mundo.
Antes que você
julgue que nunca tive animal de estimação, adianto que já
possuímos quatro mamíferos em
casa (quando morava com meus pais). Do primeiro cão tenho vagas
recordações, pois contava uns três anos de idade na época. Era um
pequenês chamado Zorrinho. Não recordo sua origem, mas lembro que
um dia fomos à padaria e ele não voltou conosco. Tivemos um
segundo, batizado por meu pai de Brac (não sei a origem do nome).
Esse foi adotado das ruas por demonstrar companheirismo e por
compadecimento de sua situação. Brac realmente era companheiro.
Quando saíamos, ele nos seguia. Às vezes ia bem longe, até o ponto
de ônibus, ou seguia meu pai para o trabalho. O mais fantástico era
ele ir esperar meu irmão no ponto de ônibus quando voltava da
faculdade tarde da noite. Infelizmente, ele também sumiu nas ruas.
Supomos que, como rosnasse para os marginais na rua (provavelmente
porque antes o maltratavam), devem ter dado cabo dele. Tivemos ainda
dois gatos, um com nome politicamente incorreto (também dado por meu
pai) e um com nome típico de gato fêmea (dado por minha mãe),
ambos também adotados das ruas. O primeiro salvou-se por ser bom
caçador. Para um gato, até que era amigo. Um dia saiu à rua e não
voltou. Já a gata, tão arisca pra tão pouca idade, foi dipensada
cedo da convivência.
Não ficamos
felizes quando nossos bichinhos foram embora, mas o mundo não caiu
para nós. Nada de enterro simbólico ou missas ou altares.
Entendemos que, por maior que seja a relação com o animal, ele é
apenas isso: um animal. Não que isso o incapacite de ações
louváveis ou afetuosidade. Isso também não significa não ficar
triste – ou chorar até – por seu fim. Mas conheço pessoas que
dão mais valor a animais que à vida humana. Há mesmo aqueles que
vivem em função deles, não saindo de casa ou não dormindo na
própria cama para lhes dar vez.
Entendo que esse
comportamento diz respeito a cada um, mas até que ponto isso não
indica uma patologia comportamental que possa vir a afetar a
sociedade? Talvez o adorador de animais domésticos prefira bichos à
gente unicamente porque não consegue se relacionar com outras
pessoas, pois elas argumentam, discordam, têm autonomia,
injuriam-se. Mas o mundo é assim e não se pode fugir disso. Talvez
essa mesma pessoa não se incomode quando um ser humano morre, mas
sente o coração apertado pela morte de um cão ou gato. Quem sabe
ele entenda que os moradores de rua estão lá porque querem, mas os
animais abandonados precisam ser salvos. O sofrimento humano sempre
será maior que o de um bicho, ampliado que é pela consciência.
Isso o torna mais degradante, humilhante, uma vez que entendemos o
papel marginal do excluído, o desprezo constante, a falta de
esperança no futuro. O resgate de um homem que morre um pouco todos
os dias é o resgate de uma vida plausível de realizações, não
apenas para ele, mas também para a comunidade. Já um animal traz
benefícios apenas para a pessoa que o mantém.
Analisando essa
faceta de nossa sociedade ocidental, pergunto-me porque há críticas
aos animais adorados na Índia, dado que adoramos também nossos
animais domésticos. O fato de eles serem considerados deuses lá
deve-se apenas ao fato de serem mais religiosos que nós. Por aqui
nossos bichos também são deuses, enquanto os seres humanos descem
cada dia mais o caminho para o total desprezo.
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