Escrevi esse texto em 2004, após ter sofrido um assalto e ter tido uma péssima assistência da polícia. Foi meu primeiro texto que veio a público, postado aqui tal qual foi escrito. Por ser um tanto extenso, foi dividido em partes. Essa é a primeira.
O assalto
Trinta de maio. Uma
segunda-feira. O dia avança para uma hora da tarde. Dirijo-me ao
ponto de ônibus. O sol forte obriga-me a procurar a companhia da
sombra por onde passo. Perto de meu destino, atravesso a rua – um
elevado muro oferece sombra aos transeuntes. Vêm em minha direção
algumas crianças. Estão indo para a escola. Logo atrás, suas mães
– imagino que sejam –, acompanhadas de mais duas ou três
[crianças]. Uma dessas, uma menina, assemelha-se muito à outra que
vai à frente. Poderiam ser gêmeas, não fosse a diferença de
idade. Segue-se a elas um rapaz, com seus dezoito anos, mais ou
menos. Camiseta cinza, calção branco, descalço, a dobrar um
pequeno pedaço de papel. Um pouco adiante, um garoto – aqui já me
falha a precisão da lembrança. Não recordo em que sentido seguia:
se a meu encontro ou acompanhando-me à distância. Não importa.
Perto dali, pessoas em outro ponto de ônibus aguardam sua condução.
Passam por mim as
crianças e suas condutoras – é quando faço as observações
acima – e, ao aproximar-me do rapaz – dobrando o pedaço de papel
com ambas as mãos –, este tenta iniciar um diálogo:
– Ei, conhece o
Alexandre?
– Não.
– O Alexandre, rapaz.
– Não, conheço não.
– Ei, vem cá!
Nesse ponto, acelero os
passos e dou visíveis mostras de aborrecimento. Penso tratar-se de
um diálogo inoportuno, apenas – já que sou acometido de tantos.
Porém, sua insistência é curiosa e intrigante. Havia algo
diferente naquilo tudo. No entanto, não me passou pela cabeça a
idéia de que pudesse ser um assalto. Não ali, no bairro onde nasci
e cresci. Onde conheço a história de cada muro, de cada árvore, e
as pedras me chamam pelo nome. O bairro que afugenta os visitantes
com suas ruas estreitas e seu povo truculento. Suas luzes escuras e
seu barulho frenético. Um turbulento frenesi em espiral. Pois a mim
não assustava; estava afeito à convivência com ladrões,
assassinos, viciados, traficantes, marginais de toda espécie.
Pessoas de aspecto aterrador: tatuagens, gingas, barba mal-feita,
cabelos “com estilo”, roupas características, cigarros – de
todo tipo – à mão, pele enegrecida – pela imposição congênita
ou pelo vigor do sol.
Habituei-me a tudo isso
e não vislumbrei a possibilidade de assalto que se me ocorria. Nesse
momento, o tal Alexandre havia sido dispensado do diálogo e o
sujeito insistia para que eu lhe desse ouvidos, mas não de forma
atemorizante.
– Espere aí, rapaz!
– Não posso!
– Vem aqui, cara!
– Estou atrasado!
Tenho que pegar o ônibus!
A conversa já ia nessa
altura quando sobreveio o anúncio fatídico. Aquele que nos coloca
de frente para o absurdo, que nos faz pensar “não pode estar
acontecendo comigo!”, que traz à tona nossos medos e fraquezas. A
frase traduz nossa fragilidade, nossa suscetibilidade a um agressor,
pronto a nos tirar os bens, conquistados a duras penas. O “isso é
um assalto” não foi o clássico visto nas telas. O indivíduo,
doravante marginal, mudando o semblante e o tom de voz, desce a mão
à cintura e anuncia:
- Bicho, tô com uma
arma aqui, embaixo da camisa!
Estremeci. Sucedeu-me o
pensamento anterior (“justo comigo!”). Um jejum, uma virgindade
de mais de quarenta anos foi rompida – o primeiro da família a ser
vítima do ato horrendo. Senti a impotência invadir meu corpo. Eu
ali, ironicamente entre duas delegacias, vitimado pelo destino: se
não tivesse ido por aquele caminho? Se tivesse saído de casa mais
cedo? Ou mais tarde? Faria diferença? São questões de escape para
o fato real e concreto. A dúvida, porém, será eterna: estaria ele
mesmo com uma arma – branca que fosse? É mais uma angústia que
cerca a estupidez do ato.
Ele deve ter
acrescentado algo ao anúncio sinistro, mas o impacto causado em mim
naquele momento impediu-me de registrar o que foi. Lembro que parei
de pronto, esperando as ordens do marginal. Devo ter dito algo, mas
mecanicamente, sem raciocínio. Acudiram-me à memória recomendações
de como portar-se em caso de assalto: obedecer ao agressor, não
fazer gestos largos, concordar com ele, não reagir. Norteei-me em
alguns desses princípios enquanto o fato transcorria.
O marginal aproxima-se,
mirando minha algibeira direita, e ordena, voltando ao tom tranqüilo,
mas agora macabro:
- Me dê o que está no
seu bolso!
Desgraçado! O aparelho
celular estava no fundo [do bolso]. Como ele viu? Talvez quando
consultei as horas, já que ele fazia as vezes de relógio. Ou talvez
o contorno de seu corpo contra o tecido tenha sido o suficiente. Ou
ainda ele estivesse me espreitando há dias. Senti a dor pungente da
perda. O dispositivo que me acompanhara por sete meses iria para as
mãos do bandido, dali a ganhar o mundo. As pessoas aprisionadas
docilmente ali, apavoradas com a violência, iniciam um clamor de
despedida; e o marginal, com o aparelho nas mãos, parece-me um
bruto, alheio à tecnologia que ora detém, perguntando imbecilmente:
“Como é que desliga aqui?”, e entregando-me para fazê-lo. Se a
sentença de assalto mostrou alguém habituado ao crime, seu
comportamento vis-à-vis ao objeto roubado denunciou um símio
insipiente.
Ficou alguns segundos
contemplando o aparelhinho. Na certa avaliando a “aquisição”:
se estava em boas condições, quanto lucraria com ele, onde se
desfaria dele. Num lance de cinismo, indaga onde moro. Não consigo
vislumbrar muitos motivos para tal pergunta: se não morasse por ali
seria bom para ele? Não o veria mais e não teria como “acertá-lo”
depois? Ou ele gostaria que morasse perto? Voltaria a me atormentar,
continuamente. Não sei. Não sei nem se queria saber a respeito, ou
se era apenas uma forma de “finalização”. Sei que respondi,
forçosamente, algo impreciso. Contentou-se com isso. Deu as costas e
saiu caminhando, com a naturalidade de quem tem a consciência
tranqüila e os atos justos, ilibados. Prosseguiu seu caminho como se
tivesse encontrado um velho conhecido, conversado amigavelmente e por
fim se despedido dele.
Desgraçado!
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