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quarta-feira, 27 de março de 2013

Relato de um assalto (parte I)

Escrevi esse texto em 2004, após ter sofrido um assalto e ter tido uma péssima assistência da polícia. Foi meu primeiro texto que veio a público, postado aqui tal qual foi escrito. Por ser um tanto extenso, foi dividido em partes. Essa é a primeira.

O assalto

Trinta de maio. Uma segunda-feira. O dia avança para uma hora da tarde. Dirijo-me ao ponto de ônibus. O sol forte obriga-me a procurar a companhia da sombra por onde passo. Perto de meu destino, atravesso a rua – um elevado muro oferece sombra aos transeuntes. Vêm em minha direção algumas crianças. Estão indo para a escola. Logo atrás, suas mães – imagino que sejam –, acompanhadas de mais duas ou três [crianças]. Uma dessas, uma menina, assemelha-se muito à outra que vai à frente. Poderiam ser gêmeas, não fosse a diferença de idade. Segue-se a elas um rapaz, com seus dezoito anos, mais ou menos. Camiseta cinza, calção branco, descalço, a dobrar um pequeno pedaço de papel. Um pouco adiante, um garoto – aqui já me falha a precisão da lembrança. Não recordo em que sentido seguia: se a meu encontro ou acompanhando-me à distância. Não importa. Perto dali, pessoas em outro ponto de ônibus aguardam sua condução.


Passam por mim as crianças e suas condutoras – é quando faço as observações acima – e, ao aproximar-me do rapaz – dobrando o pedaço de papel com ambas as mãos –, este tenta iniciar um diálogo:


– Ei, conhece o Alexandre?

– Não.

– O Alexandre, rapaz.

– Não, conheço não.

– Ei, vem cá!


Nesse ponto, acelero os passos e dou visíveis mostras de aborrecimento. Penso tratar-se de um diálogo inoportuno, apenas – já que sou acometido de tantos. Porém, sua insistência é curiosa e intrigante. Havia algo diferente naquilo tudo. No entanto, não me passou pela cabeça a idéia de que pudesse ser um assalto. Não ali, no bairro onde nasci e cresci. Onde conheço a história de cada muro, de cada árvore, e as pedras me chamam pelo nome. O bairro que afugenta os visitantes com suas ruas estreitas e seu povo truculento. Suas luzes escuras e seu barulho frenético. Um turbulento frenesi em espiral. Pois a mim não assustava; estava afeito à convivência com ladrões, assassinos, viciados, traficantes, marginais de toda espécie. Pessoas de aspecto aterrador: tatuagens, gingas, barba mal-feita, cabelos “com estilo”, roupas características, cigarros – de todo tipo – à mão, pele enegrecida – pela imposição congênita ou pelo vigor do sol.


Habituei-me a tudo isso e não vislumbrei a possibilidade de assalto que se me ocorria. Nesse momento, o tal Alexandre havia sido dispensado do diálogo e o sujeito insistia para que eu lhe desse ouvidos, mas não de forma atemorizante.


– Espere aí, rapaz!

– Não posso!

– Vem aqui, cara!

– Estou atrasado! Tenho que pegar o ônibus!


A conversa já ia nessa altura quando sobreveio o anúncio fatídico. Aquele que nos coloca de frente para o absurdo, que nos faz pensar “não pode estar acontecendo comigo!”, que traz à tona nossos medos e fraquezas. A frase traduz nossa fragilidade, nossa suscetibilidade a um agressor, pronto a nos tirar os bens, conquistados a duras penas. O “isso é um assalto” não foi o clássico visto nas telas. O indivíduo, doravante marginal, mudando o semblante e o tom de voz, desce a mão à cintura e anuncia:


- Bicho, tô com uma arma aqui, embaixo da camisa!


Estremeci. Sucedeu-me o pensamento anterior (“justo comigo!”). Um jejum, uma virgindade de mais de quarenta anos foi rompida – o primeiro da família a ser vítima do ato horrendo. Senti a impotência invadir meu corpo. Eu ali, ironicamente entre duas delegacias, vitimado pelo destino: se não tivesse ido por aquele caminho? Se tivesse saído de casa mais cedo? Ou mais tarde? Faria diferença? São questões de escape para o fato real e concreto. A dúvida, porém, será eterna: estaria ele mesmo com uma arma – branca que fosse? É mais uma angústia que cerca a estupidez do ato.


Ele deve ter acrescentado algo ao anúncio sinistro, mas o impacto causado em mim naquele momento impediu-me de registrar o que foi. Lembro que parei de pronto, esperando as ordens do marginal. Devo ter dito algo, mas mecanicamente, sem raciocínio. Acudiram-me à memória recomendações de como portar-se em caso de assalto: obedecer ao agressor, não fazer gestos largos, concordar com ele, não reagir. Norteei-me em alguns desses princípios enquanto o fato transcorria.


O marginal aproxima-se, mirando minha algibeira direita, e ordena, voltando ao tom tranqüilo, mas agora macabro:


- Me dê o que está no seu bolso!


Desgraçado! O aparelho celular estava no fundo [do bolso]. Como ele viu? Talvez quando consultei as horas, já que ele fazia as vezes de relógio. Ou talvez o contorno de seu corpo contra o tecido tenha sido o suficiente. Ou ainda ele estivesse me espreitando há dias. Senti a dor pungente da perda. O dispositivo que me acompanhara por sete meses iria para as mãos do bandido, dali a ganhar o mundo. As pessoas aprisionadas docilmente ali, apavoradas com a violência, iniciam um clamor de despedida; e o marginal, com o aparelho nas mãos, parece-me um bruto, alheio à tecnologia que ora detém, perguntando imbecilmente: “Como é que desliga aqui?”, e entregando-me para fazê-lo. Se a sentença de assalto mostrou alguém habituado ao crime, seu comportamento vis-à-vis ao objeto roubado denunciou um símio insipiente.


Ficou alguns segundos contemplando o aparelhinho. Na certa avaliando a “aquisição”: se estava em boas condições, quanto lucraria com ele, onde se desfaria dele. Num lance de cinismo, indaga onde moro. Não consigo vislumbrar muitos motivos para tal pergunta: se não morasse por ali seria bom para ele? Não o veria mais e não teria como “acertá-lo” depois? Ou ele gostaria que morasse perto? Voltaria a me atormentar, continuamente. Não sei. Não sei nem se queria saber a respeito, ou se era apenas uma forma de “finalização”. Sei que respondi, forçosamente, algo impreciso. Contentou-se com isso. Deu as costas e saiu caminhando, com a naturalidade de quem tem a consciência tranqüila e os atos justos, ilibados. Prosseguiu seu caminho como se tivesse encontrado um velho conhecido, conversado amigavelmente e por fim se despedido dele.

Desgraçado!

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