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segunda-feira, 24 de junho de 2013

Protestos de um povo insatisfeito

O Brasil viveu nas últimas semanas uma onda de protestos como há muito tempo não se via. A dúvida agora é sobre o real alcance dessas manifestações.


Há pouco tempo alguns países islâmicos governados por ditaduras experimentaram levantes populares que ficaram conhecidos como “primavera árabe”. Nesses países, governos foram depostos e mesmo seus representantes mortos, e caminha-se para outra forma de governar, mais democrática, embora não se saiba se isso os livrará do regime opressor, trazendo satisfação à população. À época, foram feitas algumas paródias comparando a insatisfação daquelas nações com o estado geral de indolência dos brasileiros, que apenas se importavam com festas e nada mais. Não faz muitos dias, os ânimos por aqui também se exaltaram – ao que parece, pouco inspirados pelo movimento árabe –, configurando um dos mais interessantes eventos dos últimos anos no Brasil.

Pessoas de várias cidades do país – capitais ou cidades interioranas – saíram às ruas para protestar e exigir melhores condições de vida. Bem, isso é a abstração máxima que se pode dar sobre o ocorrido. Há muito mais desdobramentos e imbricações referentes ao desenrolar dos fatos. Há muitas contradições, inúmeras dúvidas e sobram acusações múltiplas entre as partes envolvidas. Apesar disso, algumas observações interessantes podem ser feitas acerca do ocorrido dos últimos dias.

Ao que se sabe, as manifestações, tiveram início na cidade de São Paulo, orquestradas por movimentos de categoria, como o MLP (Movimento Passe Livre), e talvez alguns integrantes de partidos de esquerda, como o PSTU e o PSOL. A motivação dos protestos teria sido o aumento das passagens de ônibus, em R$0,20 (o que gerou o lema “Não são apenas R$0,20”, repetido mundo afora por simpatizantes da causa). A essa insatisfação inicial juntaram-se manifestantes com as mais diversas bandeiras: melhoria da saúde, educação de qualidade, bom transporte público, fim da corrupção, engavetamento da proposta PEC-37, gastos excessivos com as copas (das Confederações e do Mundo), entre outras. De São Paulo, o movimento ganhou as ruas da maioria das capitais – senão todas – e diversas cidades do interior. Mesmo com a baixa do preço da passagem, os protestos seguiram, ganhando contornos indefinidos – ou definidos, dependendo do ponto de vista. A presidenta do Brasil fez um primeiro pronunciamento em rede nacional, o que, longe de apaziguar os protestantes com o aceno de melhorias, desencadeou novas manifestações, dessa vez até por classes específicas, como a médica, que é contra a importação de médicos estrangeiros. Ou seja, muito ainda está por vir.

Uma das principais características do movimento é que foi articulado através das redes sociais. Esse, aliás, é um traço recorrente quando se observa que o mesmo se deu em outros países. O poder das redes sociais para os manifestantes é apropriado por pelo menos três motivos: a alta velocidade de difusão das mensagens, a proximidade entre os participantes e a possibilidade de cada envolvido contribuir. No entanto, essas mesmas características permitem “fraudes”, como mensagens e perfis falsos, prejudicando o grupo – como alegam alguns dos manifestantes filiados a grupos organizados. Dependendo da rede de amigos de cada um, a rede social Facebook foi o melhor meio de se manter informado sobre os eventos e dos rumos que a coisa estava tomando. Havia páginas dedicadas aos diferentes pontos de vista sobre o assunto (variantes de “a favor” e de “contra”), e cada um postava seus vídeos e fotos, escrevia suas impressões, compartilhava links de crônicas, de notícias, de informações, discutiam. Escolher um únco ponto de vista para se inteirar das ocorrências era a pior coisa se fazer.

No entanto, a resultante das múltiplas participações é que, por ser um movimento com múltiplas cabeças, terminou configurando-se como uma turba acéfala, sem comando, com a qual as autoridades tiveram dificuldade para lidar, seja para negociar o itinerário das passeatas, seja para ouvir as reivindicações. Os grupos que convocaram as manifestações terminaram por abandoná-las, afirmando que, devido às várias causas que se foram somando à original (o aumento da passagem), o movimento havia perdido o sentido – até mesmo porque essa reivindicação foi atendida. Mas houve outro motivo pelo qual os militantes de determinados partidos se afastaram do movimento: foram rechaçados. Vários portadores de bandeiras de partidos as tiveram tomadas e destroçadas. O movimento autodenominou-se apartidário, declaração pela qual muitos demostraram receio, temendo um fascismo iminente – e muito provavelmente infundado, uma vez que a exigência foi por melhores serviços, e não reforma política. Isso provavelmente se deve à desilusão sofrida pelo brasileiro após uma década de governo “de oposição” (o que quer que isso seja, em nosso contexto político) onde houve pouca mudança de discurso ideológico – se comparado às declarações de campanhas anteriores – e poucos resultados práticos, além das diversas denúncias de corrupção entre diferentes partidos. Para a maioria dos cidadãos, ficou a impressão de que os partidos são todos iguais, idem para os políticos. Por isso, ao verem bandeiras de partidos no meio da multidão, viram ali a representação da mácula de toda a profusão de partidos que confundem a cabeça dos eleitores, mas que não resolvem seus problemas.

Ainda sobre a importância da Internet, podemos dizer que ela funcionou em contraponto, ou mesmo em substituição, às emissoras de televisão. Através dela os manifestantes postavam fotos e vídeos do que estava acontecendo, dando uma visão plural dos eventos. Foi assim que se tomou conhecimento de diversos abusos cometidos por policiais no primeiro dia de passeata, contra participantes dos protestos, transeuntes alheios à manifestação e a própria imprensa. Foi por ela que muitas pessoas se informaram dos fatos e os cotejaram com as exibições dos canais de televisão. Talvez até mesmo por isso – a quebra do monopólio da divulgação dos fatos – algumas emissoras mudaram a abordagem de suas reportagens.

Findos os protestos iniciais, seguiram-se novas motivações: uma outra PEC, impeachment da presidenta (um dos mais inócuos), redução da remuneração dos políticos, entre outros. Obviamente, nem todos são viáveis ou constituem solução real para os problemas apresentados. A grande questão, levantada por muitos, é o quanto esse fervor democrático perdurará e em que medida ele se refletirá nas próximas eleições. Quanto a isso só nos resta especular e aguardar.

Outra observação que pode ser feita a partir dos manifestos é a intolerância de alguns para com aqueles que apresentaram mudança de opinião durante o período de protestos. Ora, sobre isso nos saltam dois pontos para análise. Primeiro, para muitas pessoas – aquelas que não acompanharam os protestos no início –, foi difícil identificar de fato o que estava acontecendo (até porque as manifestações sofreram mutações), ou mesmo conseguir analisar as dimensões dos protestos. Críticos e jornalistas atacavam num dia para, no dia seguinte, legitimar as reivindicações, o que nos leva ao segundo ponto: é errado mudar de opinião? Se até mesmo sobre um fato ocorrido totalmente no passado mudamos nossa impressão a respeito, que dirá de um fato que se desenrola e se modifica dia a dia? Muitos duvidam que as mudanças das coberturas dos eventos por parte das emissoras tenha sido sincero. Ora, mas há algo sincero na mídia? Desde que o marketing se alastrou por todas as áreas de negócios, nada tem sido sincero. Tudo o que se faz tem um objetivo a ser atingido, um público-alvo. O saldo, positivo para o cidadão – uma análise que não vai na contramão da verdade sobre o ocorrido –, não justifica a mudança de postura? E para o homem comum, que mal há em reavaliar a situação? Deficiência seria manter sempre um impassível posicionamento, mesmo em face de provas contrárias. A mudança é salutar, seja qual for sua motivação.

A propósito, manter a mesma opinião durante os vários dias de protestos talvez tenha sido a atitude mais alienada possível. O movimento mudou, as reivindicações se extenderam, várias cidades aderiram – e esse foi provavelmente o maior trunfo, o qual fortaleceu radicalmente o movimento, caso contrário, provavelmente findaria em nada, como diversas outras manifestações anteriores. Manter o mesmo tom das críticas talvez só se justifique pela atitude de não dar o braço a torcer. Cultura e experiência não impedem ninguém de errar. O próprio Thomas Watson (ex-presidente da IBM) afirmou, no início da década de quarenta, que não haveria mercado para mais que cinco computadores no mundo todo. Obviamente, ele estava errado. E que dizer de mais de um milhão de pessoas nas ruas? Houve de tudo: protestos pacíficos, manifestantes violentos, baderneiros que se aproveitaram da situação, policiais que usaram força abusiva, policiais solidários à causa, manipuladores da multidão, mídia parcial, entre outros. Não se podia dar um único caráter ao movimento.

Outra crítica recorrente foi devido ao estopim para o movimento (isso após ele ter se transformado em uma massa de inconformados com a gestão pública atual). Foi dito que vinte centavos não eram suficientes para tanto. Porém, é fácil buscarmos na história casos onde pequenos fatos serviram de última gota para uma situação insustentável. Foi assim nos Estados Unidos segregado, quando Rosa Parks, negra, negou-se a ceder seu lugar na condução para um homem branco, desencadeando a luta por direitos civis, onde Luther King teve papel importantíssimo.

Uma constatação repetida por várias pessoas, principalmente no início das manifestações, era sobre a multiplicidade de reivindicações, o que geraria uma nulidade de ações. Afinal, como resolver todos os problemas de uma única vez, principalmente sem haver proposta para tal? No entanto, as petições foram tomando contorno e alguns pontos principais foram delineados em meio aos diversos cartazes empunhados pelas multidões. Em suma, o corpo de revoltosos exigia maior qualidade dos serviços públicos e integridade por parte dos políticos. Ou seja, o saldo, ao fim e ao cabo de quilômetros e horas de protestos, era apenas um: os brasileiros estão insatisfeitos. Insatisfeitos por pagarem impostos e não receberm serviços em troca, e sendo obrigados a ver esse dinheiro desperdiçado em extravagâncias dos governantes e desvios de verba pública. Essa insatisfação correu o mundo, conquistando simpatizantes de outros países – em situação semelhante (Turquia) ou não (Alemanha) –, artistas internacionais, brasileiros residentes no exterior. E os políticos conseguiram ser atingidos. Hoje a presidenta anunciou medidas importantes (e que justamente por isso suscitou desconfiança em várias pessoas) que visam a atender o clamor popular.

Toda essa manifestação não foi nula, como agora parece ficar claro (a ressalva deve-se ao fato de que apenas temos propostas, com resultados a serem alcançados ainda distantes). No mínimo, serviu para despertar o povo para o poder que tem – muito embora o maior poder esteja no voto, sendo o protesto de rua uma arma que indica que algo não está em conformidade com o que é direito e, portanto, deve ser pouco usado. Muitos são os que buscarão entender mais de política e se engajarão nas campanhas daqui pra frente. Isso é um grande passo, dada a apatia política que grassa no Brasil.

No entanto, o que não se pode dizer do movimento é que ele já transformou o país. Para isso, falta ainda muito tempo e diversas medidas ainda têm que ser tomadas. É de se supor que o perfil dos participantes seja o jovem universitário. Esse perfil é pouco representativo quando se leva em conta o tamanho da população nacional. Há muitos brasis nessa terra, e poucos foram às ruas. Alguns ainda estão tentando entender o que houve, e muitos provavelmente nunca compreenderão. Mesmo assim, os benefícios serão extendidos a todos – e aqui deve-se combater a atitude dos que compareceram às ruas em relação aos que não foram.

Primeiramente, quem não foi às ruas teve a sua justificativa: ou não concordava, ou temia pela sua integridade física (quem tem filhos ou pais pelos quais é responsável pensa algumas vezes antes de abraçar causas semelhantes), ou não teve tempo, ou qualquer outra. Em todo caso, é válida, seja qual for. Afinal, quem foi às ruas o fez por si próprio, e não preocupado com quem também iria estar lá. Em segundo lugar, qualquer benefício obtido através das manifestações automaticamente extende-se a todos – o que também não pode ser usado para desmerecer ninguém –, assim como funciona hoje quando um político ligado a alguns grupos promulga leis que favorecem mesmo seus opositores.

Em face de tudo isso, resta que tenhamos uma coisa em mente: os problemas do Brasil são muitos, e nem todos serão resolvidos pelo grito das ruas ou pelos governantes. Muitos deles ocorrem nas bases da sociedade e são praticamente invisíveis, de tão negligenciados e aceitos como normais. São os pequenos delitos cometidos à exaustão por pessoas das mais diversas classes e posições sociais. Por exemplo, é fato que os hospitais públicos estão sucateados, mas também é fato que muitos profissionais que neles trabalham são negligentes e deixam de realizar atendimentos apenas por não quererem trabalhar. Do mesmo modo há professores da rede pública que se negam a dar suas aulas, unicamente por falta de vontade. Isso é para dizer o mínimo. Existe no Brasil uma cultura de corrupção generalizada que é tacitamente aceita na escala micro, mas execrada quando ocorre nas esferas públicas. Esse vício tem que ser combatido tanto quanto o desmantelo político. Vários deixaram de ir às ruas por considerarem seu trabalho de formiguinha em prol da justiça ubíqua tão importante quanto o do manifestante. Enquanto não pararmos de fomentar a injustiça e a falta de ética e respeito ao próximo em nossos pequenos atos, dificilmente teremos um país do qual nos orgulharemos plenamente.

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