O Brasil viveu nas últimas semanas uma onda de protestos como há muito tempo não se via. A dúvida agora é sobre o real alcance dessas manifestações.
Há pouco tempo alguns países
islâmicos governados por ditaduras experimentaram levantes populares
que ficaram conhecidos como “primavera árabe”. Nesses países,
governos foram depostos e mesmo seus representantes mortos, e
caminha-se para outra forma de governar, mais democrática, embora
não se saiba se isso os livrará do regime opressor, trazendo
satisfação à população. À época, foram feitas algumas paródias
comparando a insatisfação daquelas nações com o estado geral de
indolência dos brasileiros, que apenas se importavam com festas e
nada mais. Não faz muitos dias, os ânimos por aqui também se
exaltaram – ao que parece, pouco inspirados pelo movimento árabe
–, configurando um dos mais interessantes eventos dos últimos anos
no Brasil.
Pessoas de várias cidades do país –
capitais ou cidades interioranas – saíram às ruas para protestar
e exigir melhores condições de vida. Bem, isso é a abstração
máxima que se pode dar sobre o ocorrido. Há muito mais
desdobramentos e imbricações referentes ao desenrolar dos fatos. Há
muitas contradições, inúmeras dúvidas e sobram acusações
múltiplas entre as partes envolvidas. Apesar disso, algumas
observações interessantes podem ser feitas acerca do ocorrido dos
últimos dias.
Ao que se sabe, as manifestações,
tiveram início na cidade de São Paulo, orquestradas por movimentos
de categoria, como o MLP (Movimento Passe Livre), e talvez alguns
integrantes de partidos de esquerda, como o PSTU e o PSOL. A
motivação dos protestos teria sido o aumento das passagens de
ônibus, em R$0,20 (o que gerou o lema “Não são apenas R$0,20”,
repetido mundo afora por simpatizantes da causa). A essa insatisfação
inicial juntaram-se manifestantes com as mais diversas bandeiras:
melhoria da saúde, educação de qualidade, bom transporte público,
fim da corrupção, engavetamento da proposta PEC-37, gastos
excessivos com as copas (das Confederações e do Mundo), entre
outras. De São Paulo, o movimento ganhou as ruas da maioria das
capitais – senão todas – e diversas cidades do interior. Mesmo
com a baixa do preço da passagem, os protestos seguiram, ganhando
contornos indefinidos – ou definidos, dependendo do ponto de vista.
A presidenta do Brasil fez um primeiro pronunciamento em rede
nacional, o que, longe de apaziguar os protestantes com o aceno de
melhorias, desencadeou novas manifestações, dessa vez até por
classes específicas, como a médica, que é contra a importação de
médicos estrangeiros. Ou seja, muito ainda está por vir.
Uma das principais características do
movimento é que foi articulado através das redes sociais. Esse,
aliás, é um traço recorrente quando se observa que o mesmo se deu
em outros países. O poder das redes sociais para os manifestantes é
apropriado por pelo menos três motivos: a alta velocidade de difusão
das mensagens, a proximidade entre os participantes e a possibilidade
de cada envolvido contribuir. No entanto, essas mesmas
características permitem “fraudes”, como mensagens e perfis
falsos, prejudicando o grupo – como alegam alguns dos manifestantes
filiados a grupos organizados. Dependendo da rede de amigos de cada
um, a rede social Facebook foi o melhor meio de se manter informado
sobre os eventos e dos rumos que a coisa estava tomando. Havia
páginas dedicadas aos diferentes pontos de vista sobre o assunto
(variantes de “a favor” e de “contra”), e cada um postava
seus vídeos e fotos, escrevia suas impressões, compartilhava links
de crônicas, de notícias, de informações, discutiam. Escolher um
únco ponto de vista para se inteirar das ocorrências era a pior
coisa se fazer.
No entanto, a resultante das múltiplas
participações é que, por ser um movimento com múltiplas cabeças,
terminou configurando-se como uma turba acéfala, sem comando, com a
qual as autoridades tiveram dificuldade para lidar, seja para
negociar o itinerário das passeatas, seja para ouvir as
reivindicações. Os grupos que convocaram as manifestações
terminaram por abandoná-las, afirmando que, devido às várias
causas que se foram somando à original (o aumento da passagem), o
movimento havia perdido o sentido – até mesmo porque essa
reivindicação foi atendida. Mas houve outro motivo pelo qual os
militantes de determinados partidos se afastaram do movimento: foram
rechaçados. Vários portadores de bandeiras de partidos as tiveram
tomadas e destroçadas. O movimento autodenominou-se apartidário,
declaração pela qual muitos demostraram receio, temendo um fascismo
iminente – e muito provavelmente infundado, uma vez que a exigência
foi por melhores serviços, e não reforma política. Isso
provavelmente se deve à desilusão sofrida pelo brasileiro após uma
década de governo “de oposição” (o que quer que isso seja, em
nosso contexto político) onde houve pouca mudança de discurso
ideológico – se comparado às declarações de campanhas
anteriores – e poucos resultados práticos, além das diversas
denúncias de corrupção entre diferentes partidos. Para a maioria
dos cidadãos, ficou a impressão de que os partidos são todos
iguais, idem para os políticos. Por isso, ao verem bandeiras de
partidos no meio da multidão, viram ali a representação da mácula
de toda a profusão de partidos que confundem a cabeça dos
eleitores, mas que não resolvem seus problemas.
Ainda sobre a importância da
Internet, podemos dizer que ela funcionou em contraponto, ou mesmo em
substituição, às emissoras de televisão. Através dela os
manifestantes postavam fotos e vídeos do que estava acontecendo,
dando uma visão plural dos eventos. Foi assim que se tomou
conhecimento de diversos abusos cometidos por policiais no primeiro
dia de passeata, contra participantes dos protestos, transeuntes
alheios à manifestação e a própria imprensa. Foi por ela que
muitas pessoas se informaram dos fatos e os cotejaram com as
exibições dos canais de televisão. Talvez até mesmo por isso –
a quebra do monopólio da divulgação dos fatos – algumas
emissoras mudaram a abordagem de suas reportagens.
Findos os protestos iniciais,
seguiram-se novas motivações: uma outra PEC, impeachment da
presidenta (um dos mais inócuos), redução da remuneração dos
políticos, entre outros. Obviamente, nem todos são viáveis ou
constituem solução real para os problemas apresentados. A grande
questão, levantada por muitos, é o quanto esse fervor democrático
perdurará e em que medida ele se refletirá nas próximas eleições.
Quanto a isso só nos resta especular e aguardar.
Outra observação que pode ser feita
a partir dos manifestos é a intolerância de alguns para com aqueles
que apresentaram mudança de opinião durante o período de
protestos. Ora, sobre isso nos saltam dois pontos para análise.
Primeiro, para muitas pessoas – aquelas que não acompanharam os
protestos no início –, foi difícil identificar de fato o que
estava acontecendo (até porque as manifestações sofreram
mutações), ou mesmo conseguir analisar as dimensões dos protestos.
Críticos e jornalistas atacavam num dia para, no dia seguinte,
legitimar as reivindicações, o que nos leva ao segundo ponto: é
errado mudar de opinião? Se até mesmo sobre um fato ocorrido
totalmente no passado mudamos nossa impressão a respeito, que dirá
de um fato que se desenrola e se modifica dia a dia? Muitos duvidam
que as mudanças das coberturas dos eventos por parte das emissoras
tenha sido sincero. Ora, mas há algo sincero na mídia? Desde que o
marketing se alastrou por todas as áreas de negócios, nada tem sido
sincero. Tudo o que se faz tem um objetivo a ser atingido, um
público-alvo. O saldo, positivo para o cidadão – uma análise que
não vai na contramão da verdade sobre o ocorrido –, não
justifica a mudança de postura? E para o homem comum, que mal há em
reavaliar a situação? Deficiência seria manter sempre um
impassível posicionamento, mesmo em face de provas contrárias. A
mudança é salutar, seja qual for sua motivação.
A propósito, manter a mesma opinião
durante os vários dias de protestos talvez tenha sido a atitude mais
alienada possível. O movimento mudou, as reivindicações se
extenderam, várias cidades aderiram – e esse foi provavelmente o
maior trunfo, o qual fortaleceu radicalmente o movimento, caso
contrário, provavelmente findaria em nada, como diversas outras
manifestações anteriores. Manter o mesmo tom das críticas talvez
só se justifique pela atitude de não dar o braço a torcer. Cultura
e experiência não impedem ninguém de errar. O próprio Thomas
Watson (ex-presidente da IBM) afirmou, no início da década de
quarenta, que não haveria mercado para mais que cinco computadores
no mundo todo. Obviamente, ele estava errado. E que dizer de mais de
um milhão de pessoas nas ruas? Houve de tudo: protestos pacíficos,
manifestantes violentos, baderneiros que se aproveitaram da situação,
policiais que usaram força abusiva, policiais solidários à causa,
manipuladores da multidão, mídia parcial, entre outros. Não se
podia dar um único caráter ao movimento.
Outra crítica recorrente foi devido
ao estopim para o movimento (isso após ele ter se transformado em
uma massa de inconformados com a gestão pública atual). Foi dito
que vinte centavos não eram suficientes para tanto. Porém, é fácil
buscarmos na história casos onde pequenos fatos serviram de última
gota para uma situação insustentável. Foi assim nos Estados Unidos
segregado, quando Rosa Parks, negra, negou-se a ceder seu lugar na
condução para um homem branco, desencadeando a luta por direitos
civis, onde Luther King teve papel importantíssimo.
Uma constatação repetida por várias
pessoas, principalmente no início das manifestações, era sobre a
multiplicidade de reivindicações, o que geraria uma nulidade de
ações. Afinal, como resolver todos os problemas de uma única vez,
principalmente sem haver proposta para tal? No entanto, as petições
foram tomando contorno e alguns pontos principais foram delineados em
meio aos diversos cartazes empunhados pelas multidões. Em suma, o
corpo de revoltosos exigia maior qualidade dos serviços públicos e
integridade por parte dos políticos. Ou seja, o saldo, ao fim e ao
cabo de quilômetros e horas de protestos, era apenas um: os
brasileiros estão insatisfeitos. Insatisfeitos por pagarem impostos
e não receberm serviços em troca, e sendo obrigados a ver esse
dinheiro desperdiçado em extravagâncias dos governantes e desvios
de verba pública. Essa insatisfação correu o mundo, conquistando
simpatizantes de outros países – em situação semelhante
(Turquia) ou não (Alemanha) –, artistas internacionais,
brasileiros residentes no exterior. E os políticos conseguiram ser
atingidos. Hoje a presidenta anunciou medidas importantes (e que
justamente por isso suscitou desconfiança em várias pessoas) que
visam a atender o clamor popular.
Toda essa manifestação não foi
nula, como agora parece ficar claro (a ressalva deve-se ao fato de
que apenas temos propostas, com resultados a serem alcançados ainda
distantes). No mínimo, serviu para despertar o povo para o poder que
tem – muito embora o maior poder esteja no voto, sendo o protesto
de rua uma arma que indica que algo não está em conformidade com o
que é direito e, portanto, deve ser pouco usado. Muitos são os que
buscarão entender mais de política e se engajarão nas campanhas
daqui pra frente. Isso é um grande passo, dada a apatia política
que grassa no Brasil.
No entanto, o que não se pode dizer
do movimento é que ele já transformou o país. Para isso, falta
ainda muito tempo e diversas medidas ainda têm que ser tomadas. É
de se supor que o perfil dos participantes seja o jovem
universitário. Esse perfil é pouco representativo quando se leva em
conta o tamanho da população nacional. Há muitos brasis nessa
terra, e poucos foram às ruas. Alguns ainda estão tentando entender
o que houve, e muitos provavelmente nunca compreenderão. Mesmo
assim, os benefícios serão extendidos a todos – e aqui deve-se
combater a atitude dos que compareceram às ruas em relação aos que
não foram.
Primeiramente, quem não foi às ruas
teve a sua justificativa: ou não concordava, ou temia pela sua
integridade física (quem tem filhos ou pais pelos quais é
responsável pensa algumas vezes antes de abraçar causas
semelhantes), ou não teve tempo, ou qualquer outra. Em todo caso, é
válida, seja qual for. Afinal, quem foi às ruas o fez por si
próprio, e não preocupado com quem também iria estar lá. Em
segundo lugar, qualquer benefício obtido através das manifestações
automaticamente extende-se a todos – o que também não pode ser
usado para desmerecer ninguém –, assim como funciona hoje quando
um político ligado a alguns grupos promulga leis que favorecem mesmo
seus opositores.
Em face de tudo isso, resta que
tenhamos uma coisa em mente: os problemas do Brasil são muitos, e
nem todos serão resolvidos pelo grito das ruas ou pelos governantes.
Muitos deles ocorrem nas bases da sociedade e são praticamente
invisíveis, de tão negligenciados e aceitos como normais. São os
pequenos delitos cometidos à exaustão por pessoas das mais diversas
classes e posições sociais. Por exemplo, é fato que os hospitais
públicos estão sucateados, mas também é fato que muitos
profissionais que neles trabalham são negligentes e deixam de
realizar atendimentos apenas por não quererem trabalhar. Do mesmo
modo há professores da rede pública que se negam a dar suas aulas,
unicamente por falta de vontade. Isso é para dizer o mínimo. Existe
no Brasil uma cultura de corrupção generalizada que é tacitamente
aceita na escala micro, mas execrada quando ocorre nas esferas
públicas. Esse vício tem que ser combatido tanto quanto o
desmantelo político. Vários deixaram de ir às ruas por
considerarem seu trabalho de formiguinha em prol da justiça ubíqua
tão importante quanto o do manifestante. Enquanto não pararmos de
fomentar a injustiça e a falta de ética e respeito ao próximo em
nossos pequenos atos, dificilmente teremos um país do qual nos
orgulharemos plenamente.
Curti mil vezes Josué! Mto bom!
ResponderExcluirQue bom que gostou, Carol! Obrigado pelo comentário! :)
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