O Conselho de Medicina é totalmente contra a importação de ḿedicos, mas o que propõem em substituição? Aliás, qual o real motivo de não se deslocarem para as regiões carentes?
Certa feita, enquanto cursava minha
primeira graduação, observei as placas de formatura das turmas de
medicina afixadas nos corredores do hospital universitário. A quase
totalidade delas trazia o seguinte nome de turma: “nossos pais”.
Pensei: para tantas turmas terem o mesmo nome, elas devem ter tido o
mesmo perfil de aluno. Um perfil onde os pais desempenharam papel
fundamental na vida acadêmica desses alunos, provendo todas as
(dispendiosas) condições durante os longos anos envolvidos no curso
(contando os anos de preparação anteriores ao ingresso na
universidade). Um perfil óbvio que se encaixa nessa realidade é, no
mínimo, o de classe média.
Não se pode dizer que os cursos de
medicina não são elitistas. Em primeiro lugar, são os cursos mais
concorridos de praticamente todas as universidades brasileiras, com
as médias muito mais altas que as dos demais cursos. Para obter uma
vaga são necesários anos de preparação, o que significa uma vida
inteira frequentando bons colégios e um ou mais anos em cursos
voltados para a prova de ingresso. Uma vez lá dentro, é necessário
dedicação integral ao curso, o que elimina preocupações do tipo
como obter recursos – a fonte de renda, invariavelmente, serão os
pais. Findos os seis anos iniciais, parte-se (quase sempre) para a
residência, o que adia por mais alguns anos a prática enquanto
profissional. Durante todo esse período o aluno não tem a menor
preocupação em obter sustento por meios próprios. Imaginar que um
estudante esforçado seja suficiente para fazer parte desse seleto
grupo é pura ingenuidade.
“Nossos pais” relembra outro fato:
muitos dos estudantes de medicina são filhos de médicos. Não
poucas vezes, também netos de médicos. Até mesmo uma dinastia
completa. É inegável o prestígio que médicos desfrutam no Brasil,
sob o título de “doutor”. Não à toa muitos de nossos
presidentes (sem contar outros vultos políticos) eram médicos. O
dito universitário de que uma pessoa de branco andando de carro no
campus é aluno de medicina, enquanto outra andando de branco a pé
cursa enfermagem faz sentido. Os alunos de medicina são conhecidos
pelas festas homéricas que promovem. Enquanto o curso de direito –
outro curso elitista – aos poucos se “democratiza” com o
surgimento de várias faculdades particulares com preços mais ou
menos acessíveis, um curso de medicina em tais estabelecimentos
custa alguns milhares de reais mensais. Elitista? Sem dúvida.
Hoje discute-se a proposta do governo
de trazer médicos de outros países para atuar no Brasil. O anúncio
desse fato desencadeou protestos inflamados por parte da comunidade
médica, alegando diversos motivos pelos quais seriam contra a
importação de profissionais. O objetivo do governo é recrutar
médicos do estrangeiro para atuarem em regiões onde há deficiência
(ou ausência) de médicos para atender às comunidades locais. A
região amazônica seria uma grande beneficiária, já que é pródiga
em casos de falta de auxílio médico. Tais médicos se limitariam ao
atendimento básico junto às populações mais carentes,
desassistidas das condições mínimas de saúde.
Mesmo anunciando que o contrato é
temporário e limitando o campo de atuação dos profissionais do
estrangeiro, não houve acordo: o conselho de medicina é contra a
medida. Para ele, é culpa do governo se não há médicos em regiões
remotas. Para o governo, são os médicos que não querem atender
nesse lugares. Enquanto eles não se entendem, a população segue
sofrendo males que não existem mais no mundo moderno, minimamente
esclarecido e asséptico.
Creio piamente que a maioria dos
médicos não se dispõe a ir a lugares ermos. E isso nada tem que
ver com salário ou estrutura de atendimento. Tem a ver com abandonar
toda uma vida de facilidades em prol de lidar com gente simples e
ignorante em lugares que não oferecem o mesmo nível de conforto das
capitais e grandes cidades. Ora, uma turma inteira que viveu à
sombra de “nossos pais” por acaso quererá distanciar-se deles ao
concluir o curso? (os que não vieram de tal meio estão
loucos para atingir esse patamar, preferindo ficar onde é mais
provável auferir lucros) Alguns o fazem, até mesmo participando de missões
humanitárias visando apenas o bem-estar do próximo. Mas mesmo assim
muitos tomam essa decisão motivados por uma inquietação na
consciência de quem sempre teve tudo. É politicamente incorreto
afirmar que a classe média despreza a população de baixa renda,
mas é falacioso afirmar o contrário. O esporte dos privilegiados
economicamente é fazer pouco dos que ocupam a posição abaixo da
sua na hierarquia social. Fala-se muito no preconceito de cor ou de
orientação sexual, mas nada é dito do preconceito social e
econômico, tão mais comum e igualmente imoral e destrutivo.
Só quem conhece o atendimento público
de saúde sabe como o mesmo é deficiente. Sua ineficiência se
extende por todos os aspectos. Sua face mais conhecida é a total
precariedade de infraestrutura: não há leitos, falta medicação,
alta frequência de equipamentos danificados, impossibilidade de
realizar exames para diagnósticos. A visão de um hospital (ou mesmo
posto de saúde) público assusta os despreparados e não-conhecedores
da realidade: corredores infestados de pessoas nas mais adversas
condições, funcionários indiferentes ao sofrimento dos pacientes e
familiares, gente morrendo por falta de atendimento, precariedade
geral do imóvel. Mas há uma característica recorrente: nunca há
médicos suficientes. Isso ocorre mesmo nas capitais e grandes
cidades, onde há mais médicos disponíveis que no interior. Mesmo
os que estão no hospital são de difícil acesso. Como sombras,
aparecem e somem, e ninguém sabe onde encontrá-los. É comum
esperar horas para ser atendido. O que muita gente não sabe – mas
supõe – é que o problema não é bem a falta de profissionais,
mas a resolução da parte deles em simplesmente não atender. Há
aqueles que chegam atrasado e vão embora mais cedo. Há os que
simplesmente decidem não ir. Muitos até vão, mas uma vez lá
dentro, preferem se dedicar a atividades que consideram de maior
relevância, como assistir televisão. Alguns plantonistas, ao serem
acionados para se dirigirem ao hospital, preferem aguardar até que
haja bastantes pacientes agonizando, a fim de fazer valer seu
trabalho em se deslocar até lá – se morrerem antes, paciência,
era o dia deles (ao menos permanece em casa).
Ninguém há de negar que a situação
no interior é igual ou pior que nas metrópoles, e que de fato o
trabalho do médico é prejudicado. Sempre há nesses hospitais uma
ambulância (quando há sorte, mais de uma) para levar casos mais
complicados para outras cidades onde haja hospitais com mais
condições de os atender. Às vezes só há médico uma ou duas
vezes por semana, e mesmo assim por poucas horas. Embora não haja
tantos louros em atender em tais locais, os pacientes são de tal
forma gratos que presenteiam o responsável por sua cura com os mais
variados frutos da terra – pois é o pouco que têm.
Todos hão de concordar que falta
estrutura para os médicos que trabalham no interior. Mas, se esse é
o impeditivo para que se desloquem até lá, por que nunca se
pronunciaram a respeito? Se o fizeram, não foi com a veemência com
que estão defendendo suas vagas em tais localidades. Isso parece
menos preocupação com os pacientes do que reserva de mercado: não
querem ir, mas também não permitem que ninguém vá (semelhante aos
donos de vastas terras improdutivas que não se dissuadem a se
desfazer delas). O argumento levantado por eles de que se está pondo
em risco a saúde das pessoas não convence – não para quem
conhece o serviço prestado pelos médicos públicos, onde encontrar
um médico solícito é quase como encontrar um político honesto.
Ora, muitos médicos nem sequer olham para seus pacientes. Mal os
ouvem. Apenas rabiscam uma receita e mandam-no embora. Querem se
livrar deles a todo custo, como se ganhassem por paciente atendido.
Por acaso o consellho de medicina acha que isso é sinônimo de
qualidade? Ele acredita que os profissionais estrangeiros farão
pior?
Quem conhece algum médico em
familiaridade já deve ter ouvido falar de hospitais bem equipados do
interior que aguardam a ida de médicos há bastante tempo. Eles
simplesmente não querem. Ninguém duvida que é difícil trocar a
cidade grande pelo interior, mas afirmar que esse não é o motivo
pelo qual faltam médicos nesses lugares é uma desculpa muito
frouxa. Não se sabe o que pretende o conselho de medicina com tais
medidas de repúdio. Talvez aguardar que as cidades se desenvolvam
até o ponto de oferecerem o conforto que almejam. Fica a impressão
de que, ao se reformarem e equiparem os hospitais ermos, sairão com
outra desculpa para não irem atender lá. Ora, se não pretendem
trabalhar longe de seu local de origem, que digam logo de uma vez e
proponham uma solução para isso – como fez o ministro da saúde,
ao propor formar profissionais desses próprios lugares, favorecendo
sua permanência na localidade.
No calor do momento, surgiu nas redes
sociais um vídeo onde uma médica da rede pública aparece
desabafando todas as misérias do setor, imprecando furiosamente
contra o governo, que ficou como único culpado na história. Você
está certa, colega trabalhadora, ninguém discorda de sua raiva
frente à impotência de uma máquina que se recusa a funcionar. Mas
você sabe que a situação é ainda pior graças a muitos de seus
colegas de profissão que também se negam a cumprir com suas
obrigações – como os que a abandonaram sozinha naquela noite em
que te filmaram. O que não se pode fazer é pegar uma exceção e
promovê-la a regra. Há sim péssimos médicos no serviço público.
Há muitos que mal vão ao trabalho, preferindo atender na iniciativa
privada no mesmo horário de seu expediente no hospital do governo.
Mas claro que eles não serão punidos. O conselho de medicina é
deveras conivente com seus componentes, quer tenham cometido erros
médicos, quer tenham faltado com a ética, quer tenham sido
desumanos.
Enquanto nada se decide, os males
seguem devastando a população mais pobre, esquecida em seus grotões
país afora. Muitos contam com a sorte de serem agraciados pela boa
vontade de voluntários que surgem de repente e magicamente vão
embora, deixando-os com o sentimento de como seria bom se pudessem
dispor de alguém que os pudesse atender no sofrimento eterno a que
estão predestinados.
Para saber mais sobre a importação de médicos, clique aqui.
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