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domingo, 14 de julho de 2013

Medicina para quem precisa


O Conselho de Medicina é totalmente contra a importação de ḿedicos, mas o que propõem em substituição? Aliás, qual o real motivo de não se deslocarem para as regiões carentes?


Certa feita, enquanto cursava minha primeira graduação, observei as placas de formatura das turmas de medicina afixadas nos corredores do hospital universitário. A quase totalidade delas trazia o seguinte nome de turma: “nossos pais”. Pensei: para tantas turmas terem o mesmo nome, elas devem ter tido o mesmo perfil de aluno. Um perfil onde os pais desempenharam papel fundamental na vida acadêmica desses alunos, provendo todas as (dispendiosas) condições durante os longos anos envolvidos no curso (contando os anos de preparação anteriores ao ingresso na universidade). Um perfil óbvio que se encaixa nessa realidade é, no mínimo, o de classe média. 

Não se pode dizer que os cursos de medicina não são elitistas. Em primeiro lugar, são os cursos mais concorridos de praticamente todas as universidades brasileiras, com as médias muito mais altas que as dos demais cursos. Para obter uma vaga são necesários anos de preparação, o que significa uma vida inteira frequentando bons colégios e um ou mais anos em cursos voltados para a prova de ingresso. Uma vez lá dentro, é necessário dedicação integral ao curso, o que elimina preocupações do tipo como obter recursos – a fonte de renda, invariavelmente, serão os pais. Findos os seis anos iniciais, parte-se (quase sempre) para a residência, o que adia por mais alguns anos a prática enquanto profissional. Durante todo esse período o aluno não tem a menor preocupação em obter sustento por meios próprios. Imaginar que um estudante esforçado seja suficiente para fazer parte desse seleto grupo é pura ingenuidade.

“Nossos pais” relembra outro fato: muitos dos estudantes de medicina são filhos de médicos. Não poucas vezes, também netos de médicos. Até mesmo uma dinastia completa. É inegável o prestígio que médicos desfrutam no Brasil, sob o título de “doutor”. Não à toa muitos de nossos presidentes (sem contar outros vultos políticos) eram médicos. O dito universitário de que uma pessoa de branco andando de carro no campus é aluno de medicina, enquanto outra andando de branco a pé cursa enfermagem faz sentido. Os alunos de medicina são conhecidos pelas festas homéricas que promovem. Enquanto o curso de direito – outro curso elitista – aos poucos se “democratiza” com o surgimento de várias faculdades particulares com preços mais ou menos acessíveis, um curso de medicina em tais estabelecimentos custa alguns milhares de reais mensais. Elitista? Sem dúvida.

Hoje discute-se a proposta do governo de trazer médicos de outros países para atuar no Brasil. O anúncio desse fato desencadeou protestos inflamados por parte da comunidade médica, alegando diversos motivos pelos quais seriam contra a importação de profissionais. O objetivo do governo é recrutar médicos do estrangeiro para atuarem em regiões onde há deficiência (ou ausência) de médicos para atender às comunidades locais. A região amazônica seria uma grande beneficiária, já que é pródiga em casos de falta de auxílio médico. Tais médicos se limitariam ao atendimento básico junto às populações mais carentes, desassistidas das condições mínimas de saúde.

Mesmo anunciando que o contrato é temporário e limitando o campo de atuação dos profissionais do estrangeiro, não houve acordo: o conselho de medicina é contra a medida. Para ele, é culpa do governo se não há médicos em regiões remotas. Para o governo, são os médicos que não querem atender nesse lugares. Enquanto eles não se entendem, a população segue sofrendo males que não existem mais no mundo moderno, minimamente esclarecido e asséptico.

Creio piamente que a maioria dos médicos não se dispõe a ir a lugares ermos. E isso nada tem que ver com salário ou estrutura de atendimento. Tem a ver com abandonar toda uma vida de facilidades em prol de lidar com gente simples e ignorante em lugares que não oferecem o mesmo nível de conforto das capitais e grandes cidades. Ora, uma turma inteira que viveu à sombra de “nossos pais” por acaso quererá distanciar-se deles ao concluir o curso? (os que não vieram de tal meio estão loucos para atingir esse patamar, preferindo ficar onde é mais provável auferir lucros) Alguns o fazem, até mesmo participando de missões humanitárias visando apenas o bem-estar do próximo. Mas mesmo assim muitos tomam essa decisão motivados por uma inquietação na consciência de quem sempre teve tudo. É politicamente incorreto afirmar que a classe média despreza a população de baixa renda, mas é falacioso afirmar o contrário. O esporte dos privilegiados economicamente é fazer pouco dos que ocupam a posição abaixo da sua na hierarquia social. Fala-se muito no preconceito de cor ou de orientação sexual, mas nada é dito do preconceito social e econômico, tão mais comum e igualmente imoral e destrutivo.

Só quem conhece o atendimento público de saúde sabe como o mesmo é deficiente. Sua ineficiência se extende por todos os aspectos. Sua face mais conhecida é a total precariedade de infraestrutura: não há leitos, falta medicação, alta frequência de equipamentos danificados, impossibilidade de realizar exames para diagnósticos. A visão de um hospital (ou mesmo posto de saúde) público assusta os despreparados e não-conhecedores da realidade: corredores infestados de pessoas nas mais adversas condições, funcionários indiferentes ao sofrimento dos pacientes e familiares, gente morrendo por falta de atendimento, precariedade geral do imóvel. Mas há uma característica recorrente: nunca há médicos suficientes. Isso ocorre mesmo nas capitais e grandes cidades, onde há mais médicos disponíveis que no interior. Mesmo os que estão no hospital são de difícil acesso. Como sombras, aparecem e somem, e ninguém sabe onde encontrá-los. É comum esperar horas para ser atendido. O que muita gente não sabe – mas supõe – é que o problema não é bem a falta de profissionais, mas a resolução da parte deles em simplesmente não atender. Há aqueles que chegam atrasado e vão embora mais cedo. Há os que simplesmente decidem não ir. Muitos até vão, mas uma vez lá dentro, preferem se dedicar a atividades que consideram de maior relevância, como assistir televisão. Alguns plantonistas, ao serem acionados para se dirigirem ao hospital, preferem aguardar até que haja bastantes pacientes agonizando, a fim de fazer valer seu trabalho em se deslocar até lá – se morrerem antes, paciência, era o dia deles (ao menos permanece em casa).

Ninguém há de negar que a situação no interior é igual ou pior que nas metrópoles, e que de fato o trabalho do médico é prejudicado. Sempre há nesses hospitais uma ambulância (quando há sorte, mais de uma) para levar casos mais complicados para outras cidades onde haja hospitais com mais condições de os atender. Às vezes só há médico uma ou duas vezes por semana, e mesmo assim por poucas horas. Embora não haja tantos louros em atender em tais locais, os pacientes são de tal forma gratos que presenteiam o responsável por sua cura com os mais variados frutos da terra – pois é o pouco que têm. 

Todos hão de concordar que falta estrutura para os médicos que trabalham no interior. Mas, se esse é o impeditivo para que se desloquem até lá, por que nunca se pronunciaram a respeito? Se o fizeram, não foi com a veemência com que estão defendendo suas vagas em tais localidades. Isso parece menos preocupação com os pacientes do que reserva de mercado: não querem ir, mas também não permitem que ninguém vá (semelhante aos donos de vastas terras improdutivas que não se dissuadem a se desfazer delas). O argumento levantado por eles de que se está pondo em risco a saúde das pessoas não convence – não para quem conhece o serviço prestado pelos médicos públicos, onde encontrar um médico solícito é quase como encontrar um político honesto. Ora, muitos médicos nem sequer olham para seus pacientes. Mal os ouvem. Apenas rabiscam uma receita e mandam-no embora. Querem se livrar deles a todo custo, como se ganhassem por paciente atendido. Por acaso o consellho de medicina acha que isso é sinônimo de qualidade? Ele acredita que os profissionais estrangeiros farão pior?

Quem conhece algum médico em familiaridade já deve ter ouvido falar de hospitais bem equipados do interior que aguardam a ida de médicos há bastante tempo. Eles simplesmente não querem. Ninguém duvida que é difícil trocar a cidade grande pelo interior, mas afirmar que esse não é o motivo pelo qual faltam médicos nesses lugares é uma desculpa muito frouxa. Não se sabe o que pretende o conselho de medicina com tais medidas de repúdio. Talvez aguardar que as cidades se desenvolvam até o ponto de oferecerem o conforto que almejam. Fica a impressão de que, ao se reformarem e equiparem os hospitais ermos, sairão com outra desculpa para não irem atender lá. Ora, se não pretendem trabalhar longe de seu local de origem, que digam logo de uma vez e proponham uma solução para isso – como fez o ministro da saúde, ao propor formar profissionais desses próprios lugares, favorecendo sua permanência na localidade.

No calor do momento, surgiu nas redes sociais um vídeo onde uma médica da rede pública aparece desabafando todas as misérias do setor, imprecando furiosamente contra o governo, que ficou como único culpado na história. Você está certa, colega trabalhadora, ninguém discorda de sua raiva frente à impotência de uma máquina que se recusa a funcionar. Mas você sabe que a situação é ainda pior graças a muitos de seus colegas de profissão que também se negam a cumprir com suas obrigações – como os que a abandonaram sozinha naquela noite em que te filmaram. O que não se pode fazer é pegar uma exceção e promovê-la a regra. Há sim péssimos médicos no serviço público. Há muitos que mal vão ao trabalho, preferindo atender na iniciativa privada no mesmo horário de seu expediente no hospital do governo. Mas claro que eles não serão punidos. O conselho de medicina é deveras conivente com seus componentes, quer tenham cometido erros médicos, quer tenham faltado com a ética, quer tenham sido desumanos.

Enquanto nada se decide, os males seguem devastando a população mais pobre, esquecida em seus grotões país afora. Muitos contam com a sorte de serem agraciados pela boa vontade de voluntários que surgem de repente e magicamente vão embora, deixando-os com o sentimento de como seria bom se pudessem dispor de alguém que os pudesse atender no sofrimento eterno a que estão predestinados.


Para saber mais sobre a importação de médicos, clique aqui.

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