(11/01/1953
– 04/05/2007)
Escrevi esse texto no primeiro dia dos pais que passei após a morte do meu. Resolvi publicá-lo aqui passados cinco anos de sua ida.
Dia dos pais, sem pai.
Uma realidade comum para tantos configura-se para mim algo novo e de
agora em diante perpétuo. A dor da perda é emulada apenas pela dor
das lembranças: se boas, trazem saudade e inconformismo pelo
ocorrido; se más, causam indignação por não termos agido de outra
forma naqueles momentos, pelas mágoas gratuitas, pela incapacidade
de ceder. Meu pai se foi, e cá estou eu lembrando, recordando,
interpretando o ato que foi sua vida.
Meu pai, um trabalhador.
Desde que se entendeu por gente que trabalhava. Nas matas, caçando
lenha; no arado, plantando e colhendo; na feira, vendendo; nas
casas-de-farinha, transformando a mandioca; no terreiro, tratando a
colheita. O grande fardo à cabeça desmaiou-lhe, o gosto de sangue
na boca. Causava-lhe medo cavalgar de madrugada pelos lajeiros, sem
lua. Como era duro aguentar a fome, o sol a pino, até a hora – já
tarde – do almoço – fava e farinha, quase sempre sem mistura. A
fuga para a capital, no final da adolescência, não diminuiu o
ritmo. O trabalho na construção civil era de igual modo pesado, por
vezes vil. Eram duras as noites em que tinha por panela e prato uma
lata de cera, e por cama sacos de cimento vazios. Ali aprendeu a
profissão que exerceu pelo resto da vida, sob todos os tempos e
todos os horários, em numerosas circunstâncias. Chegou a trabalhar
os três horários – quantos mais houvessem – quando os filhos
estavam pequenos. Não fez apenas clientes. Fez amigos, que
compareceram a seu velório e sepultamento.
Meu pai, um
especialista. Sem dúvida o “fazer bem feito” era uma verdade em
sua condução profissional. Seus serviços não eram uma
alternativa; eram a primeira opção para os que o conheceram, e era
a ele que recorriam quando o problema parecia não ter solução.
Cuidadoso, sempre deixava o ambiente limpo. Exímio descobridor de
infiltrações, indicava certeiramente, sem necessidade de rasgos
inúteis, a localização destas. Sua experiência tornava-o
indiferente àqueles que receberam o grau de engenheiro, e não raro
os desafiava e provava estar certo. Sem saber ler, desenvolveu e
realizou o projeto hidráulico de edifícios inteiros, com sucesso.
Trabalhou em muitos lugares, participou da construção de prédios
importantes da cidade, além de muitos outros trabalhos pelo
interior. Mas a maior parte do tempo prestou serviço para a classe
média e alta dos bairros da orla e condomínios de luxo. Foi com
eles que descobriu que dinheiro não dá caráter a ninguém, pelo
contrário. Muitas foram as humilhações que viu e sofreu: serviços
baratos não pagos, mal pagos, divididos em vezes, comida estragada
enviada por almoço, calúnia, alguém que lhe quis dar frutas por
pagamento. Destas, houve um fato que o marcou para sempre: duas
crianças aproximam-se dele e de seu ajudante e perguntam: “Vocês
são pobres?”, e, à resposta afirmativa, arrematam: “Vamos sair
daqui. Eles são pobres. Eles roubam.” Frase de uma criança, que
provavelmente aprendeu com seus pais, que reflete a condição
intelectual de muitos dos abastados desse país.
Meu pai, um sábio. No
velório de um senhor, muitos jovens consternados, apesar de não
serem seus parentes. A cena pouco comum é explicada pelo fato de que
muitos foram os jovens que afluíram a nossa casa para ouvi-lo. Tomar
conselhos, ouvir suas experiências de vida. Temas que se estendiam
desde o uso do dinheiro a casamentos em crise; do portar-se em casa
alheia à vida profissional. Quantas não foram as pessoas que com
ele aprenderam coisas da vida e as aplicaram. E quantas não foram as
que só acreditaram que estava certo quando viram na prática o que
havia dito. Conselheiro de muitos. Homem difícil de se enganar,
sempre ressabiado. Percebia mentira de longe. Mesmo com pouca
instrução, conseguia enxergar o que muitos doutos ainda hoje
descobrem.
Meu pai, um brincalhão.
Mesmo havendo sofrido agruras na vida, não fez disso fonte de mágoa.
Sempre tinha motivo para sorrir e caçoar tanto dele próprio como
dos outros. Adorava crianças, e não havia neném que não risse em
seus braços. Sabia-se que vinha chegando pelas gargalhadas. Seu
bom-humor manteve-se até os últimos momentos, mesmo quando seu
corpo já fraquejava e a voz, embargada, tornara-se incompreensível.
Meu pai, um homem de
autoridade. Enquanto muitos acreditam em dinheiro, cargos e
conhecimento para demonstrar autoridade, meu pai dispensava todos
esses componentes. Sabia impor-se como poucos, não importando a
quem: de ricos a marginais, de crianças impossíveis a animais
domésticos. Um olhar era o suficiente para seus filhos perceberem o
que queria. No entanto, economizava no uso dessa autoridade, como que
considerando-a estratégica.
Meu pai, um esperançoso.
A certeza de que as coisas sempre melhorariam era uma de suas
características. Foi assim quando pequeno, nos grotões; foi assim
quando veio para a capital, morar de favor; foi assim quando comprou,
num matagal, um teto de palha sustentado por quatro estacas, que
hoje é uma casa. Não possuía todo o dinheiro por ocasião da
compra e nem sabia como consegui-lo. Mesmo seu pai tendo a quantia,
não deu-lhe vintém, proferindo outra frase que jamais esqueceu:
“Meu filho, compra casa quem pode.” Pagou-a antecipado. Não sabe
como, mas a esperança sempre o acompanhou. Em suas palavras: “Deus
me deu essa casa”.
Meu pai, um homem
simples. A grandiosidade nunca foi para ele convite a ser aceito.
Lugares finos, roupas chiques, pratos sofisticados. Não fazia
questão deles, e por vezes os abominava. Adorava estar à vontade,
com sandálias no lugar de sapatos (cuidava em tirá-las ao entrar
nas residências em que trabalhava), deitado em sua rede no quintal
de casa. Apreciava as comidas simples. Amava as frutas, recém-tiradas
do pé. Amava a natureza: as sombras das árvores, o ar puro,
banhar-se nas águas, os cantos dos pássaros. Amava as feiras, onde
via os preços das coisas e sempre conseguia um preço menor, quando
as comprava. Amava conversar com pessoas, as mais diferentes, de
qualquer classe e posição social. Era comum vê-lo sentado em
frente a nossa casa, dialogando com as pessoas que passavam; cercado
de crianças, ensinando-lhes coisas, inclusive a falar. Sobre
presentes, dizia ele: “Pode ser um sabonete, mas que seja de
coração.” Formalidades, dispensava. Preferia calor humano,
gracejos e risos.
Meu pai, um homem digno.
“Se depois que eu morrer alguém vier cobrar dívida minha pode
chamar a polícia que é ladrão”, dizia. Meu pai foi um homem
pobre, de cor, analfabeto, mas seu exemplo de justiça e dignidade é
o maior que já tive. No trabalho, sempre cobrou valor justo pelos
serviços. Era alguém em quem seus clientes podiam entregar qualquer
quantia em dinheiro para comprar material. Odiava inveja. As únicas
coisas que almejava eram aquelas que podia conseguir honestamente. “O
que é certo é certo.” Apesar de um simples encanador, não
admitia que o destratassem: “Eu sou um profissional”. Levou toda
a vida para realizar seus sonhos: casa, filhos formados.
Meu
pai, um homem de família. De tudo o que meu pai conquistou em vida,
a família foi seu bem mais precioso. Aprazia-lhe os momentos com os
seus. Amava a mulher com quem construiu casa e constituiu família.
Arrisco que dispensava ainda mais amor à esposa que aos filhos.
Orgulhava-se dela, por ser igualmente batalhadora, ter a mesma origem
e falarem a mesma língua. Amou-a, e demonstrou isso até os últimos
instantes. Orgulhava-se pelo fato de os filhos não terem seguido sua
sina. Cansei de ouvir: “Estude para ser alguém na vida.” Tendo
os três filhos aprovados no vestibular, apressou-se em espalhar a
notícia entre seus clientes-amigos. “Outra coisa não, mas filho
eu soube criar.” Nunca deixou despercebido qualquer indício de que
algo em casa estava errado. Se via alguma coisa de mal, cortava-a
pela raiz. Também amava os outros familiares: perdoou seu pai que
nunca o deixou estudar e ajudou os irmãos que possuíam menos que
ele.
Meu
pai, um lutador, um forte. Acostumei-me a vê-lo transpor
obstáculos, ficar são das poucas doenças que o acometiam.
Fracassou apenas na tentativa de aprender as letras, já passada há
muito a idade. O cansaço do dia de trabalho não permitia. O que
logrou desse esforço foi conhecer a mulher com quem ficou até o
fim.
A
última vez que meu pai adoeceu imaginei que fosse como das outras,
que logo ficaria bom. Pensei que ainda viveria muito tempo, mas não.
Seu quadro agravou-se tão depressa que o perdemos em pouco mais de
uma semana. Levei algum tempo para aceitar o fato como verdade, e
muitas foram as vezes que sonhei com ele. Em uma delas me deu um
abraço tão forte que me faltou o ar. Não pôde ir a minha
formatura, nem ouvir o discurso em que o homenageei. Indignava-se com
a doença que o consumia: “Eu não era sadio?” Ainda hoje doi-me
ao recordar sua expressão ao me fazer essa pergunta. Sentiu que seu
momento chegava e, como fora até aquele instante em toda sua vida,
enfrentou a morte com bravura. Seu medo de sofrer em cima de uma
cama, mobilizando pessoas para cuidar dele, não se realizou. Não
reclamou, não chorou. Disse que alcançou seus objetivos, seus
sonhos, e que poderia partir em paz. E assim foi.
Meu
pai, meu herói. Vão-me perguntar se não errou. Claro que sim, faz
parte da condição humana. Mas dentre todas as pessoas que conheci –
e muitas eram brilhantes –, nenhuma outra acertou tanto em tantas
áreas distintas. Tinha convicções, mas as mudava quando percebia
erradas. Já eu, não sei se fui o filho que ele merecia. O mundo que
ele queria para mim era tão diferente do seu. Na vontade de que eu
fosse melhor que ele, terminou por nos afastar um tanto: assuntos
diferentes, interessses diferentes, ideias diferentes. Espero ter
amenizado esse sentimento em pelo menos uma situação. Houve uma vez
que um colega meu da faculdade disse no apartamento onde morava que
estudava com o filho do encanador, e, envergonhado, que seu
desempenho era superior ao daqueles criados com todo o conforto. E
qual não foi o espanto do edifício inteiro ao saber disso.
Parabenizaram-no por isso. Espero que tenha sentido orgulho por mim,
pois muito me orgulho dele. Nas vezes que passei da meia-noite
estudando, era em seu exemplo que buscava determinação, ou, como
ele dizia, “força de vontade”.
Com
sua partida, alguns perderam um conselheiro; outros, um amigo;
outros, um excelente profissional. Eu perdi um ídolo. Não sei se
terei toda a virtude que meu pai teve, mas metade dela já me
bastaria. Não se vê mais aquele homem que caminhava a pé pelos
bairros da Jatiúca, Ponta Verde e Pajuçara, com sua bolsa de
ferramentas. Não há mais ninguém à porta de casa para me receber.
Os vizinhos atestam que parte da rua morreu junto com ele. Seu maior
legado para mim foi o enorme caráter que demonstrou em vida.
Provavelmente não seria o que sou hoje sem ele, e por isso deitei em
seu ataúde meu canudo de bacharel. E findo aqui minha homenagem a
ele.
Meu
pai,
um
forte abraço.