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sábado, 5 de maio de 2012

Meu pai

 (11/01/1953 – 04/05/2007)
Escrevi esse texto no primeiro dia dos pais que passei após a morte do meu. Resolvi publicá-lo aqui passados cinco anos de sua ida.

Dia dos pais, sem pai. Uma realidade comum para tantos configura-se para mim algo novo e de agora em diante perpétuo. A dor da perda é emulada apenas pela dor das lembranças: se boas, trazem saudade e inconformismo pelo ocorrido; se más, causam indignação por não termos agido de outra forma naqueles momentos, pelas mágoas gratuitas, pela incapacidade de ceder. Meu pai se foi, e cá estou eu lembrando, recordando, interpretando o ato que foi sua vida.

Meu pai, um trabalhador. Desde que se entendeu por gente que trabalhava. Nas matas, caçando lenha; no arado, plantando e colhendo; na feira, vendendo; nas casas-de-farinha, transformando a mandioca; no terreiro, tratando a colheita. O grande fardo à cabeça desmaiou-lhe, o gosto de sangue na boca. Causava-lhe medo cavalgar de madrugada pelos lajeiros, sem lua. Como era duro aguentar a fome, o sol a pino, até a hora – já tarde – do almoço – fava e farinha, quase sempre sem mistura. A fuga para a capital, no final da adolescência, não diminuiu o ritmo. O trabalho na construção civil era de igual modo pesado, por vezes vil. Eram duras as noites em que tinha por panela e prato uma lata de cera, e por cama sacos de cimento vazios. Ali aprendeu a profissão que exerceu pelo resto da vida, sob todos os tempos e todos os horários, em numerosas circunstâncias. Chegou a trabalhar os três horários – quantos mais houvessem – quando os filhos estavam pequenos. Não fez apenas clientes. Fez amigos, que compareceram a seu velório e sepultamento.

Meu pai, um especialista. Sem dúvida o “fazer bem feito” era uma verdade em sua condução profissional. Seus serviços não eram uma alternativa; eram a primeira opção para os que o conheceram, e era a ele que recorriam quando o problema parecia não ter solução. Cuidadoso, sempre deixava o ambiente limpo. Exímio descobridor de infiltrações, indicava certeiramente, sem necessidade de rasgos inúteis, a localização destas. Sua experiência tornava-o indiferente àqueles que receberam o grau de engenheiro, e não raro os desafiava e provava estar certo. Sem saber ler, desenvolveu e realizou o projeto hidráulico de edifícios inteiros, com sucesso. Trabalhou em muitos lugares, participou da construção de prédios importantes da cidade, além de muitos outros trabalhos pelo interior. Mas a maior parte do tempo prestou serviço para a classe média e alta dos bairros da orla e condomínios de luxo. Foi com eles que descobriu que dinheiro não dá caráter a ninguém, pelo contrário. Muitas foram as humilhações que viu e sofreu: serviços baratos não pagos, mal pagos, divididos em vezes, comida estragada enviada por almoço, calúnia, alguém que lhe quis dar frutas por pagamento. Destas, houve um fato que o marcou para sempre: duas crianças aproximam-se dele e de seu ajudante e perguntam: “Vocês são pobres?”, e, à resposta afirmativa, arrematam: “Vamos sair daqui. Eles são pobres. Eles roubam.” Frase de uma criança, que provavelmente aprendeu com seus pais, que reflete a condição intelectual de muitos dos abastados desse país.

Meu pai, um sábio. No velório de um senhor, muitos jovens consternados, apesar de não serem seus parentes. A cena pouco comum é explicada pelo fato de que muitos foram os jovens que afluíram a nossa casa para ouvi-lo. Tomar conselhos, ouvir suas experiências de vida. Temas que se estendiam desde o uso do dinheiro a casamentos em crise; do portar-se em casa alheia à vida profissional. Quantas não foram as pessoas que com ele aprenderam coisas da vida e as aplicaram. E quantas não foram as que só acreditaram que estava certo quando viram na prática o que havia dito. Conselheiro de muitos. Homem difícil de se enganar, sempre ressabiado. Percebia mentira de longe. Mesmo com pouca instrução, conseguia enxergar o que muitos doutos ainda hoje descobrem.

Meu pai, um brincalhão. Mesmo havendo sofrido agruras na vida, não fez disso fonte de mágoa. Sempre tinha motivo para sorrir e caçoar tanto dele próprio como dos outros. Adorava crianças, e não havia neném que não risse em seus braços. Sabia-se que vinha chegando pelas gargalhadas. Seu bom-humor manteve-se até os últimos momentos, mesmo quando seu corpo já fraquejava e a voz, embargada, tornara-se incompreensível.

Meu pai, um homem de autoridade. Enquanto muitos acreditam em dinheiro, cargos e conhecimento para demonstrar autoridade, meu pai dispensava todos esses componentes. Sabia impor-se como poucos, não importando a quem: de ricos a marginais, de crianças impossíveis a animais domésticos. Um olhar era o suficiente para seus filhos perceberem o que queria. No entanto, economizava no uso dessa autoridade, como que considerando-a estratégica.

Meu pai, um esperançoso. A certeza de que as coisas sempre melhorariam era uma de suas características. Foi assim quando pequeno, nos grotões; foi assim quando veio para a capital, morar de favor; foi assim quando comprou, num matagal, um teto de palha sustentado por quatro estacas, que hoje é uma casa. Não possuía todo o dinheiro por ocasião da compra e nem sabia como consegui-lo. Mesmo seu pai tendo a quantia, não deu-lhe vintém, proferindo outra frase que jamais esqueceu: “Meu filho, compra casa quem pode.” Pagou-a antecipado. Não sabe como, mas a esperança sempre o acompanhou. Em suas palavras: “Deus me deu essa casa”.

Meu pai, um homem simples. A grandiosidade nunca foi para ele convite a ser aceito. Lugares finos, roupas chiques, pratos sofisticados. Não fazia questão deles, e por vezes os abominava. Adorava estar à vontade, com sandálias no lugar de sapatos (cuidava em tirá-las ao entrar nas residências em que trabalhava), deitado em sua rede no quintal de casa. Apreciava as comidas simples. Amava as frutas, recém-tiradas do pé. Amava a natureza: as sombras das árvores, o ar puro, banhar-se nas águas, os cantos dos pássaros. Amava as feiras, onde via os preços das coisas e sempre conseguia um preço menor, quando as comprava. Amava conversar com pessoas, as mais diferentes, de qualquer classe e posição social. Era comum vê-lo sentado em frente a nossa casa, dialogando com as pessoas que passavam; cercado de crianças, ensinando-lhes coisas, inclusive a falar. Sobre presentes, dizia ele: “Pode ser um sabonete, mas que seja de coração.” Formalidades, dispensava. Preferia calor humano, gracejos e risos.

Meu pai, um homem digno. “Se depois que eu morrer alguém vier cobrar dívida minha pode chamar a polícia que é ladrão”, dizia. Meu pai foi um homem pobre, de cor, analfabeto, mas seu exemplo de justiça e dignidade é o maior que já tive. No trabalho, sempre cobrou valor justo pelos serviços. Era alguém em quem seus clientes podiam entregar qualquer quantia em dinheiro para comprar material. Odiava inveja. As únicas coisas que almejava eram aquelas que podia conseguir honestamente. “O que é certo é certo.” Apesar de um simples encanador, não admitia que o destratassem: “Eu sou um profissional”. Levou toda a vida para realizar seus sonhos: casa, filhos formados.

Meu pai, um homem de família. De tudo o que meu pai conquistou em vida, a família foi seu bem mais precioso. Aprazia-lhe os momentos com os seus. Amava a mulher com quem construiu casa e constituiu família. Arrisco que dispensava ainda mais amor à esposa que aos filhos. Orgulhava-se dela, por ser igualmente batalhadora, ter a mesma origem e falarem a mesma língua. Amou-a, e demonstrou isso até os últimos instantes. Orgulhava-se pelo fato de os filhos não terem seguido sua sina. Cansei de ouvir: “Estude para ser alguém na vida.” Tendo os três filhos aprovados no vestibular, apressou-se em espalhar a notícia entre seus clientes-amigos. “Outra coisa não, mas filho eu soube criar.” Nunca deixou despercebido qualquer indício de que algo em casa estava errado. Se via alguma coisa de mal, cortava-a pela raiz. Também amava os outros familiares: perdoou seu pai que nunca o deixou estudar e ajudou os irmãos que possuíam menos que ele.

Meu pai, um lutador, um forte. Acostumei-me a vê-lo transpor obstáculos, ficar são das poucas doenças que o acometiam. Fracassou apenas na tentativa de aprender as letras, já passada há muito a idade. O cansaço do dia de trabalho não permitia. O que logrou desse esforço foi conhecer a mulher com quem ficou até o fim.

A última vez que meu pai adoeceu imaginei que fosse como das outras, que logo ficaria bom. Pensei que ainda viveria muito tempo, mas não. Seu quadro agravou-se tão depressa que o perdemos em pouco mais de uma semana. Levei algum tempo para aceitar o fato como verdade, e muitas foram as vezes que sonhei com ele. Em uma delas me deu um abraço tão forte que me faltou o ar. Não pôde ir a minha formatura, nem ouvir o discurso em que o homenageei. Indignava-se com a doença que o consumia: “Eu não era sadio?” Ainda hoje doi-me ao recordar sua expressão ao me fazer essa pergunta. Sentiu que seu momento chegava e, como fora até aquele instante em toda sua vida, enfrentou a morte com bravura. Seu medo de sofrer em cima de uma cama, mobilizando pessoas para cuidar dele, não se realizou. Não reclamou, não chorou. Disse que alcançou seus objetivos, seus sonhos, e que poderia partir em paz. E assim foi.

Meu pai, meu herói. Vão-me perguntar se não errou. Claro que sim, faz parte da condição humana. Mas dentre todas as pessoas que conheci – e muitas eram brilhantes –, nenhuma outra acertou tanto em tantas áreas distintas. Tinha convicções, mas as mudava quando percebia erradas. Já eu, não sei se fui o filho que ele merecia. O mundo que ele queria para mim era tão diferente do seu. Na vontade de que eu fosse melhor que ele, terminou por nos afastar um tanto: assuntos diferentes, interessses diferentes, ideias diferentes. Espero ter amenizado esse sentimento em pelo menos uma situação. Houve uma vez que um colega meu da faculdade disse no apartamento onde morava que estudava com o filho do encanador, e, envergonhado, que seu desempenho era superior ao daqueles criados com todo o conforto. E qual não foi o espanto do edifício inteiro ao saber disso. Parabenizaram-no por isso. Espero que tenha sentido orgulho por mim, pois muito me orgulho dele. Nas vezes que passei da meia-noite estudando, era em seu exemplo que buscava determinação, ou, como ele dizia, “força de vontade”. 

Com sua partida, alguns perderam um conselheiro; outros, um amigo; outros, um excelente profissional. Eu perdi um ídolo. Não sei se terei toda a virtude que meu pai teve, mas metade dela já me bastaria. Não se vê mais aquele homem que caminhava a pé pelos bairros da Jatiúca, Ponta Verde e Pajuçara, com sua bolsa de ferramentas. Não há mais ninguém à porta de casa para me receber. Os vizinhos atestam que parte da rua morreu junto com ele. Seu maior legado para mim foi o enorme caráter que demonstrou em vida. Provavelmente não seria o que sou hoje sem ele, e por isso deitei em seu ataúde meu canudo de bacharel. E findo aqui minha homenagem a ele.

Meu pai,
um forte abraço.

5 comentários:

  1. Sinto muita saudade de tio Domingos,gostaria de ter aprendido mais com ele,sua partida deixou-nos tristes e hoje sentimos sua falta em todos os sentidos, um exemplo de Homem,saudades eternas...tio querido...

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    1. Todos sentimos... Obrigado pelos sentimentos.

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    2. Muito bonita sua homenagem a esse grande guerreiro homem, pai, filho, amigo e irmão...saudades...

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  2. Belo texto Josué. Sei que é complicado fazer um texto referenciando uma pessoa de forma tão bela. Só o reconhecimento e a idolatria permite isso. Parabéns.

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    1. Obrigado, Marcelo! Foi uma grande perda para mim, mas perdas fazem parte da vida. O importante é seguir em frente levando as boas lembranças.

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