Provavelmente a década de 80 foi a última onde as crianças foram crianças. A crescente e precoce adultização não deixa de ser preocupante, pois gera pessoas que não terão do que recordar
"Quando eu era menino, falava como menino, sentia como menino, discorria como menino (...)." (Apóstolo Paulo)
Estou em casa e de repente ouço sons ao longe, trazidos pelo vento. São músicas infantis que embalaram minha infância. Não apenas a minha. É difícil encontrar alguém de minha geração que não se lembre alegremente daquelas músicas. Investigo e descubro a origem da música. Uma farmácia perto havia montado um stand a fim de vender fraldas. Com tais músicas, o apelo parece dirigir-se exclusivamente aos pais.
Quem
viveu sua infância durante os anos oitenta não tem dúvida: aquela
foi a década da criança. O
mundo parecia curvado a nós, traduzindo sua atenção em desenhos
animados, programas infantis, brinquedos os mais diversos e músicas
destinadas a nós. Qual criança não
começava o dia empolgada a fim de sentar diante da televisão e
acompanhar a programação da manhã? Quem não suspirava de desejo
durante os intervalos, ao ver os anúncios de brinquedos? Para os
desafortunados que estudavam pela manhã, ao menos à tarde poderiam
ver, nem que fosse no final da tarde, programas para se divertir,
ainda que não voltados inteiramente para o
público infantil. Sim,
aquela foi a década áurea para nós.
Percebo
hoje que aqueles são
tempos idos. A atual geração – e em menos extensão a anterior –
se furtou à infância. Os melhores anos da vida duraram
pouco. Descoloriram o mundo
cedo e dispensaram a inocência sem remorso. A
ausência de interesse por parte da indústria de entretenimento
empurrou-os para a vida adulta. Os pais, querendo se ver livres da
obrigação de sustentar um mundo à parte para suas crianças,
decidiram compartilhar o mundo real com elas. Até
as festas de aniversários são feitas à noite, a fim de engatarem
uma festa adulta mais tarde. Vejo
esse fato com bastante reserva.
Sempre
me questiono se essa geração terá saudades. Veem os mesmos filmes
que os adultos (inclusive as animações são plenamente entendidas
apenas pelos adultos), ouvem as mesmas músicas que os jovens,
frequentam os mesmos lugares que gente grande, vencem
os mais velhos nos jogos eletrônicos, usam
gírias dos que têm
mais idade. Do
que terão saudade? Não
haverá um mundo que deixarão pra trás e se recordarão um dia. Não
haverá o que guardar como recordação, algo que ninguém saberá e
que se tentará esconder. Algo
em que se refugie em um momento nostálgico. Em
nenhum momento deixarão de fazer o que fazem e partirão para novas
experiências. Tudo será apenas uma continuação do cotidiano. O
mundo hoje corre a um ritmo alucinante. Naquela
época personagens de filmes e desenhos ficavam conhecidos tanto por
crianças como por adultos – e sobrevivem até hoje. Antes
os músicos buscavam cada um seu lugar ao sol através de sua
identidade. Hoje, quando um modelo dá certo, logo segue-se uma
profusão de cópias que termina por ofuscar o primeiro e todos logo
esquecem como tudo começou.
A cada mês há uma novidade diferente, e o velho, outrora guardado
com carinho, agora é menosprezado com repugnância (até
mesmo porque a música atual é destituída de essência. Não
passa de um amontoado de
grunhidos, ganidos e um
batuque qualquer).
Antes
as garotas tinham problemas
com o primeiro sutiã. Hoje pré-adolescentes fazem sexo com homens
adultos com
a aprovação dos pais. Crianças
com meia década de vida frequentam salões, e não é para
acompanhar as mães, mas para submeterem-se aos mesmos tratamentos
das demais mulheres.
Antes os meninos brincavam de
ser homem. Agora entram em coma alcoolico durante a puberdade – e
muitas meninas também.
Não
à toa alguns recentes
movimentos
musicais que
resgatam
a infantilidade dos pequenos têm ganho projeção – embora nem se
compare ao sucesso de antigamente. Há uma lacuna nesse mercado que
sempre irá existir. Um dos
últimos remanescentes de programação infantil na rede aberta de
televisão – que capengava no quesito esmero – foi substituído
por um programa de variedades, relegando
de vez o público infantil ao léu.
Embora
não seja incomum vermos as
músicas de nossa infância tocando em festas de crianças, aquela
é uma infância que não lhes pertence. Podem conhecer a música,
mas não viram o programa, não compraram o brinquedo, não colaram
figurinhas no álbum. São personagens
distantes, sem feições. Mas
nós tivemos a felicidade de
termos sido crianças completas, com seu mundo, com sua música, com
seus brinquedos, brincadeiras e desenhos. Não à toa as festas anos oitenta são
um sucesso. Somos a
geração-saudade.