O Brasil, mesmo sendo um país
(eternamente) emergente, é dado a costumes que o destituem de sua
capacidade criativa. Um deles é o ato de importar programas
televisivos idealizados em outros países, formatados para um público
específico, com características e perfil próprios, e tentar
aplicá-los por aqui. Embora alguns de fato vinguem (os que apelam
para nossos instintos primitivos, que, a propósito, grassam entre
nossa gente), outros constituem objeto de estranheza e curioso
constraste. É o caso do atual programa de calouros do maior canal de
TV aberta do país – imitação da versão americana, que, por sua
vez, é baseada no original holandês.
O corpo de jurados é composto por
artistas do mercado da música, de vertentes variadas, que fizeram
sucesso em algum momento da história musical do país. Eles se
mantêm de costas enquanto os candidatos se apresentam – para que
se concentrem na performance vocal (que é a proposta nuclear do
programa), e não se estão dando cambalhotas ou plantando bananeira
no palco, como sói acontecer em programas do tipo. Eles podem
decidir “adotar” algum participante (treiná-los para as próximas
fases do programa), o que é indicado pelo ato de virar de frente
para o mesmo. Caso mais de um o faça, o calouro pode escolher de
qual deles se tornará pupilo. A fórmula é simples, mas esbarra em
um fato cultural brasileiro: nosso povo não gosta de Música.
Parece um paradoxo, afinal, é comum
ver as pessoas com (infernais) fones de ouvido o tempo inteiro, temos
eventos musicais em todas as épocas do ano, o país é destino
obrigatório para grandes nomes do mercado da música internacional,
temos inúmeros artistas. No entanto... Nossa relação com a música
é usurpadora, negligente, inconsequente, irresponsável, promíscua,
parasitária, poluta, conspurcada, deficiente, desrespeitosa,
deforme. Isso porque nos valemos apenas dos benefícios da música; a
utilizamos apenas para “dar um clima”, nada tendo a ver com a
arte da Música em si, a ciência de combinar os sons. O mais perto
que se chega disso é aprender violão – e até isso é com fins
escusos –, o que, para muitos, é a própria e única essência da
música. Quando se vê alguém com uma partitura ou algo do tipo, a
única pergunta possível é: “ah, você está aprendendo violão?”.
Santa ignorância...
Mas aí pipocam shows de calouros onde
a maioria dos que vão lá fazem apresentações espantosas, com
grandes interpretações, pleno domínio vocal e técnicas que só
vemos lá. A plateia se levanta, bate palmas, grita “vivas” e
“hurras”, as pessoas em casa vibram e choram em frente à
televisão, comentam no dia seguinte, acessam vídeos na Internet,
escolhem um candidato e torcem com ele até o fim. E para quê? Para
largá-los ao desprezo dali a algumas semanas, esperando por uma
nova temporada do programa, a fim de repetir tudo outra vez. Pobres
calouros...
A audiência e os telespectadores
realmente ficam boquiabertos diante da qualidade vocal e
interpretação apresentadas nesses programas, afinal, não é o que
vemos ao vasculhar o repertório nacional. A propósito, por que não?
Por onde andam esses cantores de vozes incríveis que nunca chegam ao
sucesso? O Brasil tem histórico de cantores fracos, e por um motivo
muito simples: só se dá importância às letras das músicas,
neglicenciando completamente o talento vocal do intérprete. É
difícil combinar um compositor e um bom cantor em uma mesma pessoa,
então por aqui os autores das canções preferem eles mesmos as
cantarem, ainda que sejam péssimos nisso. E como os ouvintes não
têm o menor rastro de conhecimento musical para fazer qualquer tipo
de crítica que não seja sentimental, o modelo se propaga, trazendo
descontentamento para os que apreciam bons cantores e condenando para
sempre ao desconhecimento talentos do porte de Whitney Houston e
Michael Jackson, ferindo de morte o mundo da música.
Mas o mais curioso é que muitos
desses que se apresentam como calouros aprenderam a cantar no meio
evangélico (a propósito, coisa mais comum nos Estados Unidos), que,
felizmente, ainda é um reduto onde a música é levada a sério,
mas, ao mesmo tempo, sofre críticas de pessoas que acham que
entendem muito de música. Até mesmo Ed Mota – músico condenado
ao ostracimo por procurar caminhos musicais mais nobres –
reconheceu a qualidade musical gospel, convidando alguns artistas
desse segmento para cantarem junto com ele. O engraçado é que o que
se diz dos cantores de igreja é que gritam em vez de cantar, mas
durante os programas televisivos sobram aplausos justamente pela
expressividade nos improvisos de suas apresentações. Vai
entender...
O objetivo desses programas é
procurar artistas rentáveis, pura e simplesmente. Engana-se quem
pensa que eles têm a ver com seriedade musical. Mas com um rápido
exercício de memória e um simples cálculo estatístico chegamos à
conclusão de que têm sido um fracasso. Desde a re-estreia desse
tipo de programa na televisão (após décadas de ausência) não há
sequer um ganhador que tenha se mantido na mídia – alguns
eliminados ainda conseguiram algo, o que deu margem ao mote ácido de
que não se deve vencer caso se queira ter uma carreira artística.
Por mais que os jurados e a direção desses programas se esforcem
para descobrir uma fórmula do sucesso, não é tão simples. O
irônico é que os festivais de antigamente, que buscavam artistas de
interpretação original, pura e autêntica obtiveram sucesso
incrivelmente maior, descobrindo talentos que até hoje estão entre
nós.
Essa nulidade de resultados passa
também pela visível decadência da qualidade musical do país,
tanto no palco como embaixo dele. Nada que seja diferente de um ritmo
ensurdecedor e enjoado aliado a letras pejorativas e de baixo calão
– defendidas por muitos como livre expressão, mas que na verdade
não passam do reflexo de sua mediocridade cultural, intelectual e de
caráter – tem chance de sucesso. São músicas feitas para serem
consumidas em orgias onde tudo é permitido, onde são estimulados os
instintos mais baixos, que compartilhamos com os bichos. Tudo bem
esse tipo de música existir (ao menos em uma sociedade como a nossa,
marcada pela brutalidade de costumes), o problema é que seus
simpatizantes (ou escravos?) as querem escutar no carro, no trabalho,
em praça pública, como se fossem grandes pérolas da genialidade
humana. E ninguém pode discordar deles.
E é por isso que esse tipo de
programa importado, enlatado, não é condizente com nossa gente. Em
outros países, como os Estados Unidos, aprende-se música na escola.
O público tem maturidade suficiente para não deixar florescer
músicas animalescas constituídas de apenas um verso que ainda por
cima é onomatopeico. Embora a qualidade musical no mundo esteja em
declínio (espera-se que seja apenas um ciclo, dado que a história é
repleta deles), ainda há lugar para músicos de verdade lá, e não
apenas farçantes. Embora o pop fácil de hoje em dia esteja
assumindo o controle, há certa qualidade vocal na maioria dos
representantes do gênero, diferentemente do que se vê por aqui,
onde não se sabe nem o que é uma segunda voz.
Esses programas são, por fim, cruéis.
Iludem os aspirantes a estrela, prometem-lhes o mundo, mas ao final
dão-lhes um tapinha nas costas e mandam-nos de volta à obscuridade.
De volta a seus guetos, conseguem alguns poucos fãs que os abordam
na rua, alguns espaços para se apresentarem e só. Um ou outro
consegue o objetivo inicial. Desse modo, fazem as vezes de animais em
zoológicos, onde todo mundo os acha bonitos, mas no fundo quer que
eles fiquem lá, bichos estranhos, sem qualquer tipo de envolvimento,
visitando-os quando der na telha. O público está de costas para a
música e esses calouros são soldados de uma batalha inglória,
impossível de vencer. São detentores de um dom que nunca vão
conseguir usar. A frustração por não conseguirem fazer valer o
talento que a Natureza lhes concedeu deve ser a maior das dores.
Enquanto isso, pessoas sem talento algum ganham prêmios e mais
prêmios de música, sem possuírem a menor afinidade com ela. Sem
conhecerem nada dela. E o público brasileiro é o principal
responsável por essa inversão de valores. Carrascos!
Pobres calouros...