Provavelmente você já se deparou com
a situação de se sentir um ignorante por não ver nada demais em
uma obra de arte admirada por todos, dita perfeita, super famosa,
etc. Em caso afirmativo, não se sinta menosprezado. De fato, muitas
obras artísticas são compreensíveis (será?) apenas por críticos
da área. Eles definem movimentos estéticos e elaboram teorias a
respeito da arte a que se dedicam. Isso significa dizer que, embora
normalmente existam critérios que envolvam grau de dificuldade e
criatividade na confecção de uma obra, no final das contas é a
palavra dos críticos que fala mais alto. Veja-se o caso da
literatura. No livro Teoria da Literatura: Uma
Introdução, de Terry Eagleton, o autor dedica todo o primeiro
capítulo a construir a definição de literatura. Ele apresenta
diversos possíveis conceitos, refutando cada um antes de fornecer
outro. Ao final de um bom número de páginas, ele conclui que
literatura é tudo aquilo que um grupo seleto (a academia, a elite)
define como sendo literatura. Ou seja, menus de restaurante e
inscrições de paredes de banheiro poderiam ser considerados
literatura se assim a academia o quisesse. Do mesmo modo, Shakespeare
e Machado de Assis1 poderiam ser rotulados como lixo
literário.
Tomemos como exemplo Carlos Drummond
de Andrade, tido por muitos como o maior poeta brasileiro. Seu poema
mais conhecido é No meio do caminho.
Se o leitor o conhece, provavelmente faz coro com
os que não veem
graça alguma nesse poema. De
fato, à época que foi publicado, recebeu duras críticas (uma
delas: “E não havia ninguém que pegasse nessa pedra e lhe
esborrachasse
o crânio com ela?”) da própria academia. No
entanto, em algum momento da história, a
situação se reverteu,
e ele passou a ser uma obra-prima. Continuo não gostando
dele
– não menos do que da
pintura dita abstrata/moderna/contemporânea, a qual é realizada
a contento
por crianças e animais inteligentes –, mas reconheço o gênio de
Drummond em diversos poemas, dentre os quais o que transcrevo abaixo.
O homem, as
viagens
(Carlos
Drummond de Andrade)
O homem, bicho da
Terra tão pequeno
chateia-se na Terra
lugar de muita
miséria e pouca diversão.
Faz um foguete, uma
cápsula, um módulo
toca para a Lua
desce cauteloso na
Lua
pisa na Lua
planta bandeirola
na Lua
experimenta a Lua
civiliza a Lua
coloniza a Lua
humaniza a Lua.
Lua humanizada: tão
igual à Terra.
O homem chateia-se
na Lua.
Vamos para Marte –
ordena a suas máquinas.
Elas obedecem, o
homem desce em Marte
pisa em Marte
experimenta
coloniza
civiliza
humaniza Marte com
engenho e arte.
Marte humanizado,
que lugar quadrado.
Vamos a outra
parte?
Claro – diz o
engenheiro
sofisticado e dócil
Vamos a Vênus.
O homem põe o pé
em Vênus
vê o visto – é
isto?
idem
idem
idem
O homem funde a
cuca se não for a Júpiter
proclamar justiça
junto com injustiça
repetir a fossa
repetir o inquieto
repetitório.
Outros planetas
restam para outras colônias.
O espaço todo vira
Terra-a-terra.
O homem chega ao
Sol ou dá uma volta
só para te ver?
Não vê que ele
inventa
roupa insiderável
de viver no Sol?
Põe o pé e:
mas que chato é o
Sol, falso touro
Espanhol domado.
Restam outros
sistemas fora
do solar a
colonizar
Ao acabarem todos
só resta ao homem
(estará equipado?)
a difícil
dangerosíssima viagem
de si a si mesmo:
pôr o pé no chão
do seu coração
experimentar
colonizar
civilizar
humanizar
o homem
descobrindo em suas
próprias inexploradas entranhas
a perene,
insuspeita alegria
de conviver.
1Machado
foi duramente criticado quando em início de carreira, sendo chamado
até de “pão bolorento”.
Hummm... Adorei o poema citado!
ResponderExcluirQue bom, eu também gosto muito dele =)
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