Pesquisar este blog

domingo, 1 de abril de 2012

Obras de arte


Provavelmente você já se deparou com a situação de se sentir um ignorante por não ver nada demais em uma obra de arte admirada por todos, dita perfeita, super famosa, etc. Em caso afirmativo, não se sinta menosprezado. De fato, muitas obras artísticas são compreensíveis (será?) apenas por críticos da área. Eles definem movimentos estéticos e elaboram teorias a respeito da arte a que se dedicam. Isso significa dizer que, embora normalmente existam critérios que envolvam grau de dificuldade e criatividade na confecção de uma obra, no final das contas é a palavra dos críticos que fala mais alto. Veja-se o caso da literatura. No livro Teoria da Literatura: Uma Introdução, de Terry Eagleton, o autor dedica todo o primeiro capítulo a construir a definição de literatura. Ele apresenta diversos possíveis conceitos, refutando cada um antes de fornecer outro. Ao final de um bom número de páginas, ele conclui que literatura é tudo aquilo que um grupo seleto (a academia, a elite) define como sendo literatura. Ou seja, menus de restaurante e inscrições de paredes de banheiro poderiam ser considerados literatura se assim a academia o quisesse. Do mesmo modo, Shakespeare e Machado de Assis1 poderiam ser rotulados como lixo literário.

Tomemos como exemplo Carlos Drummond de Andrade, tido por muitos como o maior poeta brasileiro. Seu poema mais conhecido é No meio do caminho. Se o leitor o conhece, provavelmente faz coro com os que não veem graça alguma nesse poema. De fato, à época que foi publicado, recebeu duras críticas (uma delas: “E não havia ninguém que pegasse nessa pedra e lhe esborrachasse o crânio com ela?”) da própria academia. No entanto, em algum momento da história, a situação se reverteu, e ele passou a ser uma obra-prima. Continuo não gostando dele – não menos do que da pintura dita abstrata/moderna/contemporânea, a qual é realizada a contento por crianças e animais inteligentes –, mas reconheço o gênio de Drummond em diversos poemas, dentre os quais o que transcrevo abaixo.



O homem, as viagens
(Carlos Drummond de Andrade)

O homem, bicho da Terra tão pequeno
chateia-se na Terra
lugar de muita miséria e pouca diversão.
Faz um foguete, uma cápsula, um módulo
toca para a Lua
desce cauteloso na Lua
pisa na Lua
planta bandeirola na Lua
experimenta a Lua
civiliza a Lua
coloniza a Lua
humaniza a Lua.

Lua humanizada: tão igual à Terra.
O homem chateia-se na Lua.
Vamos para Marte – ordena a suas máquinas.
Elas obedecem, o homem desce em Marte
pisa em Marte
experimenta
coloniza
civiliza
humaniza Marte com engenho e arte.
Marte humanizado, que lugar quadrado.
Vamos a outra parte?

Claro – diz o engenheiro
sofisticado e dócil
Vamos a Vênus.
O homem põe o pé em Vênus
vê o visto – é isto?
idem
idem
idem

O homem funde a cuca se não for a Júpiter
proclamar justiça junto com injustiça
repetir a fossa
repetir o inquieto
repetitório.

Outros planetas restam para outras colônias.
O espaço todo vira Terra-a-terra.
O homem chega ao Sol ou dá uma volta
só para te ver?
Não vê que ele inventa
roupa insiderável de viver no Sol?
Põe o pé e:
mas que chato é o Sol, falso touro
Espanhol domado.

Restam outros sistemas fora
do solar a colonizar
Ao acabarem todos
só resta ao homem
(estará equipado?)
a difícil dangerosíssima viagem
de si a si mesmo:
pôr o pé no chão
do seu coração
experimentar
colonizar
civilizar
humanizar
o homem
descobrindo em suas próprias inexploradas entranhas
a perene, insuspeita alegria
de conviver.


1Machado foi duramente criticado quando em início de carreira, sendo chamado até de “pão bolorento”.

2 comentários: