– Bom dia!
A frase chegou
indiferente à cobradora de ônibus. Afinal, nunca lhe falaram, e a
frase, puída, rota, não passa de convenção social. Nada sincera.
Invenção de poucos para alguns.
– Bom dia!
Nenhuma reação.
Apanhou o dinheiro, contou o troco. Ia entregar-lhe... Descobriu,
além da mão estendida, uns olhos grandes, cheios de brilho, um
sorriso largo, uma convicção. Repetiu, contundentemente:
– Bom dia!
Causou-lhe estranheza e
surpresa a imposição da sentença. Em meio à pequena multidão que
acotovelava-se no ônibus, entre o burburinho e os bocejos
denunciadores do sono interrompido, ali estava, defronte a ela, uma
pessoa contrariando o cenário. Parecia não ser levada pelo clima
reinante de apatia e aborrecimento geral. Ao contrário,
assemelhava-se a uma pequena chama num breu escuro. Não sabia da
vida desta, mas certamente conhecia bem a sua. Essa outra deve ter
bons motivos para aparentar felicidade, mas daí a querer que os
outros a acompanhem? Essa não!
Lembrava bem como foi
sua infância. Sem pai, irmã mais velha em uma família de quatro
filhos, fazia as vezes de mãe, enquanto a sua ia trabalhar.
Habituara-se a bater nos irmãos mais novos durante dia e apanhar da
mãe às noites. As visitas à escola – pode-se dizer assim, tão
poucas vezes frequentou o lugar – foram dignas de esquecimento.
Naquele ambiente só havia dois tipos de pessoas: as que haviam
nascido para aquilo e as que iriam fracassar independentemente do que
fizessem. A diferença entre ela e essas útlimas é que elas
insistiam, mesmo percebendo seu insucesso. Ela, racional e
consciente, preferiu entregar-se à correnteza do que remar contra a
maré. Fez ali poucos amigos, dos quais também pouco se lembrava.
Recordava que havia uma amiga que fora especial de certo modo, mas
agora já não importava mais.
Fora relativamente longa
aquela sua vida. Na metade da adolescência descobriu, observando os
casos da vizinhança, como livrar-se de seu penar. Arrumou um homem.
Não necessariamente um marido, pois esse título é reservado aos
bons casamentos. Não teve muito esmero nessa tarefa. Escolheu um dos
primeiros que apareceram. Não se pode dizer que gostava dele, mas
precisava dele. O fato de ser casado não tinha importância para o
que se prestava aquele arranjo. Não passava de uma ponte. Um novo
martírio talvez, mas certamente diferente. Era a surpresa da
novidade que a impelia.
Pouco tempo viveu em
relativa tranquilidade. Logo viu-se de novo no espancamento noturno.
Enjoou daquele homem e decidiu usar a técnica mais uma vez. De caso
novo, logo percebeu que, ao contrário de antes, onde havia
indiferença de sentimento, agora havia uma força contrária.
Detestava-o, e o bom homem era-lhe uma tortura. Conheceu outro, um
famigerado da polícia local. Amou-o muito. Ele também, a seu modo.
Mas, após este anunciar que acabaria com sua vida, mudou-se para
outra cidade.
Começou a trabalhar e
foi morar em companhia de outras mulheres. A arenga era tal que quase
sentiu saudades dos tempos de convivência com os irmãos. Ganhou
algumas cicatrizes e foi viver com alguém de sua família que lhe
era chegado. Dava-se bem com a prima. Conheceu um homem seu vizinho e
acabaram por se juntar. Ambos desafortunados, foram morar de aluguel
em uma pequena vila. É ali que reside ainda, suportando com
dificuldade as agruras de uma vizinhança rude e má. Aborrece-se
quando sai de casa e enfadonha-se ao chegar. Parece que nunca terá o
que chamam de paz na vida.
E agora ali, parada em
sua frente, alguém que lhe enseja um dia bom. Como pode ser bom o
dia? Já não bastam os outros que lhe espezinham, agora também
esta? Mas, essa força da saudação, de onde vem? Esse desejo de que
essas palavras realmente se tornem verdade não parece normal.
Pensou... Será?
Lentamente, começaram a
saltar da mente lembranças felizes, com pessoas alegres e lugares
bonitos. Eram suas? Pareciam tão alheias... Logo recordou-se delas.
Um esboço de sorriso principou a formar-se à medida que os cantos
da boca se afastavam um do outro. Sim, estava lembrando de um
aniversário em casa, com os irmãos. Eles haviam lhe preparado uma
surpresa. Lembrou do susto ao ver a casa escura ao voltar da escola,
da surpresa dos urros dos irmãos e da mãe que chegava na hora.
Sentiu novamente o abraço do momento e a clareira de felicidade que
prevaleceu durante aquela noite. Veio à tona também um ligeiro
namoro no início da adolescência, mas tão sincero e tão bom...
Pena que ele teve que ir para longe. Achou que seriam muito felizes
agora, se o destino tivesse permitido. Lembrou-se de um gato que
criou por um tempo, pelo qual teve muita feição. Foi com lágrimas
que doou-o a uma criança que havia perdido o dela de modo trágico.
Agora lhe ocoriam rostos, lugares, datas. Dias em que despediu-se da
noite e abraçou o dia embalada em canções que falavam de coisas
boas. Dias nos quais teve um abraço quando choveu. Vezes em que
consolou choros. Vezes em que foi defendida por quem não conhecia.
Foram bons os dias em que acordou tarde e foi o sol quem instou com
ela para que levantasse. Foram boas as noites todas que viu a lua
cheia sair de dentro do mar e falar com ela. De repente, o mundo
parecia melhor e a vida era quase boa. Até lembrou o nome da amiga
do colégio. Foi uma boa amizade, agora tinha certeza. Por onde
andaria? Queria que estivesse bem...
Ainda tinha os olhos
fitos nas cédulas que tinha à mão. A outra aguardava. Voltou os
olhos à passageira, arauta da vida naquele dia. Queria agradecer-lhe
por fazê-la entender que a felicidade é feita por nós e é
oferecida até aos mais desamparados. Basta que cada um encare o
destino com boa-vontade e otimismo. Decidiu ali que faria tudo
diferente. Percorreria o sonho de ser feliz, mas teria que começar
de alguma maneira. Então percebeu como dar o primeiro passo. O
sorriso, já principiado, alargou-se. Encheu-a uma coragem, uma
convicção. A boca finalmente abriu-se:
– Bom dia!
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