Nossas relações pessoais são afetadas pelos meios de comunicação. Até que ponto iremos?
Na pacatez das cidades de outrora
todos se conheciam. A vida privada inexistia, sendo o viver de cada
um público. Era sabido onde cada qual morava, e não raras vezes os
vizinhos se acercavam, visitavam-se, metiam-se porta adentro. Comiam
juntos, bebericavam, passavam horas no alpendre a parolar. Dias
tranquilos...
Mas a modernidade sempre vem, e traz
consigo suas invenções. Assim veio o telefone, grande, respeitoso,
conferindo sobriedade aos donos ilustres. Agora o ir e vir era
substituído pelo discar. Os que não possuíam o aparato novíssimo
pediam auxílio aos detentores. Crescia a distância e os pés
principiavam a descansar. Os endereços olvidavam-se, sendo lembrados
apenas nas visitas indispensáveis – nascimento, morte, matrimônio,
aniversário.
Mas o tempo sempre corre, e mostra
mais de suas novidades. O aparelho imenso, pesado, imponente de
outrora, miniaturiza-se, apequena-se. Seu dono agora o carrega
consigo, tornando-se independente de lugar. Desmaterializa-se, figura
incorpórea. O lar, onde quase já não se ouve o tilintar do
aparelho, torna-se cada vez mais sagrado. Pode-se adentrar ali apenas
depois de custosa autorização. O número mágico que permite que as
vozes de longe irrompam no silêncio, antes divulgado, agora
reserva-se aos chegados. Se algum desconhecido o utiliza, é acuado
com a indagação de onde conseguiu o número.
Roda o mundo, nova geração de
maquininhas e novidades do novo século. Agora a voz torna-se
dispensável. As frases são transportadas para um teclado mudo,
frio, lidas em uma tela de monitor idem. As céleres conversas entre
amigos são desaceleradas pelo movimentar de dedos nervosos e por
mensagens que cruzam distâncias, indo depositar-se em lugares que
não existem em nosso mundo, mas em outro. Parodiando a mágica das
cartas de correspondência, agora temos caixas de correio que nunca
envelhecem e dificilmente abarrotam. O novo endereço, em novo
formato, agora é distribuído a todos, amigos e desconhecidos,
próximos e afastados. Torna-se fácil falar com o distante do outro
lado do mundo. Até que...
O novo torna-se velho, e assim o
aparelhinho que cabe no bolso e o endereço denominado eletrônico
são promovidos ao desconhecimento geral. Só os antigos o conhecem.
Agora é necessário muita confiança para fazê-los cientes. Melhor
usar a nova forma de comunicação: mensagens instantâneas entre
pessoas afastadas de qualquer distância. Melhor que manusear algo ao
ouvido. Agora é possível falar assuntos diferentes com pessoas
distintas. O sonho da onipresença toma novo fôlego. No afã de
fazer valer nossa natureza social, congregamos amigos em um espaço
apertado no canto de uma tela de monitor onde todos brigam por
atenção. Necessário ter todos por perto.
A essa altura, o caminho das
residências cai em total desconhecimento. É como um lugar secreto
sem mapa, revelado apenas aos familiares. O mundo está perigoso e
ali é o reduto da paz e do sossego que não pode ser abalado. Ao
mesmo tempo em que as pessoas migram para gaiolas de concreto,
passando a morar cercadas em todas as direções por outros viventes,
a distância vai na contramão do espaço físico. Mais uma novidade
deve surgir para remediar a situação.
Alguém tem a ideia de converter
amigos em números. A invenção é tão bem-aceita que subvertem a
lógica: os números suplantam o que deveriam representar. Todos
correm a aumentar seus números em uma rede de relacionamentos. Agora
mensagens e fotos são compartilhados por todos e tudo é exposto
como frutas em feira. Pessoas esquecidas aparecem, ao passo que
outras, sempre presentes, somem. Enquanto uns abraçam o novo
sistema, outros o desprezam. Esse torna-se o modus operandi de
conhecer pessoas. Tudo o mais – comunicadores instantâneos, número
de contato, endereços físicos – vem através dele. As pessoas
rcolhem-se a seus compartimentos e esquecem o mundo lá fora.
Mas alguns, tomados pelo tom de
libertinagem do novo sistema, iniciam a prática da delinquência. Os
outros se assustam. Desertam. Fecham-se em seus mundos. Vão de
encontro à lógica nascida para agregar pessoas. O espaço irreal
passa a refletir o real – o do medo, do receio do outro que não se
conhece. Um ciclo que se fecha. Fim que vira começo.
E agora, aonde iremos? Talvez voltar
ao princípio. Bater na porta ao lado e descobrir um sorriso aberto.
Chamar um nome e receber um abraço. Trocar o receio pela confiança.
Despertar a parceria através da mão que ajuda. Abrir nossa família
para receber outra, e ganhar com isso. Talvez o que precisemos não
sejam aparatos tecnológicos, mas a alegria de lidar com o outro
frente a frente, apertar sua mão e convidá-lo a nossas vidas. Dar
lugar à natureza gregária que nos manteve vivos até aqui e
construir um futuro em que nossos relacionamentos não sejam moldados
por invenções, mas que estas apenas reflitam nossas – oxalá
eternas – intenções de camaradagem.
*Crônica finalista do concurso de talentos da Petrobras
Adorei! Parabéns *-*
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