Lembrança de quando estudava na rede pública de ensino
– Vocês são o futuro do Brasil, dizia a professora.
Recebíamos a premonição enquanto copiávamos, mãos ávidas, o
que estava escrito na lousa – os livros não viriam esse ano. E enquanto
escrevíamos éramos espetados por algo na banca ou na cadeira em que
estávamos sentados – parafusos ou pregos soltos, lascas de madeira. O
garrancho ia preenchendo o espaço na folha escura, parda, de papel
jornal. Cadernos que o governo distribuía para que a previsão se
concretizasse. Os lápis, pequenos, que a custo conseguíamos mantê-los à
mão, com a ponta mal-feita, percorriam as páginas do caderno, linha a
linha, com uma borracha rasgada no topo. Cuidávamos em não imprimir
muita força na escrita para não furar a página em que escrevíamos. Aqui e
ali haviam manchas escuras no papel. Resultavam de quando apagávamos os
erros ortográficos. Os que mais erravam traziam as folhas mais escuras.
Vergonha. Incompetência. Motivo de mofa.
– Vocês são o futuro do Brasil.
A frase pairava sobre nossas cabeças miúdas – várias,
enfileiradas, amontoadas em uma pequena sala – e alguns de nós, os mais
criativos, deixávamo-nos enlevar por ela. Imaginávamo-nos no futuro,
homens feitos, casados e com filhos. Pensávamos em profissões simples:
bombeiros, motoristas, guardas de trânsito, vendedores. Iríamos fazer um
país melhor. Outros de nós deixavam o prognóstico passar
desapercebidamente. Estavam ocupados pensando no pai bêbado que os
receberia a sovas em casa, se haveria jantar à noite, se encontrariam a
mãe em casa ou com homens na rua. Ou nas diabruras que aprontariam ao
sair dali, pois não havia ninguém em casa e a vizinha dava cascudos e
beliscões.
Fomos enganados. O futuro do país não estava em nossas mãos;
não nos foi destinado. Deparamo-nos primeiro com a vida, num encarniçado
confronto. Poucos sobreviveram. Meus amigos estão mortos. Sim, fomos
enganados, e eles sabiam que mentiam para nós. O futuro do Brasil
crescia em outro lugar: carro para ir à escola, carro para voltar para
casa; salas bem limpas, bonitas, tudo muito novo; livros na bolsa, aulas
de atividades culturais, alguém em casa para os receber com um sorriso
e um abraço. A esses o país havia de acolher. Eles fazem o Brasil de
hoje, pois eram seu futuro no passado. Nós éramos apenas o stuff1
da nação. Passamos despercebidos com nossa existência medíocre. Somos
as pessoas que lotam os ônibus, que povoam as ruas, que preenchem os
hospitais públicos, que formam longas filas nos bancos, antes mesmo de
abrirem.
Fomos enganados para que não tentássemos mudar as coisas;
para que nos conformássemos ao descobrir que estamos à parte da história
do país, pois lutaríamos toda a vida, e, não conseguindo nada, é porque
fomos incompetentes, incapazes. Somos o stuff da nação, e
ninguém se preocupa com ele. Afinal, para que serve? Para estar lá,
apenas. Faz parte do cenário. Não importa o que aconteça com ele, desde
que não incomode “o futuro da nação” .
Predições ainda são feitas, mas continuam inócuas. O stuff vai se renovando e se avolumando. Estamos prestes a transbordar do recinto.
1 Perdoem-me os puristas, mas é que não encontrei uma palavra na língua portuguesa
que traduzisse a força expressa por stuff, termo inglês que, em um de seus usos, traduz a ideia de preenchimento, recheio.
É utilizada quando se quer designar algo de maneira imprecisa, ou não o nomeando por não ter importância. (e.g.,
"Take a bag and put some stuff in it" quer dizer "Pegue um saco e ponha
algo dentro dele")
Muito bom.Traduz nossa realidade de uma forma que não tinha pensado antes,digo,que somos direcionados a ser o "stuff" da nação desde tão cedo...triste,isso traz um amargo a minha infância,mas gostei muito de ler,gostaria de saber quem é o autor.
ResponderExcluirOlá, Jhony! Obrigado pela visita e pelo comentário. O texto é de minha autoria (assim como os demais desse blog) e é autobiográfico, pois foram fatos de minha infância na escola pública. Enquanto o governo não acreditar que a educação é o poder transformador da sociedade não iremos a lugar algum.
ExcluirAbraço!